Annie Ernaux é destaque da Flip, com programação majoritariamente feminina

Em sua edição de 20 anos, a Festa Literária de Paraty conta com a Nobel de Literatura e homenageia uma negra, Maria Firmina dos Reis, autora do primeiro romance publicado por uma mulher no país.


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No final de 2020, numa conversa com a ganhadora do Nobel de Literatura Annie Ernaux, a feminista francesa afirmou que nós, mulheres, fomos silenciadas por muito tempo, portanto, temos mais coisas interessantes a dizer. Na ocasião, a autora referia-se ao fato de o mercado editorial (desde sempre muito branco, muito hétero, muito masculino) ter finalmente notado as escritoras. Dois anos depois, a fala de Annie poderia ser usada a explicar também a programação da Festa Literária de Paraty, a Flip, que começa nesta quarta-feira (23.11) e segue até o domingo (27.11), comemorando duas décadas, tendo a Nobel como sua mais concorrida atração – e homenageando uma mulher.

Pela primeira vez, a Flip celebra uma escritora negra, a maranhense Maria Firmina dos Reis, que em 1859 publicou Úrsula (Antofágica), tornando-se a primeira brasileira a lançar um romance. Não bastasse o extraordinário de isso ocorrer numa época em que mulheres não controlavam o próprio destino (tampouco podiam estudar e trabalhar), o país vivia sob o regime escravocrata – supõe-se que Maria Firmina nasceu em 1822, mais de 60 anos antes da abolição. Autodidata, a escritora e educadora revela-se ainda uma ativista, o que aparece nas entrelinhas da açucarada e trágica história da jovem Úrsula, em que a autora ousa criticar a opressão feminina e a escravidão – fazendo de seu livro obra inaugural da chamada literatura abolicionista.

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Paraty Walter Craveiro

“A gente percebe que Firmina está inserida em muitas propostas do feminismo, o que reafirma que seu diálogo com projetos estéticos característicos de seu tempo”, diz a tradutora e editora Fernanda Bastos, curadora do evento junto à professora, pesquisadora e crítica literária Milena Britto e ao professor e pesquisador Pedro Meira Monteiro. (Cabe aqui um parênteses: esta é também a estreia de duas mulheres negras na curadoria da Flip).

O trio decidiu-se pela escritora inspirado pelo tema “Ver o invisível”, ideia que norteia a programação, formada majoritariamente por mulheres (de 44 nomes, 30 são escritoras). “A misoginia, o racismo e esses apagamentos – até mesmo entre pares, como as mulheres brancas do século 19 – levam a situações como a de Firmina. O interesse por sua obra vem aumentando, mas a gente acredita que a Flip pode contribuir para que ela ocupe o lugar de importância que tem na literatura brasileira, ao lado de pessoas que merecem visibilidade em vida e nunca estiveram na festa”, explica Fernanda. “Temos de celebrar, mas assim como outras instituições, a Flip tem um passivo com a produção de mulheres negras.”

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Annie Ernaux Ulises Ruiz/AFP via Getty Images

Fora Annie Ernaux – cuja monumental obra foi lançada no Brasil só a partir de 2020 –, o programa principal da Flip traz ainda a estadunidense Saidiya Hartman, a cubana Teresa Cárdenas, as argentinas Rita Segato e Camila Sosa Villada e as brasileiras Amara Moira, Carol Bensimon e Cidinha da Silva, entre outras. Cada uma delas, colabora para desconstruir a ideia de uma “literatura feminina”, seja ao revelar a “invisível” existência travesti (Camila Sosa Villada e Amora Moira), e reafirmando o que deveria ser óbvio: autoras não escrevem somente sobre ou para mulheres. “Claro que em muitas dessas produções, há o combate à misoginia, como na obra (da cartunista) Fabiane Langona, por exemplo, que usa o humor e a ironia de forma contundente para opor-se ao machismo, sem que se possa enquadrá-la em temas específicos”, diz Fernanda. “São mulheres com projetos que nos encantam e traduzem nosso desejo de pensar as várias facetas de ser, se reconhecer e estar no mundo.”

As autoras imperdíveis da 20ª edição da Flip

Quarta, 23.11
20h – Ana Flávia Magalhães Pinto + Fernanda Miranda + Midria + Slam das Minas
Para tratar da vida e obra de Maria Firmina dos Reis, o encontro que abre a Flip reúne Ana Flávia Magalhães, historiadora e pesquisadora do processo de abolição; Fernanda Miranda, professora, estudiosa de autoras negras e editora da revista Firminas – pensamento, estética e escrita; Midria, cientista social, poeta e slammer; e o grupo de poetas Slam das Minas. No encontro, são destacados diversos aspectos literários da obra de Maria Firmina dos Reis – que além de Úrsula, escreveu poemas –, seu ativismo contra a escravidão e a opressão feminina, além de seu papel como educadora.

Quinta, 24.11
10h – Lilia Schwarcz
Uma das mais populares e importantes intelectuais do país, Lilia Schwarcz tem uma obra prolífica, com trabalhos que entrelaçam passado e presente da história do Brasil, por meio de temas como o autoritarismo e o apagamento de pessoas negras. Neste painel, Lilia conversa com o professor de literatura e teoria literária Eduardo de Assis Duarte sobre a literatura brasileira e o período em que Maria Firmina dos Reis atuou, no século 19.

12h – Bessora + Carol Bensimon + Prisca Agustoni
Com mediação da escritora Noemi Jaffe, a gaúcha Carol Bensimon, a franco-gabonesa-suíça Bessora e a suíça Prisca Agustoni se encontram na mesa que trata de escritas ligadas ao deslocamento entre culturas, línguas e formas artísticas.

20h30 – Camila Sosa Villada
A escritora argentina Camila Sosa Villada traduz a experiência travesti em livros como O Parque das irmãs magníficas e o recém-lançado Sou uma tola por te querer (ambos da ed. Planeta), sob a influência do realismo fantástico latino-americano. A mesa que reúne ainda a escritora e dramaturga brasileira Luciany Aparecida, trata de escritoras que inspiram novas formas de contar, com mediação de Nanni Rios.

Sexta, 25.11
12h – Fabiane Langona
As pontes entre poesia, artes visuais, feminismos tematizam o encontro entre a cartunista Fabiane Langona, cuja obra reflete o cotidiano com uma crítica ácida e irônica ao machismo; e a poeta e contista argentina Cecilia Pavón, que teve um papel importante na cultura underground de seu país no final dos anos 1990, por meio de sua atuação na galeria de arte e editora Belleza Y Felicidad. O papo rola com mediação do escritor Joca Terron.

15h – Ladee Hubbard
Racismo, misoginia, gentrificação e preconceitos são temas da estadunidense Ladee Hubbard, que encontra-se com um dos mais importantes jovens autores do país, o carioca Geovani Martins, para tratar da reinvenção de estilos literários, sob a mediação de Edma Góis.

17h – Amara Moira
Outra autora conhecida por revelar a existência travesti, Amara Moira junta-se ao escritor Ricardo Lísias para falar sobre como suas obras borram as fronteiras entre realidade e ficção, conduzidos pela poeta e escritora Stephanie Borges.

20h30 – Nay Jinknss + Nair Benedicto + Davi Kopenawa
Outra artista lembrada nesta Flip, a fotógrafa Claudia Andujar é tema do painel que reúne a fotógrafa Nay Jinknss, a fotógrafa Nair Benedicto e o escritor e líder indígena Davi Kopenawa, que celebram a vida e obra de Claudia, cujo trabalho foi dedicado a dar visibilidade à luta do povo yanomami.

Sábado, 26.11
15h – Annie Ernaux + Veronica Stigger
Mais concorrida atração da Flip, a escritora francesa Annie Ernaux chega ao país num momento especial: acaba de ganhar o Nobel de Literatura e sua obra está sendo lançada pela editora Fósforo. Ao lado da escritora e crítica Veronica Stigger, Annie trata do papel da arte e da força da escrita a partir da narração de acontecimentos e suas memórias. O papo tem mediação de Rita Palmeira.

19h – Saidiya Hartman + Rita Segato
A filósofa e escritora Djamila Ribeiro conduz a conversa entre a estadunidense Saidiya Hartman e a argentina Rita Segatto para tratar de como a literatura é um espaço para dar visibilidade a populações oprimidas pelo racismo, a política colonial e por questões de gênero.

Domingo, dia 27
10h – Teresa Cárdenas + Cida Pedrosa
A escritora cubana Teresa Cárdenas e a poeta brasileira Cida Pedrosa reúnem-se na mesa que destaca autoras que incorporam causas e clamores coletivos em suas obras, sob a mediação de Ludmilla Lis.

12h – Cidinha da Silva
Com uma obra prolífica que inclui contos, ensaios, dramaturgia e crônicas, Cidinha da Silva participa da conversa que destaca modos de narrar o país a partir de perspectivas que não as hegemônicas, ao lado do escritor Cristhiano Aguiar e com mediação de Nanni Rios.

Confira a programação completa aqui. Todas as mesas serão transmitidas no canal do YouTube da Flip.

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