Acervo de Vinicius de Moraes é disponibilizado online

Processo de digitalização contou com a neta do poeta, a cineasta Julia Moraes. Entre os 11 mil documentos estão o roteiro de Orfeu negro, além de manuscritos das letras de "Insensatez" e "Tarde em Itapuã".


FqfOqFUE origin 166



Desde 30 de abril, o nome de Vinicius de Moraes, em boa parte das pesquisas em sites de busca da internet, está atrelado ao de Anitta. A data marcou o lançamento do vídeo da faixa “Girl from Rio”, livremente inspirada em um dos maiores sucessos da música popular brasileira, “Garota de Ipanema”, escrita pelo próprio Vinicius em parceria com Tom Jobim.

A partir desta quinta-feira, 27.05, quem quiser saber mais sobre o poetinha ganha uma outra fonte a seu respeito. Trata-se do Acervo Digital Vinicius de Moraes, que, dividido em três seções, Correspondências, Produção intelectual e Documentos diversos, reúne o acervo documental do poeta, diplomata, compositor, crítico de cinema e dramaturgo, morto em julho de 1980, aos 66 anos. Depois de um processo de digitalização que levou cerca de nove meses, realizado em meio à pandemia, o site disponibiliza mais de 11 mil documentos ao público.

“Em Correspondências, destaco as cartas trocadas por ele com escritores como João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), nas quais discutem os poemas que produziam”, diz Julia Moraes, 46 anos, neta de Vinicius, além de idealizadora e coordenadora deste projeto. “Há ainda as cartas de família. É sempre complexo compartilhar uma privacidade como esta, mas é tudo tão bonito, caloroso e amoroso… Fora que ajuda a compreender a imagem de quem era o Vinicius de Moraes funcionário público e também artista.”

OUjSt7GT image 228

Manuscrito da letra de “Insensatez”Foto: Divulgação/©️VM Cultural DR.

Já em Produção intelectual, há as tentativas, cheias de rasuras, de poemas e composições, nas quais Vinicius buscava encontrar a melhor palavra e a rima mais contundente. O objetivo do autor, como afirma o crítico literário Antonio Candido (1918-2017) no documentário Vinicius (2015), de Miguel Faria Jr., era se aproximar, mesmo dentro das formas poéticas tradicionais, como o soneto, da vida cotidiana.

Nas versões digitalizadas disponíveis de letras de clássicos como “Insensatez”, “Tarde em Itapuã” e “Pela luz dos olhos teus”, há termos e versos inteiros rabiscados. “Ele era um trabalhador da palavra e buscava uma voz lírica própria”, resume Julia. São mais de 260 letras de músicas no catálogo.

Marcus Moraes, sobrinho-neto de Vinicius (ele é filho do médico Helius de Moraes, irmão do poeta), coordenador técnico e designer do projeto, chama a atenção para os documentos referentes ao roteiro do filme francês Orfeu negro (1959), baseado integralmente na peça Orfeu de Carnaval, de autoria do compositor. O longa, assinado por Marcel Camus, ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e ainda o Oscar de melhor produção estrangeira. “É um documento cheio de anotações, batido à máquina, bastante curioso”, diz ele.

aoJDvgqS image 229 scaled

Julia MoraesFoto: Divulgação/Helena Barreto

Por fim, a seção Documentos diversos reúne, entre outros materiais, folhetos, cadernos de anotações e um dossiê sobre a criação do Instituto Nacional do Cinema. O Acervo Digital Vinicius de Moraes ainda apresenta o podcast Caderno de Leituras Vinicius de Moraes, com textos de escritores como Eucanaã Ferraz e Noemi Jaffe.

Um negócio de família

Julia gosta de frisar que a digitalização do acervo de seu avô só foi possível porque, desde 1987, o Arquivo-Museu de Literatura, da Fundação Casa de Rui Barbosa, tem classificado e indexado todos os documentos de Vinicius. Inclusive, foi naquele ano que as irmãs do poeta, Lygia e Laetitia de Moraes, fizeram as primeiras doações de obras de Vinicius ao museu, que contém ainda arquivos de Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, entre outros.

“O Vinicius era de uma família muito unida, com pais humildes e bastante amorosos. A correspondência entre os irmãos e os pais mostra isso. Além do próprio Vinicius, todos tinham consciência da importância da obra dele. As doações à Casa de Rui Barbosa já chegavam separadas e organizadas”, lembra Julia. “Esses documentos juntos em um só lugar têm um valor maior.” A partir de 1992, este acervo físico tornou-se público.

OMkzppUa image 230 scaled

Manuscrito da letra de “Pela luz dos olhos teus”Foto: Divulgação/©️VM Cultural DR.

Julia é filha de Pedro de Moraes, fruto da relação de Vinicius com Beatriz Azevedo de Mello – o primeiro de nove casamentos do poeta. Assistente de direção da próxima novela das 18h da Globo, Nos tempos do Imperador, ela já trabalhou em longas como Amarelo manga e Piedade, ambos de Claudio Assis, e Árido Movie, de Lírio Ferreira. A partir de 2013, passou a se debruçar sobre a obra do avô. Naquele ano, esteve envolvida, ao lado da tia, Maria de Moraes, em uma exposição que celebrava o centenário de Vinicius. Em 2016, lidou com uma edição especial da revista Noize comemorativa dos 50 anos do lançamento de Os Afro-sambas, álbum de Vinicius e Baden Powell. Depois, restaurou o documentário Vinicius de Moraes, um rapaz de família (1983), da tia Suzana de Moraes.

Foi ao longo desse período que ela começou a entender a relevância do acervo depositado na Fundação Casa de Rui Barbosa. E mais: a realmente a compreender a importância da preservação da memória, ainda mais de um artista, cuja trajetória se confunde com a história cultural brasileira. Vinicius, entre outros feitos, teve papel fundamental na criação da bossa nova, como autor da letra de Chega de saudade, faixa que, gravada por João Gilberto em 1958, marca o pontapé deste gênero musical no país. Um documentário de 18 minutos, dirigido pela cineasta e disponível no Acervo Digital, enaltece o trabalho desenvolvido pela Casa de Rui Barbosa.

Vinicius morreu quando Julia tinha apenas 6 anos. Ainda assim, a cineasta consegue se recordar de algumas histórias com o avô. “O Vinicius gostava da casa cheia de gente de todas as idades. Lembro-me que os cafés da manhã costumavam ser bastante prolongados, e ele se sentava próximo a uma janela. E, neste ambiente, a figura dele, sempre jeitosa com as pessoas, se sobressaía.”

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes