“Ela disse” ouve as mulheres, finalmente

Filme adapta livro sobre a investigação premiada dos abusos do produtor de Hollywood Harvey Weinstein; Carey Mulligan concorre ao Globo de Ouro como umas repórteres à frente da história.


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Jodi Kantor e Megan Twohey não tinham motivos para achar que sua reportagem sobre o assédio e os abusos sexuais do poderoso produtor de Hollywood Harvey Weinstein, publicada no jornal The New York Times em outubro de 2017, teria qualquer consequência. Afinal, em maio do ano anterior, Twohey, em parceria com o repórter Michael Barbaro, tinha publicado um texto em que 50 mulheres relatavam o mau comportamento e assédio do então candidato à presidência Donald Trump. Mesmo assim, ele foi eleito.

Mas a investigação de Kantor e Twohey sobre Weinstein mudou o mundo, reativando o movimento MeToo, lançado por Tarana Burke em 2006, em que mulheres do mundo inteiro relataram as suas experiências com assédio e abuso, dando origem ao Time’s Up, que busca mais equidade de gênero nos ambientes de trabalho. Essa história, que rendeu um livro escrito pelas duas jornalistas e publicado no Brasil em 2019 pela Companhia das Letras, agora virou filme: Ela disse, dirigido por Maria Schrader (da série Nada ortodoxa, pela qual ganhou um Emmy, e do filme O homem ideal), que está em cartaz no Brasil.

Para quem não se lembra: Weinstein foi um dos mais poderosos produtores de cinema de Hollywood, dono do mais bem-sucedido estúdio de filmes independentes nos anos 1990, a Miramax, em sociedade com seu irmão. Filmes produzidos por ele, como O paciente inglês (1996) e Shakespeare apaixonado (1998), ganharam o Oscar. Ele foi elogiado ou recebeu agradecimentos em 34 discursos de vencedores da estatueta. Era conhecido pelo jeito agressivo de liderar e de fazer campanhas para os filmes concorrerem ao Oscar.

Depois da reportagem do The New York Times, premiada com um Pulitzer, vieram outras sobre o produtor, incluindo uma de Ronan Farrow para a revista The New Yorker. Dezenas de mulheres fizeram acusações de assédio e abuso contra ele, de ex-funcionárias a atrizes como Mira Sorvino, Gwyneth Paltrow e Rose McGowan. Em 2020, ele foi condenado em Nova York a 23 anos de prisão. Em Los Angeles, ele está atualmente em julgamento por 11 acusações (uma das vítimas é a primeira-dama do Estado). Weinstein também deve ir ao tribunal em Londres.

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Carrey Mulligan (Megan Twohey), Zoe Kazan (Jodi Kantor) e Patricia Clarkson (Rebecca Corbett) Divulgação

A queda de Weinstein provocou uma série de acusações contra outros produtores, diretores e atores de Hollywood e a uma organização da indústria para tentar impedir que novos casos aconteçam. E isso contribuiu também para um aumento no número de mulheres atrás das câmeras, para que haja ambientes mais seguros para todas.

Ela disse se insere na tradição dos filmes de jornalistas. Como Todos os homens do presidente, um clássico dirigido por Alan J. Pakula em 1976 e ganhador de quatro Oscars. Robert Redford e Dustin Hoffman interpretam repórteres do jornal The Washington Post que investigam o Caso Watergate, ajudando a derrubar o presidente estadunidense Richard Nixon. Ou Spotlight – Segredos revelados, de 2015, dirigido por Tom McCarthy e estrelado por Mark Ruffalo, Michael Keaton e Rachel McAdams, que venceu o Oscar de filme e roteiro adaptado retratando uma investigação do jornal The Boston Globe sobre abuso sexual na Igreja Católica.

Só que Ela disse é uma versão feminista. Kantor (interpretada por Zoe Kazan) e Twohey (Carey Mulligan, indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante por sua atuação) parecem menos interessadas na adrenalina e na glória do que Carl Bernstein e Bob Woodward em Todos os homens do presidente, por exemplo. Como mulheres, elas querem que a verdade venha à tona para que outras não passem pelos mesmos abusos que Weinstein perpetrou impunemente durante décadas. O filme não tenta transformá-las em heroínas – e olha que elas precisam tocar as investigações tendo duas filhas pequenas, no caso de Kantor, ou sofrendo de depressão pós-parto, como Twohey. Nem há cenas cinematográficas de aventuras mirabolantes para conseguir informações.

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Carrey Mulligan, em cena do longa, pelo qual concorre ao Globo de Ouro Divulgação

O longa-metragem também não reproduz os abusos, nem dá palco para o abusador, que basicamente só aparece em áudios. Ela disse, como o nome indica, é, na verdade, um filme sobre a escuta, dando espaço para essas mulheres, que tiveram suas vidas e carreiras destruídas por Weinstein, serem ouvidas. Kantor e Twohey são afetadas pelas histórias, especialmente por serem mulheres. No fundo, a produção é uma grande obra sobre sororidade, união e coragem: das repórteres, sim, mas principalmente daquelas que tiveram peito de fornecer provas e depoimentos apesar dos contratos de confidencialidade, como Ashley Judd, a única atriz a aparecer falando abertamente naquela primeira reportagem, e que interpreta a si mesma aqui.

Faz diferença que o filme seja baseado no livro de duas mulheres e dirigido por uma terceira, além de escrito por outra, Rebecca Lenkiewicz (coroteirista de Ida, de 2013, e Desobediência, de 2017, e da série Small Axe, de 2020). Elas têm a sensibilidade de apresentar essa história, infelizmente mais comum do que deveria para mulheres de todas as classes sociais, cores de pele, países e profissões, com clareza, sensibilidade e sem provocar mais trauma.

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