E se Naruto fosse negro?

Artista mineiro se destaca nas redes sociais com seus blackanimes, reinterpretações de personagens clássicos com uma visão orientada pela ideia de representatividade.


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Reprodução: @_mikhasso



Fã incondicional de animes, Martin, filho de 9 anos desta repórter, já havia reparado que não se parece com nenhum de seus personagens favoritos. Pois ficou absolutamente encantado quando se deparou pela primeira vez com Goku, de Dragon Ball, Sasuke e Naruto com os cabelos crespos e a pele negra, ou seja, em versões que se assemelham a ele.

Os desenhos estão todos reunidos no perfil do Instagram de Mikhail Rodrigues, 25 anos, ou Mik Hasso, como é conhecido há cerca de um ano nas redes sociais. Ali, ele posta seus blackanimes, como são chamadas essas ilustrações orientadas pela ideia de representatividade, de redesenhar os personagens como se fossem negros. Mik explica que esse movimento já existe há algum tempo em outros países e ganhou força no Brasil no ano passado, a partir de um episódio envolvendo um amigo. “Ele fez uma versão negra de um personagem muito antigo e recebeu ataques racistas pesados. Aí, vários artistas negros se juntaram para fazer blackanimes e dar força a esse colega”, conta. “Eu não comecei naquele momento porque não queria que minha arte soasse como um ataque. Só que eu acompanho muito anime e meu irmão de 5 anos acompanha comigo. Então, fiquei pensando que queria que ele tivesse uma representação do que eu não tive na minha infância. Todos os personagens que eu queria ser eu não podia, porque o cabelo era diferente, a pele é diferente. Mas queria que meu irmão se sentisse visto, sabe? Falasse ‘nossa, eu pareço aquele ali.’ Um dos primeiros personagens que fiz negro foi o Naruto e na hora ele já se identificou: ‘olha, parece eu, né?'”

Nas redes, o desenho agradou e Mik logo recebeu um pedido especial. “Conheci uma indígena, Alice Pataxó (ativista e comunicadora), e ela me pediu que a representasse também. Então combinamos que ela ia me ajudar, porque não sou indígena. Eu queria que o meu desenho contasse uma história, não queria só reproduzir algo dos livros de escola. Ela me ensinou sobre alguns grafismos que eu poderia usar. Fiz, as pessoas gostaram e logo vieram outros pedidos de artes indígenas. Aquilo expandiu minha mente. Eu não conhecia nada da cultura, nem imaginava que poderiam se interessar por anime. Acabou que o que eu queria fazer pelo meu irmão pequeno alcançou muito mais gente do que eu imaginei”, diz.

 

 

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No início, Mik fazia os desenhos no papel, mas as restrições da quarentena complicaram o envio das encomendas pelo correio. Ele passou, então, a usar um mouse “bem antigão”, em um computador igualmente velhinho. “Eu não tinha equipamento e nem tinha como comprar. Isso chamou a atenção das pessoas, que começaram a se movimentar nas redes, pedir a empresas que me doassem uma mesa (digital). Aí, o Pedro Eboli, desenhista, entrou em contato comigo e disse que ia me doar uma. Até o último momento, eu achei que fosse trote (risos), que ninguém do nada ia me dar algo que eu precisava tanto”, conta. Os desenhos que antes levavam cerca de nove horas para ficarem prontos, hoje podem ser finalizados em um terço do tempo.

A virada na trajetória profissional coincidiu com uma grande transformação pessoal. Fazia pouco tempo que Mik havia voltado a desenhar, depois de um longo hiato que incluiu deixar a igreja que frequentou boa parte da vida em São Joaquim das Bicas (MG), onde nasceu e vive até hoje, e se assumir trans. “Eu parei de desenhar em 2018, estava nessa crise de saber o que eu sou. Tinha acabado de sair da igreja. A minha vida toda eu fiquei tentando seguir a cabeça das outras pessoas. Então, pela primeira vez, parei para pensar em quem eu era. Não conseguia desenhar, porque tinha algo que eu precisava soltar, mas não conseguia.” Com o apoio do namorado e muita pesquisa, entendeu o processo pelo qual passava. “Fui ficando muito melhor com os pronomes que uso atualmente. Só que ainda tinha que falar com meus pais. Já é muito complicado para o jovem falar que quer ser artista. Que dirá falar que quer ser artista e é trans. Para pais evangélicos”, lembra, aos risos. Mas foi acolhido e, aliviado, conseguiu voltar ao trabalho. Mais do que isso: era um recomeço. Mik deletou todas as suas redes sociais antigas e criou novos perfis. “A minha mudança estética foi um pouco drástica. Porque eu tinha um cabelão, andava de saia comprida. Quando me assumi, percebi que realmente tinha nascido de novo, que eu finalmente tinha me libertado do medo do que as pessoas iam pensar.”

 

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A experiência, diz, certamente sensibilizou seu olhar nos trabalhos. Mas mal sabia o significado da palavra representatividade antes de chegar aos blackanimes e às artes indígenas. “Até então, eu era de uma religião muito conservadora. E eles me faziam pensar que eu não era negro. Tentavam me embranquecer. Eu achava meu cabelo ruim, achava que tinha que passar uma base mais clara do que minha pele, que eu tinha que fazer uma cirurgia para diminuir o meu nariz, parecer o mais branco possível. Com o blackanime, essa é a fase da minha vida em que eu mais estou desenhando gente que parece comigo. Ajudou até na minha autoestima, de pensar que pessoas como eu são bonitas também. Por que na minha vida toda me fizeram pensar que não? Foi um autoconhecimento sem eu perceber.”

Em relação à arte, Mik sempre teve clareza da importância dela em sua vida de Mik. Era parte do seu cotidiano também, já que os pais são artesãos. “Desde pequeno eu já vivia no meio da arte, do desenho. Eu comecei com croquis de moda, jurava que ia ser estilista, tinha uns 6, 7 anos. Minha mãe fala que com uns 4 eu já estava pegando papel pela casa.”

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Mik Hasso: “Eu quero que as pessoas se sintam protagonistas, fazendo parte de algo”.Foto: Arquivo pessoal

Na escola, um período em que sofria bullying o afastou dos lápis. “Eu tenho uma anomalia genética na área dos dentes, então, isso era chacota para a escola inteira, afetava meus desenhos e eu não conseguia desenhar. Quando eu tô triste, não consigo desenhar de forma alguma. Só voltei quando já tinha quase 18 anos, mas queria retratar pessoas e não mais roupas. Eu era chamado de feio na escola e queria que pudessem enxergar que dentro de mim tinha alguma coisa bonita.”

Hoje, Mik vê na própria arte a melhor forma de fazer sua militância. “Se tivesse alcançado só meu irmão, eu já estaria no lucro. Mas muitos outros começaram a compreender que o desenho é a minha forma de falar. Eu falo errado, mas através do desenho eu consigo me expressar melhor. Então, eu vi que muita gente estava disposta a aprender mais sobre representatividade. No comecinho, recebi bastante ataque racista, só que, ao mesmo tempo, recebi muita força. Eu quero que as pessoas se sintam protagonistas, fazendo parte de algo. Alguns ainda não entenderam, mas o blackanime é sobre as pessoas se sentirem vistas. A maioria das encomendas que eu recebo agora são de gente querendo ser herói, personagem de anime. Isso é muito louco, porque eu, com 25 anos, tô vivendo o que eu queria ter vivido quando era criança.”

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