Ponto de interrogação

Heavy baile emaranhado e o risca-faca quântico.

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Ilustrações @viamagalhaes

 

I dared to knock

At the door of the cosmos

Sun Ra

(Eu ousei bater

Na porta do cosmos)

Quero deixar dito que isso aqui está mais cabeçudo do que de costume. E que foi escrito por uma psicanalista e jornalista que, infelizmente, não manja muito de física, porém, se esforçou em pesquisar boas informações pra vocês. Só um lembrete mesmo. Vou levar uns dois ou três parágrafos pra engatar, mas, como escreveu Di Melo, a vida em seus métodos diz calma.

Pra começar, essa edição da ELLE View fala de imagens de moda no mundo digital, no universo virtual, na realidade pós-pandemia, de como essas coisas se juntam, se separam, se alternam, se influenciam. Vocês sabem que moda se faz com contexto ou, ao menos, deveria. As imagens que a moda cria pra esses contextos são, em geral, simplificadoras. Esmagadas pelo filtro da popularidade produzida, do capital de controle, se vocês preferirem essa terminologia. O que não quer dizer que certos profissionais não sejam capazes de, se não quebrar, ao menos forçar um pouco essas barreiras em direções menos óbvias.

Qual é o último grito do universo em termos de imagem? Parece que a resposta tem a ver com física quântica. Mais especificamente com a mecânica quântica, cuja aplicação está revolucionando as pesquisas sobre comunicação, computadores, mecanismos de busca em bancos de dados cada vez mais amplos, algoritmos e ainda mais. “O emaranhamento quântico, desde sua descoberta, tem desafiado algumas das visões de mundo mais estabelecidas: as de localidade e realidade”, diz um artigo sobre o tema na revista científica
Nature.

O que é emaranhamento? Faz assim, finge que é um episódio de
Big Bang Theory e dá uma olhada nessa play com dois vídeos feitos pela galera da USP. São rápidos, diretos e muito explicativos:

 

 

Não vou entrar aqui no conceito por uma série de questões práticas, mas vamos pensar em um ponto específico. A mecânica quântica nos fala de um mundo que é cada vez mais comprovado por experimentos científicos e que, no entanto, permanece absurdo diante de nossa lógica. Lógica construída, entre outras coisas, pelos fundamentos da física clássica.

Mas de qual imagem afinal estou falando?

Em 2019, pela primeira vez na história, cientistas da Universidade de Glasgow fotografaram o fenômeno do emaranhamento em um experimento com fótons. As imagens parecem olhos de felinos. O que nos faz pensar no famoso gato de Schrödinger. Em primeiro lugar, esse experimento mental proposto pelo físico austro-irlandês de mesmo nome é parte fundamental das teorias quânticas e está relacionado à ideia de emaranhamento, que o próprio Einstein definiu como “spooky”, “fantasmagórico”.

Em segundo lugar, faço essa associação subjetiva, mas talvez não tão aleatória, dos olhos de gato da imagem com o gato no escuro da caixa. Pra quem não se lembra, o experimento mental de Schrödinger é o seguinte. Em uma caixa fechada há um gato com material radioativo que pode ou não matá-lo. Então, até abrirmos a caixa, não sabemos. Em geral ouvimos que, até a abertura, o gato está vivo e morto. Ou mesmo que está vivo ou morto. Mas o que esse Schrödinger loko consciente estava dizendo é que o gato está em um estado que não obedece a essa lógica. O gato estaria em superposição quântica, como se, muito grosso modo, vivo e morto estivessem não só superpostos, mas conectados de alguma maneira à presença e à escolha do observador que abre a caixa. É maluquice? Não, amizade, maluquice é acreditar em mamadeira de piroca e “supositório” de ozônio. Isso que profissionais do mundo todo, tantas vezes desacreditados por necrocratas e suas máquinas mortíferas, fazem é investigação das possibilidades da vida e do mundo, é ciência.

A filosofia está interessada nas consequências dessa teoria, que pode impactar de maneira muito importante nossa ideia de realidade, de lugar e até mesmo de tempo. São arremessos longos, que ainda demandam muito esforço e estudo, mas que surgem no horizonte. O filósofo esloveno Slavoj Zizek escreveu uma série de artigos e trechos de obras ao longo dos últimos anos nos quais liga, por exemplo, a categoria do Real, proposta pelo psicanalista Jacques Lacan, às ideias de Einstein sobre a mecânica quântica. As críticas e discordâncias são muitas, mas o tema está aí e é pertinente.

Deixo claro aqui que os questionamentos filosóficos atrelados a tamanho salto nada têm a ver com o charlatanismo de muitos ditos terapeutas quânticos, que se apropriam irresponsável e ridiculamente de conceitos pra vender livros de autoajuda, no sentido de que quem é ajudado é quem ganha dinheiro vendendo o material.

Estamos falando de um contexto de mudança de paradigmas e visões de mundo tão fundamental que vai muito além de seus possíveis usos aplicados, mas cujos usos aplicados também podem ultrapassar e muito tudo o que já vimos em termos de internet, redes sociais e todo esse babado. O que poderá trazer avanços mas também toda uma nova sorte de problemas e desigualdades. Depende de como vamos lidar com isso. Ou seja, um grande e monumental bafo. Isso está acontecendo enquanto chafurdamos na lama da ignorância política, enquanto nos apequenamos como indíviduos e sociedade, enquanto muitos investem na barbárie.

Nos últimos anos, cientistas interessados foram a montanhas nas Ilhas Canárias, onde instalaram equipamentos para fazer testes ligados ao emaranhamento com as luzes de quasares. Fico imaginando isso e, embora seja uma operação que exige muito suor, cálculo, planejamento e precisão de execução, fora a análise, não posso deixar de pensar na poesia envolvida nesse rolê. Coisas extraordinárias capitaneadas por pesquisadores começam dentro dos laboratórios de universidades públicas que estão ameaçadas por cortes criminosos de verba. Laboratórios de onde virão as vacinas que tanto desejamos, entre outras coisas igualmente grandiosas.

E pra quem não se impressiona com as imagens do emaranhamento, com sua dança de olhos sem gato no escuro, tipo Alice no País das Maravilhas, me poupe. Milhões de pessoas são escravas de idiotices das redes, passam dias vendo chás de revelação de celebridades, vivendo de migalhas de “intimidade” das Kardashian, comentando rugas, seguindo gente que alimenta ódios. Não me entendam mal, eu amo trocar figurinhas com quem eu gosto, coleciono memes, vejo uma fofoca ou outra. A questão é que precisamos de uma mudança de perspectiva sobre as coisas que de fato importam. Não é sobre depois de amanhã todo mundo passar a discutir mecânica quântica, mas de entender que estamos passando por uma mudança global em vários sentidos e não podemos mais ficar girando em falso como hamsters atrás de uma cenoura que está na tela.

O mundo, a moda, os criadores querem contexto pra largar de fazer a mesma coisa, cada vez mais vazia? Pois inspiração é o que não falta. Quero ver geral pirar. O risca-faca quântico tá pegando fogo, mas, já dizia o sábio, pra entrar nesse baile tem que ter disposição. Hora de estudar, de fazer, de apoiar profissionais sérios, de se abrir a novas ideias, se movimentar. E também, por que não?, hora de reinventar o sonho. Bora dançar.

 

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