Céu canta de Sade a Grupo Revelação em novo álbum

Compositora paulistana lança seu primeiro álbum como intérprete, Um gosto de Sol, e fala sobre o enfrentamento da pandemia, a maternidade e a experiência de deixar os cabelos loiríssimos.


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A quarentena foi um tempo de reflexão para a cantora e compositora paulistana Céu, 41 anos, que ficou isolada com o marido Pupillo (produtor musical e baterista da Nação Zumbi) e os filhos Rosa Morena, 13 anos, e Antonino, 3, nascido pouco antes da pandemia. Confessando-se pouco inspirada para compor nesse período, ela conta que escreveu apenas uma canção inédita, “Quadrado”, motivada pelo impacto de ver pessoas em situação de rua separadas umas das outras por demarcações inscritas no chão, como medida de proteção contra o coronavírus. “Sou otimista por natureza, mas está sendo difícil”, avalia, sobre os tempos de pandemia.

Desse panorama surge agora seu sexto álbum de estúdio, Um gosto de Sol, o primeiro que lança apenas como cantora, reinterpretando criações de um leque amplo de compositores, como Ismael Silva, João Gilberto, Jimi Hendrix, Rita Lee, Antonio Carlos e Jocafi, Morris Albert, Sade, Beastie Boys, Grupo Revelação e Fiona Apple. Junto a outros autores que Céu já havia interpretado episodicamente (Nelson Cavaquinho, Bob Marley, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, João Bosco e Aldir Blanc, Pepeu Gomes, Fellini, entre outros), esse elenco forma um mapa aproximado dos gostos musicais da artista. O título do disco vem da canção homônima lançada em 1972 por Milton Nascimento, e quer exprimir os sentimentos deste início ainda titubeante de volta à vida como era antes do vírus. “É o que a gente deseja, o Sol, mas, ao mesmo tempo, tem essa coisa ambígua de ser apenas um gosto”, reflete.

Os cabelos loiríssimos expostos na arte de Um gosto de Sol surgiram no ritmo da quarentena: “Foi uma experiência de pandemia mesmo. Não sou assim tão livre de ficar fazendo isso em tempos normais”. Compositora revelada ao público em 2005, quando ela própria imaginava que teria apenas uma trajetória de intérprete, Céu fala na entrevista a seguir sobre a condição feminina – e sobre música, cabelo, filhos, Alcione, isolamento, ídolos…

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Foto: Divulgação/Cassia Tabatini


Um gosto de Sol
é uma volta ao seu começo como intérprete?
Sim. Comecei como cantora, mas mudei o rumo da história e passei a escrever minhas próprias músicas. Acho que precisei de todos esses discos para mostrar quem eu era e chegar hoje a sentir que era esse álbum que eu queria fazer. O Brasil tem essa paixão por cantoras – tinha compositoras, mas a tradição era de homens compondo. Segui essa ideia de que homens compunham, e entrei na música achando que ia ser intérprete. Morei um ano em Nova York (aos 17), e lá cantei muita música brasileira – Ary Barroso, Tim Maia, Jorge Ben. Foi lá que veio o ímpeto de compositora, mas estava na noite cantando. De repente, percebi que estava escrevendo, fazendo umas melodias e umas harmonias e me aventurando numa coisa desconhecida. No meio de uma família que tem relação com música (Céu é filha do maestro e produtor musical Edgard Poças), eu também estava quebrando um protocolo, porque não queria fazer uma linha bossa nova nem tradicionalista. Bem nessa época, Lauryn Hill lançou um disco e compunha, Erykah Badu escrevia, Vanessa da Mata era uma menina que estava começando a compor. E tomei coragem. É justamente essa corrente que me interessa, em que me acho como pessoa, mulher, artista, compositora. São as mesmas portas que a Marrom abriu cantando músicas que não foi ela que compôs, mas provavelmente compuseram para ela. “Pode esperar” (de 1978) é uma música de empoderamento feminino, em que há uma sofrência que, na verdade, é liberdade. Rita (Lee), que abriu todas e tantas portas, se consolidou como uma grande compositora, saindo de uma banda e provando que mulher compõe, num momento em que nem se falava tanto de feminismo.

Foi difícil se impor logo de cara como compositora?
Muito difícil. Você nem sabe por que está sendo difícil, isso é o mais complicado. Você não sabe nem argumentar muito bem, só vai levando caldo, negativa e se sente muito isolada. Você está tentando falar uma coisa e não está sendo escutada. Ser entendida também foi bem difícil. Fui seguindo, não tinha muito nada a perder, do chão ninguém passa (risos). Mas passei por muitas situações. Logo no começo, recebi propostas de contrato de praticamente todas as gravadoras, mas cheguei muito certa do que queria, teimosa que sou (risos). Não estava muito a fim de fazer muita concessão e acabei seguindo uma carreira independente, de formiguinha mesmo. Já ouvi de tudo: “você tem que gravar só em inglês”, “você tem que usar roupa mais curta”, “você tem que falar de coisas mais papo reto”…

Como você fez para selecionar 14 músicas?
Essa parte foi das mais difíceis. Você vai fazendo, buscando um equilíbrio. Foi muito interessante ter curadoria de apoio, que eu nunca tinha tido no (meu trabalho) autoral. Como as canções eram escritas por mim, ficava tudo muito dentro da minha cabeça. E ter pessoas que sabiam o que eu queria fazer, para além do que sempre digo, que gosto de samba, de reggae… Eu quis trazer outras camadas. Fui uma criança nos anos 1990 que ouviu pagode até se acabar: Só pra Contrariar, Soweto, Raça Negra (Céu regravou no novo disco em dueto com Emicida “Deixa acontecer”, 2001, do Grupo Revelação). “Feelings” (sucesso de Morris Albert, 1975), por exemplo, é uma canção que eu não ia gravar se estivesse sozinha (sem a curadoria de apoio). Mas sei que tenho essa cafonice, essa coisa de fossa, tem tudo a ver. Meu pai entrou como curador e sugeriu “Bim Bom” (de João Gilberto, 1959), fez muito sentido para mim. Meu pai sempre fala que eu tomei as aulas que ele não deu (ri). Ele produziu Dominó, A Turma do Balão Mágico, os hits, mas a alma dele é bossa nova. E eu não segui essa linha, mas trouxe uma bossa de outro jeito, com uma levada do Pupillo bem em cima do violão do João.

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Foto: Divulgação/Erico Toscano


Quais são as que vieram da Céu mesmo?
Fiona Apple, por exemplo. Uma compositora, uma menina franzina, que pega um instrumento, teoricamente clássico, que é o piano acústico, e começa a cantar meio rock, grave, com raiva, falando já de feminismo e machismo. “Chega mais” (1979): tinha que ter uma Rita, era desejo meu, profundo. Eu queria Antonio Carlos e Jocafi, gosto muito desse tipo de balanço do Brasil. Até pensei nas mais tradicionais, mas a gente acabou achando, todo mundo, que “Teimosa” (1973, regravada com Russo Passapusso) vestia bem a minha figura (risos). O Revelação também foi uma ideia minha. Emicida também curtia muito, a gente pensou em algumas, no fim chegamos nessa em comum. (O pioneiro sambista) Ismael Silva foi sugestão do meu pai, que tinha uma relação pessoal com ele. Nos anos 1970, minha mãe, já bem rebelde, abriu um bar no Bexiga. Nenhuma mulher abria bar naquela área. E era um reduto de músicos, todo mundo ia para lá, Paulinho da Viola, Jorge Ben, Chico Buarque. Meu pai e minha mãe se conheceram no bar, e lá meu pai ficou muito amigo do Ismael. Do Milton fiz uma lista, mas não tinha pensando nessa (“Um gosto de Sol”), foi uma sugestão do (curador) Marcus Preto. Ela veio muito intensamente neste momento que a gente está vivendo. É o que a gente deseja, o Sol, mas, ao mesmo tempo, tem essa coisa ambígua de ser apenas um gosto. Você pensa nas pessoas dentro de casa, nas pequenas frestas de sol para quem tem a fresta, e também para quem está exposto. A Sade eu ouvia com minha irmã quando tinha 12 anos, tem um lugar de afeto para mim. Aquela mulher cantando cool. Não tenho uma emissão (voz) super alta, forte, e vi nela uma outra forma, com umas letras íntimas, sem grandes genialidades. É só uma escrita, nesse sentido de tirar meu próprio tabu de “como é que eu vou virar compositora se existe o Tom Jobim”?

E essa “loiridão” na capa e nas fotos do disco, o que é?
(Risos) A “loiridão” está muito engraçada, divertida. Foi uma experiência de pandemia mesmo. Primeiro, raspei o cabelo, ficou super curto. Achei uma delícia, ter uma liberdade. Mas também fiquei com saudade do meu cabelo. E antes de crescer muito falei “tenho que realizar meu segundo sonho, que é ver como fico loira”. Pandemia, né? Não sou assim tão livre de ficar fazendo isso em tempos normais. “Será que esse negócio vai dar bom? Pode ficar muito ruim (risos).” No final, foi interessante, porque ficou com cara de Sol. Quando me toquei que era Um gosto de Sol e que isso ia ficar bom, aí pronto, foi perfeito. Voltei a ser morena agora porque peguei um trabalho e me pediram.

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Foto: Divulgação/Erico Toscano

Como está sendo enfrentar a pandemia?
Muito difícil, bem difícil. É muito sinistro, macabro, com esse governo então fica mais difícil ainda. Ainda mais porque tenho duas crianças em casa, isso toma uma proporção bem assustadora. Tentei focar nos ganhos que tive, e um deles foi estar muito perto dos meus filhos, acompanhar duas crianças de idades bem diferentes – uma de 13, outro de 3. Uma está adolescendo, entrou na pandemia uma criança e está saindo uma mulher. E meu menino de 3 mudou muito o comportamento, começou muito danado e está agora mais comedido, mais ressabiado. Eles foram muito minha fonte de alegria, de poder não estar na estrada, estar com eles e assisti-los tão de perto, me assistir como mãe. Muitas vezes, a grande diversão para mim e para as crianças era varrer as folhas na rua só para sair de casa, tomar um ar, ir até a calçada. A gente foi conhecendo nosso micromundo mais ainda, com uma superlupa. Ao mesmo tempo, quando a gente olha para o macromundo, a gente se depara com nosso privilégio monstruoso. É difícil ver o coletivo. Não me senti nem um pouco inspirada para compor, sabe? Tivemos momentos de tristeza extrema, fiquei tentando focar em coisas de revisão de comportamento, de pensamento. Não estamos aqui a passeio, isto aqui não é um rolê para curtir, é para a gente tentar evoluir. Essa pandemia fala muito disso, e a gente tem muito o que fazer, né?

Você nunca tinha ficado tanto tempo sem ir para o palco?
Nunca. Pudemos desfrutar um pouquinho do retorno na Colômbia, que foi o lugar onde voltei a tocar, há mais ou menos um mês. A equipe toda estava muito emocionada de estar junto, uma emoção de sentir a carne e osso de novo para além da tela. Mas é um gosto de Sol, por isso essa expressão é tão perfeita. Ficou bem claro quão dramática é a espécie humana. A nossa existência é drástica, destruidora, egóica. Juro que tento me enganar um pouco porque tenho duas crianças e tenho que entrar no viés da crença numa nova geração. E eu entro, sou otimista por natureza, mas está sendo difícil de fato essa história toda. Tem que ler muito Ailton Krenak, tem que pensar muito sobre os povos originários, tem que decolonizar mesmo o Brasil para a gente começar a entrar numa outra esfera de saber, de empatia, de busca. As redes sociais são muito uma faca de dois gumes. Pode debandar para um outro lado, da vaidade. Volto para minha filha: as meninas estão cada vez mais querendo ficar com a cara do filtro do Instagram. Converso muito com ela sobre o quanto o defeito nos faz sermos nós e o quanto isso é bonito, o quanto é maravilhoso ser única.

O disco do intérprete funcionou também para preencher o vazio da composição?
Sim. Vou recorrer ao que me acende por dentro, que são os meus ídolos. Fiz um disco de fã, na verdade (risos). Verdadeiramente, não me senti inspirada. Só escrevi uma música, quando vi uma cena de um morador de rua dormindo com a demarcação em volta do espaço dele para o vírus não contaminar os outros moradores. Fiquei muito, muito chocada com essa cena, era um quadrado em volta da pessoa, e escrevi “Quadrado”. Só. A música fala sobre o homem naquele quadrado e eu aqui no meu. Estou aqui com os meus, com as minhas crias, estou bem, protegida, e ele ali naquela situação, e no entanto eu não estou bem com isso. É cada um no seu quadrado, pero no mucho. Não, não está funcionando esse quadrado.

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