Em um breve capítulo do livro
Painting Photography Film (1925), em que defende o reconhecimento da fotografia e do cinema como arte, tal como a pintura, o artista László Moholy-Nagy (1895-1946) faz uma descrição do que seria um museu virtual quando a internet ainda nem sonhava em existir. Sua ideia era transformar a casa em uma “pinacoteca doméstica”, com imagens de obras de arte projetadas nas paredes como uma instalação. O arquiteto e designer Frederick Kiesler imaginou também algo parecido em Telemuseum (1926), em que as pinturas chegariam direto do Louvre ou do Prado até a casa das pessoas por meio de imagens, escolhidas para serem mostradas de acordo com cada ocasião.
Os dois projetos são citados com frequência como uma das origens dos museus virtuais, que só passaram a existir de fato nos anos 1990. Mas algumas de suas bases já apareceram ali – como o fator interativo, inovações de espaços expositivos e o consumo artístico trazido para o cotidiano em forma de reproduções. Claro que esses modelos ainda estavam bem distantes do que se concretizou com a chegada dos computadores pessoais e outros dispositivos conectados à internet. Tudo isso mudou ainda mais radicalmente com a Web 2.0, já nos anos 2000, quando surgem recursos que permitem maior participação dos usuários, como blogs e redes sociais.
Quase um século depois, as ideias pioneiras desses artistas de vanguarda, interessados no uso de novas tecnologias tanto na produção artística quanto em sua exibição, parecem ter ganhado ainda mais sentido com o fechamento dos museus durante a quarentena. Considerando a quantidade de
acervos disponíveis online para visitas virtuais, dá para organizar pinacotecas domésticas de todos os tipos com variadas exposições ao dia. Os museus, como outros tantos eventos culturais, de fato se teletransportaram para dentro das casas de uma maneira que nem conseguimos mais assimilar.
Se está difícil acompanhar tanta programação online, o que parece ter ganhado força nesses meses de confinamento são outros tipos interações com obras de arte além da percepção apenas visual. Um exemplo são as fotos de pessoas recriando cenas de pinturas famosas na hashtag colaborativa #betweenrtandquarantine. A campanha foi lançada em março pelo Getty Museum e rapidamente viralizou, reunindo hoje mais de 46 mil compartilhamentos no Instagram. Muitas aparecem também na principal hashtag adotada por museus na quarentena: a #museumsfromhome, com cerca de 156 mil postagens nessa rede.
As versões inspiradas no contexto da pandemia são as mais populares nesse acervo de museus domésticos. Moça com brinco de pérola, de Johannes Vermeer, ganha uma versão com panos de limpeza e frutas; uma releitura de Os Amantes (1928), de René Magritte, mostra um casal se beijando com os rostos cobertos com panos de prato; A Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632), de Rembrandt, é recriada por um grupo de médicas em um hospital; enquanto A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, é a campeã de versões – muitas com o encontro dos apóstolos adaptado para as telas das plataformas de encontros virtuais, outro meme que viralizou usando a pintura.
Grandes museus como Metropolitan Museum of Art, de Nova York, também aderiram a uma campanha parecida com a hashtag #mettwinning, pedindo ao público que reproduzisse, à sua maneira, imagens de obras do acervo permanente. A ideia parece ter funcionado ao menos em termos de engajamento pelas redes: desde o início da quarentena, a instituição ganhou quase 200 mil novos seguidores. Antes disso, já era o segundo no mundo com maior adesão nessas mídias, como aponta pesquisa realizada pelo The Art Newspaper, reunindo um total de 10 milhões de seguidores no Instagram, Twitter e Facebook.
Arte na era do Instagram
Nesses cinco meses desde que fecharam seus espaços físicos, já é possível fazer um balanço inicial de como as instituições se viram às pressas obrigadas a rever sua programação, cancelando ou adiando exposições e adaptando o conteúdo das mostras
para versões online, e de como essa mudança se reflete na comunicação com o público por meio das redes sociais – que ainda parece ser o foco principal de grande parte das instituições. Se a atenção excessiva nessas mídias soa às vezes como uma solução improvisada e revela a ausência de uma programação criada para a internet, por outro lado a estratégia reforça o papel cada vez maior dos museus como articuladores críticos do mundo contemporâneo – e a comunicação por esses meios parece ganhar uma função ainda mais relevante.
Muitas vezes, no entanto, na ânsia de alcançar um maior público e se manter em constante visibilidade, nem sempre esse engajamento vai além de interações pensadas como puro entretenimento. O que o sucesso de campanhas como #betweenartandquarantine revela, por exemplo, é como as instituições passaram cada vez mais a incorporar febres que surgem espontaneamente em redes sociais. Essa ideia, afinal, não era uma novidade: outra hashtag já mapeava pessoas vestidas com roupas iguais às obras em #peoplematchingartworks, projeto criado pelo fotógrafo Stefan Draschan. O #museumselfieday também nasceu de um post no Twitter em 2014
da inglesa Mar Dixon – e hoje é adotado por museus de todo o mundo. Já durante a quarentena, outro caso que causou espanto foi a tradicional galeria Uffuzi, em Florença, um dos primeiros museus a criar um perfil no TikTok e incorporar sem pudor a linguagem jovem e irreverente da nova rede.
Não que esse fenômeno de obras de arte misturadas à cultura visual contemporânea, como a dos memes, tenha começado agora ou mesmo com o surgimento da internet. Em “O Museu Imaginário”, ensaio escrito em 1947, o escritor e historiador da arte André Malraux antecipou muito do que vemos acontecer agora com a circulação de imagens artísticas em redes. Já naquela época, ele apontava a transformação trazida com a reprodução fotográfica e os livros de arte, quando “as artes plásticas inventaram a sua imprensa”, como escreveu. Depois disso, defende que a história da arte passou a ser “a história do que é fotografável.”
Claro que o alcance dessa mudança ganhou outras proporções com as redes sociais – e o Instagram é talvez o melhor exemplo. Criado há dez anos, o aplicativo acompanhou as transformações nas políticas dos museus ao permitir que se tire fotos dentro de suas galerias expositivas, o que passa a acontecer por volta de 2011. Desde então, o visitante se tornou também um arquivista e curador de suas próprias coleções na forma como organiza as imagens em seu perfil pessoal ou alimenta hashtags colaborativas. E o que surge nessa rede se torna um grande banco de dados para pesquisas sobre obras, artistas e exposições.
Digital além das redes
Por outro lado, o que ficou claro durante o período da quarentena foi como muitas instituições passaram a encarar as redes sociais nesses últimos anos quase como a única entrada no universo digital. E enquanto criam campanhas de engajamento para aumentar seus seguidores, pouco se ouve falar de produções artísticas para a internet ou incorporações de obras em mídias digitais em seus acervos. Com exceção de projetos como
artport, do Whitney Museum, de Nova York, que comissiona trabalhos de net art desde 2001; ou o ZKM, na Alemanha, referência por colecionar arte digital, mesmo museus poderosos como o MoMA se mostraram pouco preparados para uma programação virtual interessante. O projeto Virtual Views, por exemplo, anunciado com alarde pelo diretor do MoMA, Glenn Lowry, em um story no Instagram, foi lançado quase um mês após o fechamento e decepcionou por não trazer recursos muito inovadores.
No caso do Brasil, a ausência de uma programação por parte dos museus voltada para o digital é ainda maior, também por uma questão econômica. Por falta de verbas para digitalizar e disponibilizar importantes coleções de artemídia e videoarte, como o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), muitas vezes não há uma equipe de profissionais técnicos capacitada para lidar com esse tipo de trabalho, que traz novos desafios em termos de exibição e preservação.
Nesse sentido, instituições privadas com mais recursos, como o Instituto Moreira Salles, saíram na frente em programas como o
IMS Convida, comissionando até agora 125 artistas e coletivos a criarem trabalhos durante a quarentena. Além de incentivar obras em diferentes linguagens, o projeto abarca também outras demandas no papel dos museus em responder a crises globais de grandes proporções como essa, priorizando uma grande variedade de identidades de raça, gênero e regiões do país na seleção dos nomes contemplados.
Há também iniciativas independentes que ganharam mais espaço nesses últimos meses como o
aarea, plataforma criada por Marcela Vieira e Livia Benedetti que comissiona obras de net art a artistas com produções não necessariamente ligadas ao digital. Mas por não contarem com o suporte de uma instituição, apresentam limitações. É possível apenas ver os trabalhos por um período específico, como uma mostra temporária. Não há como explorar o acervo do que já foi feito, por exemplo, o que envolveria um sistema mais caro e complexo.
Com a reabertura dos museus anunciada para os próximos meses – grande parte das instituições na Europa já reabriu, enquanto no Brasil muitos voltam a funcionar em setembro – muitas dessas questões ainda vão permanecer como desafios. O número de mostras temporárias vai ser reduzido drasticamente – e as chamadas exposições blockbusters, que atraíam milhares de visitantes e eram usadas como critérios para atrair patrocinadores, vão sair de cena por um bom tempo, obrigando as instituições a olharem mais para suas coleções.
Por enquanto, iniciativas como #betweenartandquarantine e #mettwinning podem até ser um bom começo para isso – especialmente no caso do Metropolitan, concentrando a campanha em obras do próprio acervo. Mas dificilmente febres como essas vão perdurar por muito tempo, tampouco atendem às novas funções que os museus precisam assumir em tempos de grandes transformações. E nem sempre o que viraliza nas redes tem a mesma proporção dos desafios enfrentados no mundo real, como os que vivemos hoje.