A criança que vive em Adriana Calcanhotto
Compositora conversa com a ELLE sobre quarto álbum do projeto infantil Partimpim, que completa 20 anos em 2024, a opção de não ser mãe, a proximidade dos 60 anos e a experiência como professora na universidade de Coimbra.
Não existe uma única Adriana Calcanhotto. A cantora e compositora gaúcha, que completa 60 anos em 2025, mostrou várias faces de sua personalidade artística ao longo da carreira. Seu alter ego infantil, a Partimpim, reaparece depois de um hiato de 12 anos desde o lançamento do último e terceiro disco de estúdio, Tlês.
O recém-lançado O Quarto começa a brincar logo no título, que traz o duplo sentido por denominar tanto o numeral como o cômodo da casa onde a molecada costuma fazer a bagunça. Com oito faixas, o disco traz canções autorais e versões (para músicas de Rita Lee e Roberto de Carvalho, Marisa Monte, Beatles, entre outros).
Foto: Leo Aversa
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O trabalho se estende para o audiovisual: as faixas “O meu quarto” e “Malala” já ganharam clipes, que misturam animação com manipulação de bonecos. Vídeos das outras seis canções também serão lançados, sem pressa.
Não por acaso, o projeto é retomado em outubro de 2024: é o mês das crianças e o ano em que o primeiro álbum da Partimpim completa 20 anos.
O novo repertório vem ao mundo em um momento em que outras das múltiplas personas da artista estão em plena atividade. Calcanhotto segue em turnê com o show de seu último álbum, Errante (2023), e prepara-se para um período de residência, entre fevereiro e maio de 2025, na Universidade de Coimbra, em Portugal – da qual se tornou embaixadora em 2015 e onde ministrou um curso, entre 2017 e 2020, sobre composição de canções.
Há ainda a intérprete. Em 2023, ela apresentou o show Gal: Coisas sagradas permanecem, no qual interpretou repertório cantado por Gal Costa, com músicas de compositores como Caetano Veloso, Dorival Caymmi e Lupicínio Rodrigues. Foram seis apresentações entre abril e maio.
Calcanhotto também se desdobra em escritora (lançou o primeiro livro em prosa, Saga lusa: o relato de uma viagem, em 2008) e ilustradora (desenhos seus estampam as páginas, por exemplo, de Melchior o mais melhor, livro infantil de Vik Muniz, de 2011). São muitas faces de uma persona artística que, agora, encontrou um tempo para olhar para a criança sempre viva em seu corpo. A seguir, nossa conversa com a cantora:
Você vem de um disco sobre o isolamento durante a pandemia (Só), lançado em 2020, e outro sobre a vida na estrada (Errante), de 2023. Estava na hora de voltar a olhar para a sua criança interior?
Faz sentido! Mas acho que toda hora é hora de olhar para a criança interior. Uma das coisas que motivou o lançamento neste ano é a celebração de 20 anos do primeiro disco. E achei mais interessante e engraçado celebrar isso com um disco novo do que só ficar olhando pra trás. A ideia de Partimpim sempre foi ser uma discografia; em qualquer momento que tivesse repertório, possibilidade, oportunidade e desejo de fazer, eu gravaria. Tinha repertório e vi que dava dentro da agenda deste ano. Uma coisa que me ajudou a decidir por fazer foi o disco do Xande de Pilares cantando Caetano (Xande canta Caetano, de 2023). Fui conversar com o Pretinho da Serrinha (produtor do álbum) para entender como tinha sido feito. Ele contou a história do disco e era tudo mais simples e espontâneo do que parecia. Certas coisas que me pareciam intencionalmente pensadas surgiram, na verdade, de uma intuição do Pretinho. Então, isso potencializou aquele desejo. Foi muito acertada essa escolha (de trabalhar com o produtor) e isso me ajudou a concretizar porque se fosse uma coisa muito grande, talvez não desse tempo de lançar em outubro, como eu queria – porque é em outubro (mês das crianças) que todo mundo me pergunta como vai a Partimpim.
“A ideia de Partimpim sempre foi ser uma discografia; em qualquer momento que tivesse repertório, possibilidade, oportunidade e desejo de fazer, eu gravaria.”
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Como você avalia esses 20 anos de Partimpim?
Acho que é um projeto muito bem-sucedido. Sou muito grata porque em vez de só ficar sonhando em fazer isso, eu fiz. Achava que era mais um serviço de utilidade pública: fazer discos para crianças diferentes do padrão de 20 anos atrás. Todo mês de outubro tem convite para fazer show, para fazer turnê. Então, nesses 20 anos, ela permanece viva. As pessoas perguntam sobre uma “volta da Partimpim”, mas não tem um retorno: ela está sempre por aí e a qualquer momento pode lançar um disco novo.
Em 2004, qual foi a motivação para criar esse projeto?
Muitas. Os grandes poetas, músicos e compositores brasileiros fizeram coisas especialmente para crianças: Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Braguinha, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Arnaldo Antunes, Pato Fu… E a Partimpim nasceu para estar inserida nesse contexto, nessa tradição. Também pensei muito sobre experimentação em música, que pode ser uma coisa através do lúdico e não tão cerebral – mais natural, mais espontânea. “Ih, saiu errado, errei”. Mas acontece que o errado acabou ficando mais bonito do que a gente estava considerando certo, então já é! Isso também é experimentar. Esse tipo de pensamento também me motivou. Outro fato foi minha experiência com o Hermeto Pascoal. Ele fez um arranjo para o meu terceiro disco (A fábrica do poema, de 1994). Cheguei no estúdio, curiosa, para saber qual era o set que ele tinha armado para gravar e aí tinha bacia, baldes coloridos, uns instrumentinhos, uns bichinhos de brinquedo, uns coelhinhos… Era um negócio de criança e aquilo também ficou na minha cabeça. Então, foi uma série de coisas.
Logo na primeira música, “O meu quarto”, a letra traz a frase: “Nós vamos inventar o mundo”. Depois, em “Malala”, tem o verso: “O mundo mudará toda vez que alguém disser ‘Malala’”. O mundo precisa mudar? Essa mudança passa pelas crianças? Por que essa ideia é recorrente no álbum?
Essas crianças têm um mundo que elas vão ter que inventar. A gente não o está deixando em condições bacanas. Falo principalmente de meio ambiente, mas é geral. Especificamente no Brasil, temos um apagão ético. É bom que as crianças entrem em contato com a ética. O recado é: é possível inventar o mundo e, em certos aspectos, já passou da hora. Então, essa responsabilidade também está com essa geração de crianças. Acho que isso tem que ser encarado agora – mas com alegria, positividade e senso de esperança. Vamos fazer do mundo o que a gente quer que ele seja.
Em algum momento, você desejou ter filhos?
Não, não tenho temperamento… Fiquei entre duas coisas: antes de ser mãe, já me culpava por sentir que não seria uma grande mãe, e, por outro lado, acho que seria uma mãe um pouco sufocante, exigente demais. Eu mesma me sinto muito criança, me identifico com esse lado Partimpim. Muitas crianças que conversam comigo no camarim entendem que eu também sou criança porque não tenho filhos. Isso é muito engraçado, isso deve ser o que é (risos).
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Em 2025, você faz 60 anos e completa-se 35 anos de seu primeiro álbum (Enguiço, 1990). Como você lida com a passagem do tempo?
Nunca fui de olhar para o passado – tanto que, agora, com os 20 anos de Partimpim, celebro para a frente, com um disco novo. Não sei se quando fizer 60 anos vou mudar, mas por enquanto olho para frente. Estou no presente, não sou muito de ficar olhando para trás.
Você é embaixadora da Universidade de Coimbra (Portugal) desde 2015 e ministrou um curso sobre composição musical lá entre 2017 e 2020. Como essa experiência afetou o seu jeito de compor? Mudou?
Ah, mudou. Mudou porque organizou o método. Nunca fui metódica, nunca tive aulas de composição, meio que fui inventando um jeito. Para dar aula, a gente tem que estudar muito. A Universidade de Letras me pediu um curso onde eu começasse as aulas sempre por uma canção minha. Isso foi uma exigência. Então é algo baseado na minha experiência, como eu arquitetei aquela canção. Depois disso, gosto de apresentar o que aprendi sobre fundamentos da canção: a história desde a Grécia até a estrutura. Então, estudei muito. Nunca tinha percebido que para ser professora teria que continuar estudando tanto. Foi uma experiência inacreditável. Desde a pandemia não dou mais aulas, mas no semestre que vem vou (para Coimbra) para fazer uma residência, a convite do departamento de Ciências e Tecnologia, para pesquisar o trabalho de inteligência artificial na composição musical.
“Não sei se quando fizer 60 anos vou mudar, mas por enquanto olho para frente. Estou no presente, não sou muito de ficar olhando para trás”
Mas você percebe onde, exatamente, essa experiência mudou o seu jeito de compor?
É uma certa consciência. O disco Só foi feito baseado em método. Viajaria para Coimbra e deixei de ir por causa da pandemia. Então, ficou represado todo aquele material que ia propor para os alunos. Trancada em casa, sem ter o que fazer com aquilo, comecei a compor. E aí tinha uma coisa que não fazia antes, que era um tipo de disciplina que proponho aos alunos. Compus dez canções seguidas, uma por dia. Parecia muito um exercício que poderia dar: uma canção por dia, durante dez dias. E saíram crônicas sobre a pandemia. Ali, vi que a composição estava se aproveitando de todo aquele estudo; aquilo que passaria para os alunos, usei pra mim. Com isso, ganhei no sentido do método.
Errante é um álbum de exaltação dessa vida na estrada, do viajar para levar a arte. Fazendo uma analogia com a sua obra, você é alguém que tem uma carreira como Adriana Calcanhotto e como Partimpim, se desdobra em escritora, ilustradora e professora, pode ser compositora ou intérprete… Você enxerga essa ideia de “errância” dentro da sua obra?
Sim. Sou livre. Passo de uma coisa para a outra sem cerimônia, sem olhar para trás. Me permito isso.
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