Se cada geração é moldada pelos eventos nacionais e internacionais que acontecem durante seus anos de formação, a Geração Z, formada por jovens nascidos entre 1996 e 2012, tem sido a mais impactada por essa nova realidade sem precedentes causada pela pandemia da Covid-19. E dentre todas as mudanças, talvez a principal delas seja a educação. O vírus causou o fechamento de escolas e universidades em 190 países, afetando quase 1,6 bilhão de estudantes em todo o mundo.
Com as aulas presenciais suspensas, a escola foi para a internet. Mas com a mudança sendo feita às pressas, não houve tempo hábil para que os professores transformassem para o formato EaD (Educação a Distância) conteúdos desenvolvidos há décadas para a sala de aula. Como resultado, estudantes se viram com dificuldade para acompanhar o que é ensinado, precisando realizar trabalhos e provas sem que sequer tenham entendido as matérias ensinadas no ambiente virtual. Segundo a recente pesquisa “Juventudes e Pandemia do Coronavírus”, do Conselho Nacional da Juventude, o estresse vivido por jovens estudantes brasileiros nesses últimos meses levou 28% deles a cogitar não voltar à escola, enquanto 34% se mostram pessimistas em relação ao futuro.
Soluções tecnológicas para a educação estão surgindo em todo o mundo. Com mais de 3,5milhões de downloads desde o início da pandemia, uma startup de Hong Kong chamada Snapask passou a ajudar os alunos do Ensino Médio com sua lição de casa por meio de um aplicativo de celular. O conceito é bastante simples: se o aluno tiver alguma dúvida quando estiver estudando em casa, basta enviá-la por texto, mensagem de voz ou uma foto da questão. O app conecta o estudante a um tutor qualificado que o ajuda quase que imediatamente em sua dificuldade.
Existe a demanda por um conhecimento mais plural, acessível e diversificado — e os jovens estão buscando isso em todos os lugares, de redes sociais e aplicativos a novos espaços físicos de aprendizagem.
“Eu sou plenamente a favor de novas ideias que vêm para inovar na educação, como é o caso dessas startups que estão surgindo. Acho isso genial porque não podemos deixar a educação somente na mão de acadêmicos. Educação é dia a dia, educação é proximidade. Mas eu sempre peço cuidado”, diz Erica Coutrim, educadora e assessora do Ministério da Educação para odesenvolvimento da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e do PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático). “Assim como a medicina, a educação precisa ser feita com muito cuidado e preparação. Não é pra qualquer um, não. Somente com o diálogo podemos fazer com que as políticas públicas andem junto com essas inovações na educação que estão surgindo de outros lugares.”
A realidade da falta de acesso à internet de grande parte dos estudantes no Brasil, por exemplo, precisa ser considerada. Hany Gabrielle, de 22 anos, é estudante universitária e bolsista. Ela explica como a pandemia afetou seus estudos e também o ano escolar da sua irmã de oito anos: “Depois que chegou a Covid, lascou muita coisa porque a internet na periferia cai direto, e você tem que provar que sua internet caiu no meio de uma prova, por exemplo. Aqui em casa também não temos impressora, então não conseguimos imprimir as atividades escolares da minha irmã. Apesar dos nossos esforços de copiar as coisas da tela para o papel, foi um ano perdido para ela por questões financeiras, e não por falta de vontade dela ou nossa”.
Mas ainda que a tecnologia educacional esteja evoluindo rapidamente para suprir as lacunas de aprendizado, há toda uma frustração do momento vivido que evidencia a realidade do nosso país e a urgência de resolver um problema antigo: o modelo de educação tal qual o conhecemos precisa ser revisto. Enquanto a necessidade de estudo nunca se mostrou tão grande, o tipo de aprendizado que vem sendo buscado pelos jovens de hoje já não se encaixa tão bem nas ofertas mais tradicionais de ensino, mesmo quando há a tentativa de adaptá-las para a internet. Existe a demanda por um conhecimento mais plural, acessível e diversificado — e os jovens estão buscando isso em todos os lugares, de redes sociais e aplicativos a novos espaços físicos de aprendizagem.
Pluralidades da educação diversa
Sendo reconhecida como uma das gerações mais self-taught da história, a presença online da Geração Z vai, consequentemente, muito além das selfies no Instagram e das dancinhas do TikTok. Esses jovens também estão usando as mídias sociais para instigar novas formas de ensino, democratizando conhecimentos que ajudam sua audiência tanto a se informar quanto a desaprender preconceitos, em formatos que mesclam informação e entretenimento em linguagem alinhada às suas realidades.
Com tantas iniciativas educacionais sendo apresentadas pelos usuários da plataforma, o TikTok anunciou em meados de maio o programa #LearnOnTikTok, que financiará uma variedade de vídeos educacionais para ajudar a facilitar o aprendizado durante a pandemia. O conteúdo, financiado por meio do fundo de aprendizado da plataforma de US$ 50 milhões, é uma parceria com mais de 800 profissionais e instituições educacionais para criar vídeos de aprendizagem para a rede social.
A educação também tem se transformado pelo crescente movimento Black Lives Matter, que existe desde 2013. Mas se os jovens têm adotado uma postura antirracista ativa, a educação básica ainda precisa firmar seu papel como agente que ajuda a eliminar as desigualdades relacionadas à raça em sala de aula. “Sofri violência psicológica dos meus colegas de sala, dos professores, da instituição. Meu TCC foi sobre literatura periférica em sala de aula. Uma das coisas que eu queria propor era que o livro ‘Sobrevivendo no Inferno’ fosse considerado literatura. E ninguém queria me orientar! Superei esse trauma quando o livro dos Racionais MC’s entrou para a lista obrigatória do vestibular na Unicamp, mas agora eu também não preciso da aprovação deles”, relembra a professora Fernanda Souza, que ensina português para adolescentes na rede pública e faz parte do projeto Professores Funkeiros.
Existe uma urgência por representatividade e pluralidade de narrativas na educação, que tem se traduzido em iniciativas focadas tanto na linguagem quanto na abordagem do ensino. “Tem um fator importante que é a questão do capital cultural. Será que a linguagem que a gente tem na escola, que é ensinada no país inteiro, é a linguagem daquela criança? Se eu andar três quarteirões daqui da minha casa, eu já encontro uma realidade totalmente diferente. A criança muitas vezes se depara vivendo na periferia, mas o conteúdo educacional não fala a língua dela”, comenta a educadora Erica Coutrim.
O Brasil tem ótimos exemplos online que estão levando conteúdos de educação na linguagem das periferias. A New School é uma startup social brasileira que existe com o propósito de levar educação de qualidade para os jovens das periferias de todo o país. Seu aplicativo gratuito para smartphones traz aulas que normalmente não são dadas nas escolas públicas e particulares do país, como Fotografia ou Publicidade. Mas ainda há um diferencial fundamental: as aulas são realizadas usando a “linguagem da quebrada”. A ideia é fazer com que moradores das periferias brasileiras se identifiquem, e que isso se traduza em engajamento e interesse no aprendizado.
O projeto independente Professores Funkeiros, por sua vez, tem como proposta ensinar por meio do funk, que é a linguagem dos “cria” — como é chamada a garotada da periferia. “Muitos dos professores que estão ali são pessoas da quebrada, estudantes universitários na maior disposição, da área de humanas e também de exatas. Eles gravam vídeos no YouTube e compartilham arquivos no Google Drive. E o combinado é sempre gravar vídeos e fazer arquivos que sejam leves, para que todos ‘os cria’ consigam acessar — pra você ver o nível de preocupação. É um conteúdo feito para que a internet deles acesse. Não é só a linguagem, não é só a aula. É pensar no todo”, diz Fernanda, que também faz parte do projeto dando aulas de português em vídeos.
Ressignificando espaços de aprendizado
A experiência de 2020 fez com que a discussão sobre a educação se tornasse ainda mais ampla e urgente. Antes mesmo do início da pandemia, as escolas já vinham sofrendo para reter seus estudantes. Segundo estudo inédito do IBGE divulgado recentemente, em julho deste ano, das 50 milhões de pessoas com idades entre 14 e 29 anos, dez milhões, ou seja, 20% delas, não terminaram alguma das etapas da educação básica. A grande maioria representada por esse índice é de pretos e pardos. As principais razões são primeiro a necessidade de trabalhar e depois a falta de interesse.
“Eu aprendi (na escola) da mesma forma que milhões de brasileiros ainda aprendem hoje, de uma maneira engavetada. Paulo Freire chama isso de ‘educação bancária’, que é aquela educação que só vai depositando na cabeça da criança e aí, quando termina aquele assunto, ela nunca mais ver ou usar aquilo na vida, mas a escola sente que cumpriu seu papel, vai lá e dá um ‘check! o conteúdo foi dado'”, aponta Erica. “Existem teóricos muito sérios que dizem que a aprendizagem só acontece quando ela é significativa, ou seja, quando você faz conexões reais com o seu mundo. Mas você aprende fórmulas matemáticas que podem não fazer nenhum sentido pra você, por exemplo. Você pode até procurar uma conexão, mas a única motivação é porque a professora mandou. Mas o que esse aprendizado significa para você se você não consegue fazer conexões?”, questiona ela.
” A aprendizagem só acontece quando ela é significativa, ou seja, quando você faz conexões reais com o seu mundo.”
Com o objetivo de conduzir discussões sobre o sistema de aprendizagem ocidental, o estúdio School, de Nova York, criou em fevereiro deste ano um curso educacional “fake” de uma semana, situado inteiramente no Instagram. O projeto convidava qualquer pessoa a conquistar um diploma “bastante liberal” em artes – que na verdade não valia nada. Conhecido como School University, o projeto ofereceu uma série de videoaulas, cada uma apresentando perguntas sobre os mais variados assuntos relacionadas a matérias como matemática, geografia e ciências, mas também cinema, música e arte. Participantes de todas as idades tinham até uma hora para responder às questões relacionadas às aulas. Os “alunos” eram então classificados, e aqueles que tivessem o melhor resultado no dia eram premiados com 100 dólares. O projeto como um todo é uma sátira que zomba sutilmente do tradicional ambiente escolar, propondo uma reflexão sobre as competências essenciais que serão retidas dessa experiência.
Mas mesmo com o ensino online e tecnológico avançando, o coletivismo intrínseco ao ensino presencial continuará tendo importância ímpar na formação dos jovens, talvez até mais do que antes de toda a experiência do isolamento. Por isso, mais espaços de aprendizado devem surgir na realidade pós-pandemia. Um exemplo internacional é a University of the Underground. Com sede nos porões de boates em Amsterdã e Londres, antes da pandemia, o projeto já trabalhava a educação presencialmente indo além das fronteiras tradicionais, apoiando pesquisas não convencionais, contraculturais e práticas que desafiam a fabricação de um conhecimento commodity. Durante o isolamento, ela passou a disponibilizar aulas de temas como afrofuturismo, realidade aumentada e até memes. Nos Estados Unidos, a Geração Z queer costumava se refugiar na Junior High Los Angeles, uma organização sem fins lucrativos dedicada a ser uma plataforma artística de vozes marginalizadas com a publicação de uma revista, podcast e um espaço físico para promover encontros que também serve como galeria de arte. Tudo funcionando de acordo com os princípios de organização coletiva, empatia radical e anti-opressão.
Mas e o diploma?
Com a realidade da pandemia dificultando a completude do calendário escolar e a entrada de recém-formados no mercado de trabalho, muitos jovens estão passando a se perguntar se vale mesmo à pena seguir o tradicional roteiro de formação para a vida adulta. Isso não significa uma negação ao aprendizado teórico. Pesquisas apontam que a Geração Z acredita, sim, que continuar os estudos depois do Ensino Médio é importante, mas muitos deles consideram seguir caminhos alternativos ao tradicional curso de quatro anos, principalmente quando vêem que diversas vagas de profissões de seu interesse andam valorizando conhecimentos mais específicos do que um diploma de graduação universitária. Soma-se ainda o fato de que, para muitos, especialmente aqueles que vivem nos Estados Unidos, entrar na faculdade também significa se comprometer com pesados débitos estudantis.
No Brasil, universitários se viram forçados a deixar seus cursos depois que a pandemia do coronavírus resultou em um acumulado de dívidas, evasão que cresceu 31% entre abril e maio, segundo a estimativa do Instituto Semesp. Ao longo de suas vidas, a Gen Z ainda viu ao redor do mundo o desemprego crescente atingir mesmo aqueles com Ensino Superior, que agora são também reféns das novas alternativas precárias de trabalho na chamada Gig Economy, uma economia nascida na era digital que consiste na flexibilização do mercado de trabalho.
Com essa realidade agravada ainda mais pela pandemia, o caminho de uma formação tradicional dentro das universidades passou a ser questionado. No primeiro semestre de 2020, o estudo Question The Quo, realizado pelo ECMC Group em parceria com a Vice Media, entrevistou 2.200 estudantes estadunidenses do Ensino Médio com idades entre 14 e 18 anos para entender as perspectivas sobre seus futuros educativos. Mais da metade dos entrevistados disse estar aberta a buscar algo que não seja um diploma de quatro anos — menos de um quarto acredita que a faculdade seja o único caminho para um emprego decente. Outro estudo, feito em 2019 pela corretora TD Ameritrade com 3 mil jovens entre 15 e 28 anos dos Estados Unidos, revelou que 89% da Geração Z considera caminhos não convencionais de capacitação profissional alternativos à faculdade, como cursos livres ou escolas técnicas. Os resultados ainda apontaram que a geração anterior, os millennials, formada pelos nascidos entre 1981 a 1996, também andam repensando seus diplomas universitários: 49% dos que possuem Ensino Superior completo acreditam que sua formação é praticamente sem importância para seus empregos atuais.
Mas é importante fazer recortes quando olhamos dados como esses, principalmente no nosso país, e levar em consideração o quanto um diploma pode fazer diferença para jovens que, muitas vezes, são os primeiros da família a conseguir ingressar em uma universidade. “Fazer faculdade abre várias portas para as pessoas de periferia. Eu comecei a arrumar vários empregos por causa dela, cada vez mudando para um estágio que fosse melhor, que eu ganhasse mais, numa empresa melhor, para que, quando eu seja efetivada, eu consiga um trampo bacana. A faculdade me possibilitou isso, e eu acho que não teria outra oportunidade se não estivesse ali”, aponta Hany Gabrielle.
Erica Coutrim faz uma reflexão sobre o valor do diploma na sociedade brasileira: “Desde a chegada da Família Real no Brasil, o país fez com que a educação fosse sinônimo de status, antes de qualquer coisa. Sempre houve essa necessidade de se diferenciar o rico do pobre. O nobre do escravo e do trabalhador comum. É assim que se construiu a educação no Brasil. Então a nossa visão do diploma é, antes de qualquer coisa, status. Mas uma coisa importante que se deve pensar é: o que esse estudante desenhou para si? Quais são os parâmetros dele?”.
Seja na busca por um diploma, seja testando novas formas de aprendizagem, é possível observar que a passividade e a unilateralidade da transmissão de conhecimento estão dando lugar a uma aprendizagem mais plural, democrática e onipresente. Mas é importante frisar que essa juventude criativa, que está liderando muitas dessas mudanças, precisa ser apoiada por políticas públicas, a fim de garantir a distribuição desses novos formatos de educação a todos. A esperança é que a volta às aulas não seja apenas um retorno, mas a chance de um recomeço. Até lá, nosso sistema educativo ainda tem muito ainda a (des)aprender e muita lição de casa para fazer.