Cósmica como toda a natureza

Inspirada nos processos e estruturas da natureza, a biomimética é aposta da moda para novas tecnologias e outras visões sobre criatividade.

“Pássaros voando me fascinam. Admiro águias e falcões. Me inspiro em plumas, mas também em suas cores, seu desenho, sua leveza e sua engenharia. É tão elaborado. Na verdade tento transpor a beleza de um pássaro para o corpo de uma mulher.” A moda certamente ainda sente muito a falta de criadores como Alexander McQueen, autor dessa declaração. O designer inglês sempre marcou em palavras e designs seu interesse criativo e a sua conexão com o que ele chamava de mecânicas da natureza.

Algo muito próximo do que se discute e desenvolve atualmente sob o nome de biomimética. Nos termos da Wikipedia, “uma área da ciência que tem por objetivo o estudo das estruturas biológicas e das suas funções, procurando aprender com a natureza, suas estratégias e soluções, e utilizar esse conhecimento para resolver problemas humanos”. Diz ainda que o termo “provém da combinação das palavras gregas bíos, que significa vida, e mímesis, que significa imitação. Dito de modo simples, a biomimética é a imitação da vida. Não é pouca coisa. Até porque a vida em si é a reprodução… da vida? Muita calma nessa hora.

A biomimética vem sendo usada para as mais variadas coisas. Soluções para a medicina, arquitetura, indústria automobilística, engenharia espacial, o campo é tão amplo quanto tudo o que existe. Mas aqui vamos focar no que a biomimética pode significar para a moda.

 

1. O animal é bem bacana

Um dos principais usos da biomimética na moda está na criação de tecidos. A ideia é explorar os reinos animal e vegetal em busca de um lance meio camaleão, meio transformers, meio Aventuras com os Kratts – um desenho infantil criado pelos irmãos e educadores ambientais Martin e Chris Kratt, em que eles ganhavam “poderes” dos animais por meio de um sistema que estuda e reproduz todas as suas características. Pense em roupas que esquentam, que repelem água, se limpam sozinhas, que brilham sozinhas no escuro etc.

Por exemplo, as penas de um simpático pato foram estudadas, e sua estrutura, reproduzida em algodão e poliéster. Acrescente silicone e um polissacarídeo, e está pronto: um tecido que não só é resistente e repele água como também esquenta. O pato não passa frio, queridas.

E os nadadores nas Olimpíadas, por que tão velozes? O segredo é treinamento e roupas de mergulho inspiradas na pele de tubarão, o que permite menos atrito e, portanto, mais facilidade pra deslizar pela piscina.

Já o urso polar usa seus pelos e a espuminha que fica entre eles como fibras transmissoras de luz, captando o sol e transferindo calor para a camada de pele que está por baixo. Isso inspirou cristais ópticos para tecidos com excelente isolamento térmico. O caranguejo inspirou fibras que crescem de novo quando são rasgadas ou furadas, ou seja, uma roupa que se autoconserta! Um certo tipo de borboleta azul, que não tem nenhum pigmento e funciona à base de ilusão de óptica causada por sua louca engenharia natural, está na base para tecidos que não precisam de tingimento para serem coloridos. Esses bichos, gente, eles não têm limite pra serem absolutamente incríveis. Vamos parar de destruí-los, que tal?

2. Pra ver se cola

Um dos ícones da biomimética na moda e no design de objetos está nesse grande facilitador chamado velcro. A história dele é um amor. O senhor George de Mestral era um engenheiro suíço que curtia subir montanhas com seu brother canino. Um dia o cão se meteu no meio de algumas plantas chamadas bardana e voltou com um monte de coisas grudadas no pelo, tipo carrapichos. George resolveu estudar a estrutura dos trequinhos tão difíceis de tirar, arranjou um jeito de recriá-los sobre uma base e, voilà, strippers de todo o mundo puderam enfim tirar as calças com um único e vigoroso puxão. Para a moda, o velcro se tornou um recurso importante para criar tênis, papetes e toda uma série de peças inclusivas para pessoas com diferentes tipos de deficiência ou com mobilidade reduzida.

3. Tem esse em 3D?

Seus próximos tênis podem ser impressos em 3D. Mas cê jura? Sim. Marcas de luxo já estão bem de olho em uma tecnologia que escaneia os pés dos clientes em 3D e uma outra imprime as partes em 3D com uma tecnologia chamada SLS (Selective Laser Sintering). O resultado é um tênis que respeita as curvas e o desenho específico dos dedos, da sola e dos movimentos desse pezinho de princesa. Um tênis inspirado no desenho único que o DNA te deu, praticamente um pé mais resistente pra chamar de seu. O que as irmãs uó da Cinderela não teriam feito com esse tipo de tecnologia, não? Felizmente hoje em dia ninguém liga mais pra isso de príncipe encantado… Não gosta de tênis? Tudo bem. A designer Marieka Ratsma se juntou a um arquiteto e criou um salto inspirado na estrutura do crânio de um pássaro. As partes ocas da caveirinha do passarinho permitiram imprimir o sapato em 3D usando muito menos material. Cabeça vazia, oficina das sapateiras.

4. Vem de luxo

A musa da biomimética fashionista é a holandesa Iris van Herpen. Suas criações são famosas pelas peças impressas em 3D; porém, 80% das suas criações são feitas pacientemente à mão. Iris já emulou criaturas microscópicas, seres da água, a própria água, energia cinética; ela é uma supernerd do luxo, maravilhosa. A biomimética não é uma fase, está na própria descrição da visão de sua marca: “Por meio da biomimética, eu olho para as forças por trás das formas na natureza, esses mistérios sem fim da natureza têm uma enorme influência sobre o meu trabalho. Ver a água se mover, por exemplo, mostra que a própria natureza é genial e que suas metamorfoses são minha musa”. Vai, Iris!

Para outras grifes do high fashion, a biomimética aparece, como em sua essência, muito ligada à ideia de sustentabilidade. A Ferragamo, por exemplo, desenvolve uma parceria com a Orange Fabric, empresa de pesquisa que desenvolve tecidos a partir de bagaços de laranja. Já Stella McCartney, que comanda uma série de projetos de materiais sustentáveis, criou, por exemplo, um couro feito à base de cogumelos.

5. God save McQueen

Ok, biomimética pode ser um termo relativamente novo na moda, mas Alexander McQueen já tinha entendido toda a base do conceito lá entre os anos 90 e 2000. Sua obra é ímpar nesse sentido, embora ele até sua morte não tenha tido acesso a toda tecnologia que existe hoje. Tecnologia que sua sucessora, a perfeccionista Sarah Burton, tem utilizado com muito sucesso. McQueen teve um processo interessante, que começou por usar os materiais da natureza em si. Colocá-los nas roupas, às vezes construir looks inteiros com eles.

As conchas, por exemplo. Estão no shell dress, de 2001, organizadas em camadas. Lembram escamas de peixe, mas também a própria estrutura de camadas que forma as conchas em si. Em outra ocasião, observando uma praia coberta por razor clams (um bivalve com concha em formato de navalha que por aqui é chamado de lingueirão), o designer fez um vestido inteiro com elas. Ao ser usado, ele se quebrou todo, e era essa a intenção. Porque a natureza tem muita coisa a ensinar, entre elas, a verdade da impermanência de todos os seres vivos. Nesse ponto, McQueen talvez estivesse mais próximo de algo que divide espaço conceitual com a biomimética, a biofilia. A biofilia teria uma pegada mais filosófica, enquanto a biomimética seria mais prática, a grosso modo. A frase que abre essa matéria, sobre os pássaros, talvez ilustre bem essa relação.

McQueen insistiu muito nos pássaros para falar de mulheres. De uma certa busca por liberdade e força nos domínios do que não precisa negar sua fragilidade pra voar, do que enxerga em sua leveza a condição e estrutura para essa liberdade. É tão bonito e às vezes muito triste. As amigas do designer, como sua parça Isabella Blow, viviam muitos dramas pessoais. Os relacionamentos, os núcleos familiares, a beleza, tudo isso levantou questões pra ele. Por sua passarela andaram muitos pássaros trágicos. McQueen nunca desviou o olhar, e seu legado faz jus a essa atitude corajosa.

 

O que nos leva a seu ato final, sua última coleção: Plato’s Atlantis. Pra começar, a coleção se refere diretamente a Timeu e Crítias, textos de Platão em que a mítica cidade de Atlântida é citada. Mas também questões sobre a natureza, sobre o divino e a causa do mundo. A isso McQueen junta as ideias de Darwin e sua teoria da evolução das espécies. Ashes to ashes, saídos da água, afundados na água. Em Platão, o povo de Atlântida sucumbe não porque vive com luxo, com requinte. Pelo contrário, a festança era bem-vinda pelos deuses, que curtiam uma melhoria. A questão é que os atlantes vão ficando cafonas, babacas cheios de banca, se esquecem daquilo que os alimentava de divino e emprestava beleza às coisas.

“Mas para aqueles que não tinham olhos pra ver a verdadeira felicidade, eles pareciam gloriosos e abençoados enquanto estavam cheios de avareza e poder injusto”, escreve Platão. Pah! Nisso Zeus fica puto e resolve afundar o lance todo. Porém, a fala de Zeus, que se seguiria no texto, não existe, foi perdida. Completa aí na sua imaginação.

Bom, gente rs. O desfile começa com Raquel Zimmermann e as cobras, uma Medusa que aparece deitada numa praia, rodeada de cobras. As formas das cobras viram um efeito de luz que constrói um castelo no ar, um templo de répteis brilhantes. Quando a luz muda, a plateia é o foco, filmados por duas câmeras-robôs que deslizam como bichos mecânicos pelos trilhos. Pow! Pow! Pow!

Entra a primeira modelo, ela anda sobre sapatos 3D que não deixam nem pista do que seja um pé. Os armadillo shoes são uma espécie de casco com salto impossível, uma mutação projetada com ajuda da equipe do filme Alien, o Oitavo Passageiro. Animais rastejantes, águas-vivas, insetos tipo mariposas. A estamparia digital não foi desenvolvida para o tecido, mas para cada um dos looks, considerando sua modelagem, pra um efeito visual planejado e específico, cada um dos seres conforme o plano de seu criador: híbridos mutantes com inspiração em seres vivos desse mundo.

O painel do fundo da cena exibe imagens com efeitos azuis, dando a ideia de água, como se o desfile fosse submerso. No final, as câmeras focam a plateia projetando o azul sobre as pessoas que estão ali batendo palmas. Boom!

Enquanto isso, o babado todo é transmitido online, a primeira vez de um desfile ao vivo. Lady Gaga posta nas redes dela e revela junto seu então novo single: Bad Romance. Romance ruim esse do homem com sua própria natureza. E com a natureza do mundo, do ambiente. Já dizia o sábio: a vida é loka. Não é um jardim bucólico de revista com os dizeres “retorno à natureza”. Explica essa, biomimética kkkkk

Agora podem deitar, essa McQueen merece. Foi em 2009, a gente vê e até hoje fica tipo a Gaga, oooh la la.