Consumo do futuro no presente

A quarentena acelerou a implementação de novas formas de compra: mais high-tech e mais devagar (ainda bem).

Dentro de casa, com um cartão de crédito na mão e muito tempo livre. Esta é a situação de bastante gente durante o isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19. Mesmo com shoppings reabertos, há quem prefira não arriscar para apenas dar uma olhada nas vitrines. Isso sem falar nas restrições – provadores de muitas lojas ainda estão fechados, e por tempo indeterminado. O jeito é clicar, navegar, dar scroll. E as marcas sabem disso.

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Ilustrações @victoramirabile

 

Segundo pesquisa realizada pelo movimento Compre & Confie, em parceria com a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm), o e-commerce brasileiro faturou 56,8% a mais nos cinco primeiros meses de 2020 em comparação com esse mesmo período do ano passado. Já um levantamento feito pela Infobase Interativa dá conta que 13% da população brasileira fez compras virtuais pela primeira vez neste ano. Assim, a quarentena não só aumentou a presença do e-commerce como tem criado novos hábitos. E já tem muita grife correndo para atender essas necessidades recém-criadas.

Batendo perna em lojas, mas sem sair de casa

“Sabemos que a pandemia acelerou em cerca de 5 a 10 anos muitas coisas que já iam acontecer”, diz Luciana Wodzik, diretora da Arezzo. A etiqueta de calçados lançou, em julho deste ano, uma nova loja no Shopping Morumbi, em São Paulo. Além de um simples espaço comercial, é ali que a marca realiza suas sessões de compras ao vivo. Chamadas de live shopping, são apresentações transmitidas pela internet em modelos não muito diferentes daqueles que víamos na televisão, no estilo Shoptime ou Polishop. A diferença é que, em vez de ligar para um 0800 para adquirir uma poltrona vibratória ou uma panela de vidro, os consumidores podem fechar a compra online.

A ferramenta já era bombada na China e teve sua chegada ao Ocidente adiantada por conta do isolamento social. No país asiático, o mercado de compras ao vivo já vale quase 4,4 bilhões de dólares e tem mais de 450 milhões de espectadores. Para garantir um espaço o quanto antes nesse segmento, redes varejistas como Americanas e Renner colocaram em sua agenda semanal o encontro de seus consumidores com influenciadoras e celebridades que mostram e comentam lançamentos e produtos disponíveis. E, a exemplo das milhares de lives que começaram a rolar em março, em julho houve uma proliferação de sessões de live shopping.

A Farm, por exemplo, lançou a Lojix, em que o time de criação mostrava suas apostas de estampas e shapes, como uma maneira de complementar a experiência da venda online. A live de lançamento teve, de acordo com a assessoria de imprensa da marca, um pico de 7 mil espectadores. “O que prevemos é que cada loja e vendedora possam fazer a sua própria live, multiplicando a possibilidade de venda por 2,5 mil pessoas, levando em conta funcionários e vendedoras Farm”, fala um porta-voz da etiqueta.

O engajamento dentro desses ambientes pode refletir no volume de venda. A Schutz lançou, simultaneamente, as coleções Urban Sneakers e Tie-Dye Vibes em uma live feita no Instagram, no Facebook e no YouTube, com a possibilidade de compra ao vivo. De acordo com números divulgados pela marca com exclusividade para a ELLE, a ação aumentou o volume de vendas diretas para o consumidor final em 50%, enquanto, em receita, houve um crescimento de 41%.

Com as lojas fechadas e com muitos clientes ainda receosos em sair de casa, transportar para o digital parte da experiência de consumo presencial se tornou via de regra no mercado. Além das compras ao vivo, outra importante ferramenta é a realidade virtual. Marcas como Obsess e Dior permitem, com a tecnologia, que você bata perna em suas lojas sem precisar, de fato, estar nelas. Já a SKMMP, aceleradora que tem parceria com a Prada, oferece um showroom virtual com modelos holográficos que vestem os looks para permitir uma melhor compreensão sobre o caimento das peças. “[Essa forma de realizar vendas] É tudo o que o consumidor busca no momento: levamos a loja e os produtos para a casa dele com conteúdo, entretenimento e, claro, segurança”, fala a diretora da Arezzo.

Drive-thru da moda

A Europa, região bastante afetada pela pandemia no início do ano, já ensaia uma reabertura com a chegada do verão. Assim como no Brasil, há muitas restrições dentro de centros comerciais: entrada apenas com máscara, distanciamento social obrigatório, número limitado de pessoas dentro das lojas. São protocolos necessários, mas que causam limitações. A automatização das lojas surge como uma forma de garantir a segurança de clientes e funcionários

Estabelecimentos como Bershka e Lefties, por exemplo, contam com caixas de autoatendimento. O próprio consumidor empacota, retira travas de segurança e fecha sua compra. Pagamentos mobile via app, sem contato, permite que ninguém se contamine. Não há trocas de itens de mão em mão.

Uma vez que não podemos testar o novo batom da Fenty by Rihanna no dorso da nossa mão, a Sephora tem evitado idas desnecessárias às lojas físicas oferecendo a possibilidade de fazer compras pela internet ou por telefone e ir ao ponto apenas para a retirada do produto, o que diminui o tempo de exposição. A Amazon, por sua vez, permite, em países como os EUA, a retirada de compras em compartimentos, evitando o contato entre atendente e cliente. No Brasil, a C&A oferece um serviço semelhante, chamado de drive-thru.

 

Em busca do fit virtual perfeito

São tentativas de diminuir as interações não essenciais e passar segurança para os consumidores. Mas ainda há um grande contratempo para lojas de roupas: os provadores. O cubículo, antes um ponto de encontro disputado, se tornou sufocante, assustador. É onde há mais chances de acontecer a transmissão do novo coronavírus, já que são várias pessoas em um espaço mais fechado, em contato com os mesmos produtos. Há marcas que fecharam a área, impossibilitando que os clientes experimentem as roupas, outras investem na desinfecção diária de seu estoque. Cada um tem dado seu jeito, mas os mais antenados descobriram a resposta no nosso smartphone.

Comprar roupas pela internet pode ser difícil para muita gente, principalmente para pessoas gordas ou muito magras. São corpos que podem não ser contemplados pela grade P, M e G. Mas, em quarentena, não há muita saída a não ser confiar na tabela de medidas das lojas na internet, certo? Não exatamente. Aplicativos de realidade aumentada e que usam técnicas de machine learning fazem as vezes de provadores aos clientes em busca do fit perfeito.

É o caso da Bigthinx, de Milão, cujo o aplicativo Lyfsize calcula as medidas do corpo com duas fotos de celular. Segundo a empresa, a aplicação acerta 95% das vezes. Já a Nike lançou, muito antes da pandemia, o Nike Fit. A aplicação escaneia o pé do consumidor, coletando 13 pontos diferentes para mapear o formato dele em alguns segundos. Os dados ficam guardados em sua conta da Nike e podem ser usados em compras online futuras. Esse tipo de tecnologia auxilia o cliente a encontrar o número de seu calçado, dependendo da finalidade e o tamanho da fôrma de cada modelo.

Isso não significa o fim das lojas físicas. Assim como durante a quarentena, os pontos de vendas devem se tornar, na realidade, um complemento da compra online. De acordo com analistas da ABComm, elas devem focar em fornecer experiências diversificadas de troca e retirada dos produtos.

Look de robô

Mas e se, além de tornar o processo de compra mais divertido, o computador pudesse prever o que teria chance de ser mais vendido e consumido na próxima temporada?

Em 2018, a grife norte-americana Tommy Hilfiger se uniu à empresa de tecnologia IBM e aos estudantes do FIT (Instituto de Tecnologia da Moda, na sigla em inglês) para fazer um experimento com inteligência artificial. Eles aplicaram a ferramenta de IA em 15 mil imagens de produtos da grife, 600 mil fotos de desfiles e por volta de 100 mil padronagens encontradas em sites de fornecedores têxtil. A máquina devolveu, então, silhuetas-chave, cores e novas estampas que foram inspiração dos alunos do instituto de ensino.

Esse é apenas um exemplo de como a inteligência artificial tem, também, interferido no processo de criação das marcas. E nem precisamos ir muito longe para ver mais sobre isso: a Amaro analisa dados a partir do comportamento de seus consumidores para produzir peças que, com certeza, terão mais chances de agradar seus clientes. A empresa reúne informações sobre vendas realizadas, interações nas redes sociais, rejeições ou devoluções do itens. Tudo isso é usado para prever o que agradará seu público na próxima estação.

E o cliente médio gosta disso: segundo levantamento da Infobase Interativa, 63% dos consumidores estão interessados em recomendações personalizadas, enquanto 44% fariam uma nova compra após ter a experiência com esse tipo de abordagem.

Mas poderia a máquina matar a criatividade? Talvez, porém, ao agilizar o processo de criação e torná-lo mais lucrativo, o uso desse tipo de informação no design de moda faz com que as marcas façam apostas mais certeiras e, assim, produza menos produtos. Se por um lado pode tornar a moda muito previsível (e padronizada de maneira excludente), por outro o planeta agradece, visto que um levantamento do Banco Mundial indica que os processos de tingimento têxtil são responsáveis por 17% a 20% da poluição de origem industrial.

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Mais devagar, por favor

Porém, mesmo com todas essas inovações que nos garantem experiências de compras diversificadas, nós continuamos repetindo o look de home office a semana toda. É sempre a mesma camiseta, calça de pijama, moletom e chinelo. Meias e roupas de baixo são os únicos itens que costumam (espero) ser trocados.

Dentro de casa, não há por que montarmos grandes produções para trabalhar. Temos menos necessidade de dar close e, logo, gastamos menos as nossas roupas, usamos menos a máquina de lavar. Por isso, Alfredo Orobio acredita que a pandemia nos fará diminuir o nosso consumo. “E não falo isso como empresário, mas como consumidor. Eu mesmo fiz, na pandemia, compras a mais longo prazo, que devem chegar daqui dois meses, porque as coisas estão mais devagar.”

Orobio é um dos fundadores da marca Away to Mars, em que designers de diversas partes do mundo trabalham colaborativamente. Mesmo antes de se isolar em casa, em Londres, na Inglaterra, a etiqueta de Alfredo tinha um modelo de negócio que envolvia o consumidor desde a concepção das peças, resultando em produtos mais assertivos. “E eles iam para a pré-venda apenas depois de fazermos a pilotagem e termos uma ideia de custo de cada uma das roupas”. diz, em entrevista por telefone. Quem compra na venda antecipada, adquire o produto pelo preço de atacado.

Além da Away to Mars, outras marcas como Sunnei, Shoes of Prey e Harperwoods também têm optado pelo formato de moda sob demanda. Ou seja, só são produzidos os produtos que são adquiridos. Essa tendência de mercado já era uma promessa para o futuro desde 2018, mas vem ao encontro do momento atual, em que marcas de pequeno e médio porte estão com caixas e estoques parados.

“O grande problema da moda é a gestão de investimentos dentro da coleção. A marca coloca dinheiro para comprar tecido, aviamento, e o vê retornando apenas um ano depois”, diz Orobio. E, se você for pensar que 30% dos produtos só saem das lojas com desconto, dói menos no bolso produzir roupas apenas na quantidade encomendada. “Quando você tira a pressão de manter um inventário, consegue monetizar muito mais rapidamente e dá mais espaço para marcas menores”, fala o empresário.

O mercado tem visto também a moda sob demanda como uma tendência, já que estudos dão conta que millennials, geração cuja faixa etária representa a maior parte dos consumidores atuais, dão preferência para marcas que tenham propósito e que estejam em sinergia com o momento que vivemos. “Faz sentido explorarmos o envolvimento do público no design de produtos para a moda como indústria, no impacto dela para o meio ambiente, porque a gente acaba produzindo com mais coerência”, comenta Orobio. Para que continuar produzindo tanta blusinha se vamos usar a mesma a semana toda enquanto a vacina para a Covid-19 não vem? Por isso, o empresário prevê que o atual momento/futuro da moda deve estar com os pés no freio: “O slow fashion, que antes estava muito restrito à elite da moda, vai se tornar mainstream”.