A hora e a vez das influencers virtuais

Com a pele perfeita e o look todo trabalhado na computação gráfica, personagens digitais se popularizam na pandemia. E vieram para ficar.

Elas não precisam de máscara nem cumprem isolamento social. Em um momento em que influencers de carne e osso estão (ou deveriam estar) em casa e a moda precisa se reinventar, as personagens feitas com computação gráfica botaram suas manguinhas virtuais de fora – e se multiplicaram. Até a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou seu avatar durante a pandemia. Desde junho, Florence, a primeira trabalhadora da saúde virtual da OMS, esclarece mitos sobre a Covid-19 e ajuda internautas a parar de fumar – ela pode, inclusive, montar um plano personalizado de combate ao vício.

No Brasil, a quarentena viu o surgimento de novas figuras, como a Mara, influencer virtual da marca Amaro. Nicia Passos, CEO do estúdio de animação 3D BIG Studios, conta que o cliente chegou com uma necessidade específica, por não conseguir fotografar as modelos e os looks por causa da pandemia. Mara foi criada de forma remota em cinco semanas – e já nasceu com 29 anos, segundo sua descrição no site da Amaro. Para o futuro, Nicia vê uma grande demanda, principalmente ligada a temas como bots e inteligência artificial: “Conseguimos humanizar a tecnologia quando damos uma cara”.

Um dos pioneiros no uso desses avatares no Brasil, Cairê Moreira, fundador da startup de soluções tecnológicas Genyz, também criou outra personagem recentemente: Princess AI, uma estilista de roupas 100% digitais. “Ela desenvolverá collabs com artistas, influenciadores e marcas para explorar todo o potencial da digitalização da moda e ajudar as marcas nesse avanço”, conta ele. Para Cairê, muitas marcas têm medo de fazer inovações, mas a pandemia fez o mercado acordar para a digitalização.

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Mara, virtual influencer da Amaro.

Da música à passarela

A ideia de celebridades feitas no computador, de fato, não é nova. Em 2000, a Motorola usou os intervalos do Oscar para anunciar sua nova personagem virtual, Mya, parte da febre tech da virada do milênio. Na música, nomes como Gorillaz e Hatsune Miku provaram essa possibilidade. Com a atual confluência entre moda e tecnologia, que vai das redes sociais aos videogames – como o fenômeno do Animal Crossing na quarentena, ou o grupo musical K/DA, formado por personagens do League of Legends –, esse conceito se torna cada vez mais natural.

Uma das figuras centrais nesse fenômeno é Noonoouri, modelo com olhos de mangá que já apareceu em campanhas de Versace e Dior e junto de celebridades como Lewis Hamilton e Bruna Marquezine. A influencer protagonizou um dos grandes momentos da transposição das passarelas para o digital: a apresentação da chapelaria de Stephen Jones na semana de moda de Londres, em junho. A relação entre os chapéus de aparência surreal da marca, que parecem desobedecer às leis da física, e a figura que existe em um espaço entre o real e o digital mostra m potencial estético dessas criações para além das redes.

“A colaboração com Stephen Jones foi um dos projetos mais excitantes que já fizemos”, diz Joerg Zuber, criador da personagem. “Criamos algo a partir do nada, e esse é o poder do digital. Nós podemos criar algo que é sustentável, que não usa energia, que não usa plástico, que não usa nem tecidos. Podemos evitar desperdício, viagens, custos e poluição”, enumera.

 

Modelos reais x virtuais

Para a consultora de negócios da moda Fernanda Leite, apesar da consolidação de influencers virtuais como Noonoouri e Lil Miquela (leia mais sobre essas e outras influencers aqui), esse é um fenômeno em fase inicial, ainda que acelerado pela pandemia. “Elas vão ganhar cada vez mais visibilidade e autoridade. Mas não podemos dizer que o crescimento desse modelo vai eliminar as influencers humanas. As coisas vão coexistir, e pode ser que os ‘humanos’ tenham que transformar sua maneira de influenciar.” Da mesma forma, Fernanda acredita que desfiles digitais não substituirão as apresentações presenciais.

Cairê, da Genyz, também não acredita no temor recorrente do mercado de que as figuras digitais vão acabar com a profissão de modelo: “Na nossa visão de futuro, os modelos vão deixar de ser só parte de uma obra nas passarelas ou um corpo vestindo uma roupa”, prevê. Tanto que o escolhido para a primeira colaboração com sua nova personagem, a Princess AI, é justamente um modelo de carne e osso: Sam Gonçalves. “O Sam é perfeito nisso, ele representa um dos primeiros negros na SPFW, o primeiro negro com vitiligo lá. Ele tem uma história de superação grande e é inspiração para os jovens”, diz Cairê. “Percebe que o Sam não deveria ser só parte de uma obra, mas deveria ser voz? Para nós, o futuro dos modelos é exatamente esse, ser voz.”

Um exemplo dessa convivência entre modelos reais e virtuais é a própria Noonoouri, parte do elenco da agência IMG Models. “Ser a primeira personagem digital em uma agência de modelos humanos é uma honra. A empresa e os modelos não têm medo de serem substituídos por uma personalidade digital, ela é um deles, é como ser parte de um universo, mas de uma forma nova”, diz Zuber. Ele diz que viu o interesse na personagem crescer na pandemia, não só vindo de empresas de moda, mas de empresas de tecnologia. “A porta para o digital foi aberta de uma maneira muito nova e impressionante”.

Segundo Julia Leão, da Squid, empresa especializada em marketing de influência, esses avatares fazem parte de um nicho de influência. “Eles não vêm para substituir, eles vêm para agregar e entrar nessa jornada em um momento diferente ou até equiparados a um influenciador humano.”

Para o semioticista Bruno Pompeu, o apelo desses influencers é fundir, de maneira muito clara e evidente, duas dimensões que já vinham se aproximando: o real e o virtual, amarrados pelo consumo. “A gente vem assistindo ao jovem consumindo online e offline da mesma forma. Isso fica evidente nas compras online, nas roupas digitais, nos filtros, tudo isso já estava transposto para o virtual.” Esses avatares, portanto, não viriam para influenciar somente no meio digital, mas de maneira geral, porque essa divisão já não existe.

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Princess AI, avatar criado pelo brasileiro Cairê Moreira.

 

Tecnologia de ponta, padrões do passado

Com tantos avanços tecnológicos e programas sofisticados de computação gráfica disponíveis, contudo, o mundo das personagens digitais ainda está bem atrasado no quesito representatividade. De Miquela à brasileira Lu do Magalu, as influencers mais populares da web continuam presas a velhos padrões estéticos. “Os personagens ficcionais, que não deveriam repetir características do mundo real, se apoiam no padrão de beleza [tradicional], mostrando como esse padrão é forte e como é difícil pensar no protagonismo de um personagem que não tenha essas características”, diz Aliana Aires, autora do livro De gorda a plus size: a moda do tamanho grande. “Infelizmente esses padrões são reproduzidos na mídia massiva e até no mundo ficcional”, lamenta.

Para Bruno Pompeu, as personagens virtuais acabam participando de um ciclo que reforça certos padrões. “As pessoas têm se vestido e se submetido a cirurgias para alcançar um padrão estético que não é mais o das telas de cinema ou das páginas de revista, mas o das redes sociais de imagens”, diz. “Cada vez mais essas figuras vão representar a perfeição que todo mundo quer alcançar no Instagram.” Perfeição essa que vai além do aspecto estético. “Elas expressam um pouco o nosso ideal, aquilo que a gente quer alcançar, aquilo que a gente quer ser”, continua. Por outro lado, pondera ele, quando vemos uma personagem digital que se destaca porque trabalha sem parar, está sempre com a pele perfeita, o cabelo incrível e bem-humorada, temos a consciência de que toda essa vida impecável não é viável fora da telinha. Por esse ponto de vista, de certa forma, as influencers virtuais podem servir como lembrança de nossos próprios limites humanos, embaçados pelo Instagram.