Em “Um livro dos dias”, Patti Smith refunda o Instagram como lugar habitável

Em nova publicação, compositora registra cada um dos 366 dias com uma imagem, em diálogo com o que tem feito na rede social.


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Foto: Bob Wolfenson



Antes de Patti Smith chegar, o Instagram era quase nada. Não que ela tenha sido uma das primeiras habitantes desse caos filtrado de sorrisos congelados, chegou só em 2018, aconselhada por sua filha. É que o efeito de sua presença naquelas bandas não tem passado despercebido. Não é tanto que ela tenha entrado, como quem entra para um clube e se adapta ao regimento. Também não é o caso de estar no Instagram, como quem muda de casa ou passa uma temporada. Aconteceu de ela ir até lá e inaugurar alguma coisa.

Foi mais ou menos nesse processo de fazer do Instagram um lugar habitável – não como espaço fixo, mas como uma possibilidade de conversa e desafio à própria arquitetura destrutiva do instagramês – , que ela imaginou as páginas de Um livro dos dias (Companhia das Letras,  400 págs., R$104,90).

patti smith

A publicação registra 366 dias, cada um deles com uma imagem. Não se trata de uma reprodução do perfil da cantora, mas de uma obra inspirada no que ela tem inventado por lá, com algumas fotografias em comum. Patti leva em conta certa estrutura básica dessa rede: uma imagem (de seu arquivo, mas também reproduções etc.) e algumas poucas palavras. Mas isso não é dizer o suficiente sobre o que propõe.

Além de não escrever textos longos e de alcançar uma estranha harmonia em um conjunto tão variado e peculiar de fotos, a escritora trata o espaço e o tempo de um jeito especial. “29 de fevereiro. Fred Sonic Smith e eu fizemos pedidos nesse dia para a lua cheia que se erguia no céu de Michigan; no dia seguinte, mergulhamos na nossa vida. Lembrando daquela noite, às vezes atiro uma moedinha no meu velho poço espanhol, enviando desejos de anos bissextos futuros para todos.”

O ano é o da escrita, o da lua cheia aberta e oculta, o dos pedidos, os da vida mergulhada, os da velha e da nova existência do poço, os que ainda virão. O espaço não está desconectado disso, de forma que o poço bordeado de neve que aparece na fotografia surge como objeto fascinante, um portal quase sobrenatural.” 

Outros momentos pisam mais firme na terra, no calendário. 1° de março de 1980, o casamento de Patti e Fred. “Quando a alquimia era real”, ela escreve. Pisam firme, mas não deixam de se mover. Fred morreu em 1994, o que, de alguma forma, está marcado nesse post e no anterior. Como em uma série de outros. A morte como parte da vida é algo que faz muita presença na obra de Patti. Não só em sua história, mas em sua escrita do mundo.

Em Um livro dos dias tem muita morte e muito nascimento. Patti comemora aniversários e despedidas, de pessoas próximas ou de seus ídolos. Guarda objetos de lembrança, livros, peças de roupa, alguns tesouros particulares. Suas coisas são dispostas à vista da casa, fazem parte, tomam luz. “Aniversários listados são um gancho para outros, incluindo o seu. Um café em Paris é todo e qualquer café, assim como um túmulo pode ecoar outras lágrimas e lembranças”, ela escreve em sua carta de abertura.

Meu aniversário é em 26 de julho. A imagem dessa data são duas cadeiras de madeira confortáveis em um jardim. Ali, Patti se sentava ao lado de um de seus grandes parceiros de vida e arte, o escritor, ator e autor de teatro Sam Shepard. Conversavam, tomavam café e viam o sol se pôr. No que falta à imagem, eles estarão sempre lá pelos lados do Kentucky. Sam morreu em 27 de julho de 2017, dia que no livro é representado por seu chapéu que parece observar a paisagem através de uma janela aberta.

“Além de não escrever textos longos e de alcançar uma estranha harmonia em um conjunto tão variado e peculiar de fotos, a escritora trata o espaço e o tempo de um jeito especial.”

Gatos, filhos, discos, xícaras, camas, árvores, ruas. O mundo de Patti é familiar sem ser padronizado, um desintoxicador de olhos, um cuidado de palavras para a criatividade. Às vezes a gente abre e fecha como se fosse um brinquedo, um gesto contra o monopólio de rolar telas, um jeito diferente de tentar falar, não sei.

Em algum momento de sua carta, Patti se refere ao livro como oráculo solto. É um dos jeitos irresistíveis de se aproximar dele, sem dúvida. Vou fazer assim: vou abrir uma página agora e vocês pensam aí se a mensagem bateu. (Não é um “sinal”, tá? É um convite para pensar). Caiu em 5 de novembro, aniversário de Shepard, que morreu mas também nasceu e viveu. “(…) Falávamos de seus cavalos e do processo laboriosamente sagrado do escritor. Penso em Sam em seu aniversário enquanto tento tomar as rédeas de um manuscrito.”

Pior que pra mim ajudou no dia de hoje, nesse texto, a terminá-lo, pensando em outros que não me saem da cabeça e também não saíram dela. Cavalos soltos que talvez venham chegando sem rédeas e me ensinem a correr, talvez não. Mas faça você aí com a sua vida. É um livro bom de ter nas mãos.

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