Bruna Linzmeyer: abrindo conversas LGBTQIA+ no cinema

Atriz exibe curta-metragem em um dos maiores festivais do gênero e foca em filmes feito por diretoras.


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Bruna Linzmeyer está feliz com a repercussão de Pantanal, em que interpretou Madeleine na primeira fase da novela. “Sou muito apaixonada por fazer televisão”, disse em conversa com a ELLE. Mas ela tem se dedicado bastante ao cinema, outra paixão.

O bate-papo foi feito pouco antes de a atriz de 29 anos partir para São Francisco (EUA), onde participaria do Festival Frameline, um dos maiores dedicados ao cinema LGBTQIA+ do mundo. Lá, no próximo domingo, 19.06, apresenta Uma paciência selvagem me trouxe até aqui, ao lado de Érica Sarmet, que dirigiu o curta-metragem, premiado pela performance do elenco no Sundance Festival, em janeiro passado. No filme, a cantora Zélia Duncan é Vange, que resolve sair uma noite e encontra quatro jovens (Bruna, Camila Rocha, Clarissa Ribeiro e Lorre Motta).

A atriz também atua em Medusa, de Anita Rocha da Silveira, apresentado na Quinzena dos Realizadores em Cannes em 2021, em um longa-metragem de Juliana Rojas chamado Cidade-campo e se prepara para rodar Controle, baseado no romance de Natalia Borges Polesso, além de uma produção de terror de Cíntia Domit Bittar e um filme de Beatriz Seigner. Como se pode notar, todas diretoras. Na entrevista a seguir, Bruna explica por quê.


Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui (Trailler) | Zélia Duncan

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Por que foi importante fazer Uma paciência selvagem me trouxe até aqui?
Na época, eu estava trabalhando menos com mulheres. Érica agora é uma pessoa não-binária, mas era uma mulher. Sinto muito orgulho de todos os filmes que fiz no passado, mas estava com muita vontade de trabalhar mais com mulheres e com narrativas com uma perspectiva mais feminista. Comentei isso com minha médica ayurveda. E ela me disse que tinha alguém para me apresentar. Era a Érica. Ela é muito inteligente, é pesquisadora, estuda o universo queer, foi alguém muito importante na minha formação mesmo.

A lista de seus últimos trabalhos é só de cineastas mulheres. Foi uma procura, então?
Sim. O ator e a atriz não são proponentes do trabalho, a não ser que escrevam ou dirijam. Como eu comunico o que quero para que esse teste ou convite chegue? Fui fazendo intuitivamente. Eu me interesso por cinema, gosto de assistir a filmes, de conversar com as pessoas sobre isso. Não faço só por dinheiro. Óbvio que a gente tem de pagar as contas, mas a maioria desses filmes, eu não ganhei nada para fazer. É um interesse meu nessas pessoas e nos filmes que elas fazem, independentemente se vou participar deles ou não.

Mas agora você está originando trabalhos?
Agora sim, tenho um monte! Escrevi um curta de animação com a Marta (Supernova), que é minha namorada, chamado Tomate canoa. Está em fase de captação. Tem um longa, Vulkan, que estou escrevendo com a Júlia Zakia, que vai dirigi-lo. E estou escrevendo também um filme que quero fazer lá em Corupá (sua cidade natal, em Santa Catarina), mas esse não é prioridade ainda. Tem também um projeto de série, do qual espero poder falar em breve.

Foram essas conversas com essas mulheres que despertou essa vontade de desenvolver seus projetos?
Nunca tinha pensado em desenvolver um trabalho autoral. Mas fiz um filme com a produtora Vânia Catani, a gente ia muito a festivais e conversava sobre os filmes. E ela falava: “Esse filme aí que você está querendo assistir, você vai ter de fazer, porque ele não está aí”. Nem acho que não está, tem muitos filmes que quero assistir que estão sendo colocados no mundo. Mas existia ali uma provocação dela e que veio de pessoas que gostam de mim. Da Kity (Féo), minha ex-namorada, que trabalha com cinema, também. Acho que as pessoas viram antes de mim que era possível.

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Você não acreditava em si mesma?

Isso faz parte um pouco da nossa estrutura, da estrutura do mundo, né? De a gente duvidar um pouco da gente, do que a gente pode fazer. Como não tenho uma formação acadêmica, ficava muito receosa. Como vou escrever se nunca estudei? Mas a vida também é uma escola. Acabei fazendo cursos de roteiro para me sentir mais segura.

Érica fala sobre a raridade que é ver corpos e relações lésbicas na tela. Imagino que você não tenha crescido com essas referências, mesmo sendo jovem?
Não tinha. Eu nasci nos anos 1990. Minha família é simples, do interior, da roça. Eu tinha acesso à Globo, à Record, à Band. Não ia ao cinema. Não tinha internet ainda. Então não tinha personagens lésbicas, queer na televisão. Não tinha no cinema. Acho que, se a gente pensar, até hoje são poucos os filmes de longa-metragem com narrativas lésbicas. Óbvio que existe uma alegria muito grande de fazer um filme com essa temática.

O filme evita os clichês sobre pessoas lésbicas.
Existem narrativas muito comuns sobre histórias lésbicas. Por exemplo, elas morrem no final. Ou aparece um homem, e elas ficam com ele. Tudo bem, tem gente bissexual, mas não se trata disso. Ou então é uma jornada de dor, de preconceito, de não conseguir coisas na vida. São histórias comuns, que foram muito contadas nas narrativas ficcionais, na mídia, nas entrevistas que a gente dá. E eu me perguntei e me pergunto: por que a dor interessa tanto? Óbvio que a dor existe. Óbvio que nem sempre é fácil. Óbvio que tem muitas coisas que nos atravessam que impedem a gente de fazer as coisas que a gente quer. Mas essa dor não é nossa. Essa dor é do mundo hétero, cis, normativo. Ela vem em nossa direção, e a gente tem de lidar com isso. O que a gente provoca, fabrica e cria não é dor. Não machuca. Não morre no final. Não precisa de um homem para salvar. É nosso. E talvez isso que incomode tanto, o fato de ser autônomo e independente. O filme é uma história de prazer, de alegria, de coletividade, de suporte uma da outra, de valorização do trabalho uma da outra.

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E isso acontece também na forma como ela filma o sexo entre mulheres, que muitas vezes aparece nos filmes como forma de excitação para os homens.
A Érica estuda pós-pornô. Ela falou muito sobre o som. Como a mulher não tem algo visível que mostra seu prazer, como a ereção, nos filmes pornôs o que se usa é o gemido. Mas nem toda mulher geme. Gemer não significa prazer. A Érica escolheu que a cena de sexo entre essas mulheres no filme não tivesse nenhum som. E o filme fala de festa, de prazer. Isso é muito poderoso e tem feito muito sentido para mim. A gente precisa fertilizar esse imaginário, fazer brotar outras imagens do que a gente pode ser, do que pode fazer.

Durante muito tempo, foi difícil para atores e atrizes dizerem que são gays, porque perdiam trabalhos. Para você, o que isso acarretou?
Eu acho bom que essa pergunta chegue porque a gente pode conversar sobre ela. Porque ela sempre é a chamada (da entrevista). E acho importante que a gente pergunte por que a dor interessa? Porque a gente sabe qual é essa história. Eu já dei essa entrevista: “Ah, eu perdi trabalhos, fui cancelada, não sei o quê…”. Mas também muitas coisas chegaram até mim depois de ter dito que era gay. Aí a chamada é: “Bruna diz que perdeu trabalhos”. Por que o que eu perdi interessa mais do que aquilo que foi possível construir na minha vida? Muitos pais e mães falam comigo de um certo receio do que seu filho ou filha LGBTQIA+ vai viver. Porque têm medo de que essa pessoa vá sofrer. E por que têm medo? Porque a notícia que chega para esse pai e para essa mãe é que perdeu trabalho, apanhou na rua, sofreu.

“Existem narrativas muito comuns sobre histórias lésbicas. Por exemplo, elas morrem no final. Ou aparece um homem, e elas ficam com ele.”

Mas isso acontece, não?
Sim, é grave, a gente precisa se atentar e cuidar disso. Mas não é a única coisa que acontece. Enquanto a gente ficar mergulhado na dor, nunca vai ocupar o imaginário para construir outros futuros. Futuros que a gente quer, sonha, imagina, que fazem sentido para a gente. Então, eu provoco a gente a se perguntar por que a perda e a dor entretêm tanto. Não é só por que essa pergunta é feita, mas por que a gente clica na manchete? É uma pergunta para quem está lendo. É uma lógica que talvez a gente possa desviar, desfazer e buscar outras formas de olhar para isso.

Você se vê no papel de provocar esses questionamentos, de abrir conversas sobre as questões LGBTQIA+?
Acho que é uma parte da minha vida. É o que sou. Eu me interesso por isso. Trabalho com isso. Os filmes que estou fazendo, as narrativas que estou contando. Mas não é meu único ponto de interesse. Não é a única coisa que eu sou, nem a única coisa com a qual eu trabalho. Adoro conversar com as pessoas sobre isso. Elas me contam de como foi importante há sete anos ter uma atriz conhecida no Brasil inteiro com sua namorada. E uma namorada que não era nem um pouco normativa, era mais velha do que eu, não estava dentro de padrão de beleza (a cineasta Kity Féo). Foi importante para muita gente, em uma época em que ninguém mais estava falando disso. Sei da importância dessa trajetória que eu construí coletivamente. Porque esse caminho não fiz sozinha. Foi porque a Zélia (Duncan) existe, foi porque todas essas pessoas vieram antes, sustentaram as minhas decisões. Muita gente pôde falar a partir dali. Hoje em dia é uma situação mais tranquila para nós atores, dentro do nosso meio. Tenho muito carinho. Mas essa é mais uma coisa na minha vida.

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