Já é hora de mudar de fase nos games

A batalha contra a hegemonia do herói branco e cis ganha novos aliados no ambiente virtual. Saiba por que a representatividade nos jogos não é brincadeira.

Alguns números da indústria dos games para dar o start nesta reportagem: são mais de 2,3 bilhões de usuários no mundo. O setor arrecadou cerca de 137,9 bilhões de dólares em 2018, de acordo com a empresa especialista em análise no mercado de games Newzoo. No mesmo período, o cinema faturou cerca de 41,6 bilhões. Games atraem mais consumidores do que Hollywood, do que a indústria fonográfica ou do que o mercado de livros. Só perdem para a televisão – ao que tudo indica, não por muito tempo. Como deixou claro o CEO da Netflix Reed Hastings na divulgação do relatório trimestral de 2019, o maior adversário da plataforma de streaming não é a HBO, e sim o Fortnite.

Esses dados dão uma dimensão do alcance dos jogos no mundo. E, como dizia Ben Parker, com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. Não é à toa que usuários, grupos e coletivos vêm discutindo há tempos questões fundamentais para que o espaço dos jogos seja saudável e respeite a diversidade de seus bilhares de usuários. Uma pesquisa recente, aliás, desmonta o mito de que o universo dos games é predominantemente masculino. De acordo com um levantamento divulgado este ano pela PGB (Pesquisa Game Brasil), 53,8% dos usuários/jogadores no país são mulheres.

“Parece clichê dizer que representatividade importa, mas a verdade é simplesmente essa: representatividade importa! Não só importa como é necessária”, afirma a musicista Denise Ferreira, 29 anos, integrante do coletivo
Preta, Nerd & Burning Hell, que reúne mulheres pretas e fãs da cultura geek dentro do espaço virtual para discutir a respeito de quadrinhos, séries, filmes e jogos, tendo em vista os recortes de raça, gênero e classe. Denise ressalta que a representatividade contribui para um sentimento de pertencimento, além de proporcionar novas visões e possibilidades para o futuro. “É preciso que pessoas dos mais variados corpos, cores, gêneros e formas sejam representadas em todos os espaços que envolvem produção de conteúdo. O mundo é diverso, as pessoas são plurais, nossas vidas e identidades são únicas e isso deve fazer parte do imaginário coletivo”, diz ela.

A tradutora de jogos e estudante de pedagogia Daniela Razia, de 43 anos, acompanha a evolução dos games há 35 anos e traz algumas constatações: a maioria dos jogos de hoje exige um celular ou um PC superpotentes, o que não contribui para democratizar o acesso; e os ataques racistas e a falta de diversidade são uma realidade no ambiente dos games. Mas há sinais de melhoras. “É uma emoção poder escolher um personagem e se reconhecer nele. E só tive algumas poucas vezes essa sensação”, conta ela. Atualmente, Daniela tem como referência a gamer e nerd
Saffista, mulher negra e LGBTQIA+. “Ela foi a primeira mulher mais velha que encontrei [no mundo dos games], sempre me considerei a mais velha nas rodas”, conta Daniela.

“Todas nós precisamos de referências reais e fictícias nas quais nos inspirar”, diz a pesquisadora Anne Quiangala, 30 anos, fundadora e idealizadora do
Preta, Nerd & Burning Hell. Em sua tese de mestrado, Anne dissertou sobre a representação de heroínas negras nos quadrinhos mainstream da Marvel. “A representação estética é um pilar da vida social, porque existe uma relação entre se ver e ‘existir’; fora que ‘heroínas’ são aquelas que lutam por nós, pelos nossos valores, e estão onde nós virtualmente não podemos estar”, explica a pesquisadora. Anne vê um paralelo entre defender um mestrado e estar no contexto gamer. “São experiências parecidas, porque ambos os espaços são moldados pela perspectiva hegemônica, e o simples fato de ‘estar’ já incomoda bastante, pois desafia o imaginário limitado dos privilegiados”, diz ela. E a ocupação desses espaços se faz necessária tanto fisicamente quanto virtualmente. Vale relembrar aqui um trecho do Manifesto Ciborgue, da bióloga e filósofa Donna Haraway: “Realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo”.

Guerreiras negras

Entre as iniciativas para romper a bolha hegemônica no entretenimento virtual, um dos destaques é o jogo
Dandara, baseado na guerreira negra Dandara dos Palmares. Criado pela Long Hat House, dos desenvolvedores João Brant e Lucas Mattos, o jogo 2D conquistou o prêmio de Melhor Design e Melhor Jogo Brasileiro pelo Brazil Games Awards em 2018. No mesmo ano, integrou a lista dos 10 melhores jogos do ano elaborada pela revista Time.

Outra referência é o game
Angola Janga: Picada dos Sonhos, inspirado na HQ Angola Janga: Uma história de Palmares, de Marcelo D’Salete, vencedor do prêmio Jabuti de 2018. O game é uma criação do Sue The Real, estúdio da dupla Marcos Vinícius e Raquel Motta, reconhecido pela Drops Jogos como a desenvolvedora do ano de 2019. Ambos desenvolvedores negros, Marcos e Raquel partem de narrativas não eurocêntrica, focadas em histórias afro-brasileiras. “A liberdade na criação dos jogos me fez refletir como a indústria falhava na representação dos negros e muitas vezes nos reduzia a personagens estereotipados, ocupando sempre o papel de figurantes, membros de gangues e principalmente vilões”, diz Raquel.

 

Game do Sue The Real foi inspirado em HQ de Marcelo D’Salete.

 

Segundo a desenvolvedora, há ainda pouca abertura para mudanças significativas, mas a indústria está avançando nessas questões, ainda que a passos curtos. “Essa luta também tem chegado a grandes empresas. Recentemente nós nos tornamos embaixadores da Nvidia, uma das maiores produtoras de placa de vídeo para videogames e computadores gamers”, conta ela. “Essa união só aconteceu porque fomos escutados. Juntos, temos pensado diversas ações que possam de forma positiva impactar uma mudança na comunidade negra e periférica, que tanto sonha em ter equipamentos de qualidade para se divertir e trabalhar.”

Gigante do setor conhecida por títulos como
League of Legends, a Riot lançou recentemente o jogo de tiro Valorant, que traz uma personagem brasileira, baiana e negra. Batizada de Raze, ela tem sotaque soteropolitano e é uma das personagens mais fortes do game, diz a head of publishing da Riot, Priscila Queiroz. “A receptividade dos jogadores brasileiros foi ótima. Temos orgulho de ter a Raze representando o nosso país com todas as características dela”, diz Priscila. Para reforçar a brasilidade da personagem, Valorant conta ainda com a música Saci, do grupo BaianaSystem.

A Riot tem investido também em iniciativas para demonstrar seu compromisso com a comunidade LGBTQIA+. Desde 2018, a empresa promove ações no Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia. A cada ano, cria um
ícone (elemento decorativo para personalizar o perfil do usuário) que pode ser adquirido pelo jogador para expressar seu apoio à causa enquanto joga League of Legends ou Teamfight Tatics.

E a empresa do LoL não é a única a abraçar a diversidade sexual. “Em alguns jogos muito famosos têm aparecido personagens LGBT, o tema tem sido abordado de maneira bem bacana”, diz a youtuber e gamer Mandy Candy. “Imagina um cara mega lgbtfóbico descobrindo que o personagem que ele curte é gay? E vendo que nada vai mudar.” Um dos exemplos mais recentes, cita ela, é o jogo
The Last of US Part 2, em que a personagem principal é lésbica. A gamer conta que teve muita gente criticando, falando que não era necessário ou que estavam querendo “lacrar”. Mas no fim das contas, todo mundo quer se ver representado. “Então, é de extrema importância ter personagens que quebrem a barreira do homem cis branco salvando o mundo”, resume Mandy.

Assédio e sexismo

As questões a serem debatidas no mundo dos games, no entanto, vão além da representatividade na tela. Tanto para usuários quanto para criadores, esse é um ambiente frequentemente hostil para mulheres, como há anos aponta a ativista canadense Anita Sarkeesian, fundadora da organização sem fins lucrativos, Feminist Frequency. Anita é criadora da série
Trope vs Women in Video Games (2013-2017), em que analisa como jogos eletrônicos reforçam estereótipos femininos e padrões sexistas. Além de reconhecimento, a série também rendeu a Anita inúmeros episódios de assédio virtual. Recentemente, a canadense lançou The Games and Online Harassment Hotline, um canal gratuito na internet dedicado a atender jogadores e pessoas da indústria de games que estejam passando por problemas emocionais provocados por assédio ou outros fatores.

 

Na série Tropes vs. Women in Video Games,
Anita Sarkeesian fala sobre sexismo nos games.

 

Na Riot, Priscila Queiroz afirma que faz parte da missão da empresa criar um ambiente cada vez mais saudável em seus jogos e fora deles, nos canais de comunicação, para que qualquer indivíduo se sinta confortável e se divirta ao jogar e interagir com os outros. Isso inclui desencorajar comportamentos inadequados entre os participantes. “Todos os jogadores devem ler e concordar com os Termos de Serviço da Riot Games, que reforçam que a empresa se reserva o direito de tomar medidas disciplinares apropriadas, inclusive banimentos temporários, suspensão, ou encerramento e exclusão da conta, no intuito de proteger a integridade e o espírito esportivo em seus jogos”, avisa Priscila.

O cenário é hardcore, e para passar de nível a indústria dos games ainda tem muito a evoluir – e não estamos falando de gráficos hiper-realistas ou consoles poderosos. Como destaca Tomaz Tadeu ao comentar o
Manifesto Ciborgue no livro A antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano: “Tecnologia não é neutra. Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de nós. Vivemos em um mundo de conexões”.

Esta reportagem foi publicada originalmente em agosto de 2020, na ELLE View, nossa revista digital mensal. Faça a sua assinatura e tenha acesso a todas as edições.