Conheça o universo de Gabriel Massan

Videogame com temática decolonial do artista brasileiro nascido em Nilópolis é tema de exposição em galeria no Reino Unido.


videogame de gabriel massan
Imagem: Third World: The Bottom Dimension © Serpentine.



Gabriel Massan, de 26 anos, criou-se entre paradoxos. Como cresceu em Nilópolis, no Rio de Janeiro, esse artista visual sempre caminhou entre alegorias e fantasias da tradicional escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, em que seu pai, sua mãe e toda sua família já desfilaram. Entre fevereiro e março, a cidade pulsa ao ritmo do Carnaval. Mas, durante os outros meses do ano, Nilópolis é um lugar duro, cinza de concreto e com poucas árvores. Nas memórias de Gabriel, a praia estava sempre a duas horas de distância, enquanto a violência esperava na esquina de casa. 

Esses paradoxos, embates e desigualdades são transportados por Gabriel para seus trabalhos, mas nunca de forma óbvia. Hoje, Gabriel está em cartaz na Serpentine North Gallery, em Londres, com uma obra em formato de videogame: Third World: The Bottom Dimension traz um universo inteiro que Gabriel construiu para fazer uma crítica decolonial sobre o mundo que já existe.

exposição do videogame de gabriel massan

Exposição de Gabriel Massan e colaboradores na Serpentine North Gallery. Third World: The Bottom Dimension © Serpentine. Photo: Hugo Glendinning

“A Baixada é uma região muito violenta e isso me limitou ao criar algum senso de liberdade, por mais que eu tenha brincado muito na rua desde criança”, conta Gabriel. “Algumas coisas que eram muito naturalizadas, como troca de tiro na minha rua, a boca de fumo na janela da cozinha – porque as casas são todas próximas – ou ainda a patrulha da Polícia Militar em frente à porta da minha casa.” Por outro lado, em sua infância, emergia com força o imaginário do samba, o que despertaria uma certa habilidade – ou até necessidade – de criar histórias, personalidades e mundos. Crescer em uma família do samba é ficar até as 6 da manhã assistindo desfile na televisão, com aquele sabor proibido que a infância dá às pequenas transgressões, como ficar acordado até mais tarde, brincando de inventar outros mundos junto com os adultos.

Mais tarde, na adolescência, Gabriel começou a frequentar uma lan house exclusivamente para jogar The Sims. Quando ganhou um computador do seu irmão, Gabriel não somente jogava muito, como a esmagadora maioria da sua geração, mas também passou a gravar a tela, criar imagens dentro do jogo, dublar as falas e postar no YouTube, com um alcance de quase 60 mil visualizações.

Gabriel fazia novelas para o YouTube, revistas para as comunidades do Orkut e, nesses quatro anos de obsessão, aprendeu HTML, CSS, Photoshop e After Effects. Na faculdade, buscando uma fonte de criatividade, ingressou em Publicidade, curso que abandonou para participar da Futuros, escola de arte, tecnologia e intervenções urbanas no Rio de Janeiro.

Nessa trajetória, Gabriel foi conhecendo outros artistas, como Ventura Profana, que hoje também expõe com o amigo duas obras na Serpentine. Em 2019, Gabriel conheceu Igi Lọ́lá Ayedun e os os dois se inscreveram para suas primeiras residências artísticas. “A gente foi pra Saragoça, na Espanha, e eu não voltei mais”, relembra. “Falei para meus pais que eu ia ficar por três meses, mas perdi minha passagem de volta e, logo depois, veio a pandemia. Por um acaso, fiquei. Nesse período também foi o boom da arte digital sendo compreendida, falada, compartilhada, então, foi um bom timing para estar aqui e entender quais caminhos se desenhariam para mim.”

Gabriel Massan

Gabriel Massan: mundos fantásticos abordam colonialismo e outras temáticas. Foto: Harry Richards

Hoje, Gabriel se identifica como bicha preta e acolhe qualquer pronome, seja ele, ela ou elu, mas ressalta que fora do país as pessoas utilizam o pronome neutro da língua inglesa, they/them (nesta matéria, optamos também pela escolha mais neutra: elu).

Gabriel criou seu primeiro game em 2020 para o Festival Imersivo das Favelas, um festival-galeria em que obras digitais imersivas feitas por jovens de diferentes comunidades do Brasil estavam expostas simultaneamente. Batizado de Iroko, o jogo foi descrito pelo Festival como um grande parque digital que o usuário pode explorar livremente, povoado por esculturas e árvores fantásticas.

Não raro, o trabalho de Gabriel é descrito como afrofuturista. Seu segundo jogo, Third World: The Bottom Dimension, no entanto, escapa dessa estética ao construir um universo alternativo com personagens que não são nem ao menos humanos. 

Levantar uma crítica decolonial de uma forma comunicativa, curiosa e excitante, que não está apontando culpados, tem sido interessante. É uma exposição que está sendo acessada por crianças e idosos.

O videogame foi comissionado pela Serpentine North, galeria londrina focada em trabalhos interdisciplinares desenvolvidos por tecnologia de ponta. Ao todo, foram dois anos de desenvolvimento em uma equipe de dez pessoas, juntamente com a equipe de arte tecnológica da Serpentine Galleries. “Foi um processo bem colaborativo, em que eu convidei para trabalharem junto comigo a Castiel Vitorino Brasileiro, O Novíssimo Edgar e a LYZZA, que fez o sound design e conectou toda a atmosfera do jogo”, conta Gabriel. “De início, a ideia era ser uma plataforma para artistas de outras práticas experimentarem com o conceito de worldbuilding e ser esse grande laboratório de experimentação com jogos e storytelling. Depois, com o interesse da Serpentine, o projeto se expandiu.”

exposição do videogame de gabriel massan

Third World: The Bottom Dimension © Serpentine. Photo: Hugo Glendinning Photo: Hugo Glendinning

Como é o videogame de Gabriel Massan

Third World: The Bottom Dimension tem dois níveis. A narrativa do primeiro nível foi pensada por Castiel Vitorino e é conectada com as relações de memória e experiências de cura. “Visualmente, esse nível é como uma grande floresta, em que você não consegue dizer se essa floresta está viva, morta ou desmatada. Você entra no território e descobre mais três cenários dentro desse universo”, detalha Gabriel. Como Third World é um jogo open-map, quem joga pode explorar o universo livremente sem um roteiro obrigatório e, assim, cada um pode entrar em contato com a narrativa de forma própria. Tematicamente, o nível de Castiel Vitorino destaca-se por criar uma narrativa que manipula o jogador, levando-o a questionar de que lado realmente se está jogando dentro da história.

Já a narrativa do segundo nível foi criada por O Novíssimo Edgar e aborda a desertificação, poluição e neocolonialismo ecológico. “É um território desértico que foi colonizado, em que existe uma toxina no ar. É uma situação, porém, que não faz mal para os habitantes. Na verdade, trata-se de um esquema de defesa que eles mesmos desenvolveram e se adaptaram”, detalha Gabriel, Nesse contexto, os “headquarters” são os que plantam árvores para limpar o ar, melhorar a visibilidade local e continuar a expandir essa dominação do território. “Então, tem uns conceitos que são invertidos, mas que fazem sentido com o tempo que a gente está vivendo e com o que a gente vai viver.” 

Essa é a primeira exposição individual de Gabriel Massan e conta com texto de Jota Mombaça. “Eu tinha um anseio de traduzir minha percepção como imigrante”, revela Gabriel. “E também por ter vivido no Brasil durante o governo Lula, ter entrado na faculdade por cotas e ter visto o Bolsonaro chegar ao poder. Depois, eu me vi na Europa numa crise de refugiados e agora numa guerra. Em vez de construir uma história de representação, quis canalizar todos esses confrontos territoriais em que naveguei durante esse tempo. Também queria levantar o conceito de Terceiro Mundo, que é uma coisa que eu ouvi durante a minha vida inteira e que, no meu processo artístico, também me colocou numa posição subalterna, consciente e inconsciente, em relação à produção artística global. A ideia de Terceiro Mundo é tão popular e presente em diferentes culturas que, como eu estava falando sobre mundos e outras possibilidades de existência, senti a necessidade de trazer essa ideia para brincar um pouco com a ignorância da audiência que acessaria a exposição no Norte global.”

exxposição do videogame de gabriel massan

Visitantes jogam o videogame criado por Gabriel Massan na galeria londrina. Third World: The Bottom Dimension © Serpentine. Photo: Hugo Glendinning

Ao todo, Gabriel criou por volta de 70 esculturas digitais, com inspirações que vieram de todo lugar, como figuras religiosas, insetos e catálogos de brinquedos antigos. Durante o processo de desenvolvimento de Third World, Gabriel mudou sua forma de criar texturas, trazendo mais elementos de pedras e corais para seus desenhos. Em constantes trocas com Castiel e Edgar, Gabriel criava, passo a passo, um cenário, um clima, condições de jogo, história base e, então, os personagens.

“No Reino Unido, a exposição está sendo incrível, porque é um território que foi um grande agente na colonização do Ocidente, que ainda coloniza e usufrui disso, mas onde a questão do colonialismo não é tão abordada”, afirma. “Levantar uma crítica decolonial de uma forma comunicativa, curiosa e excitante, que não está apontando culpados ou apresentando conceitos fechados, tem sido interessante, porque é uma exposição que está sendo acessada por crianças e idosos, sabe? Eu tenho visto famílias e muitos grupos de estudantes. Para mim, a exposição é muito sobre revelar em vez de recriar violências, mas com um quê meu, que é cartunizado e interessante para diferentes audiências. Por essa magia que fica em torno dos universos e personagens, nem o que é violento é de fato tão violento. Acho que a violência, no meu trabalho, aparece mais como uma forma de criar uma certa confusão dos signos e símbolos, levando você a se perguntar: onde você está e quem você é nesse espaço?”

Na exposição Gabriel Massan & Collaborators: Third World: The Bottom Dimension, os visitantes podem jogar o game, além de conferirem trabalhos de Castiel Vitorino Brasileiro, O Novíssimo Edgar, LYZZA, Jota Mombaça e Ventura Profana. A mostra fica em cartaz na Serpentine North Gallery até 22 de outubro. Mas se você não está em Londres também pode conferir a criação de Gabriel Massan. O download do jogo pode ser feito gratuitamente no site da Serpentine Galleries.

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