Em “Anora”, uma stripper vai do sonho ao pesadelo

Em filme vencedor da Palma de Ouro e indicado a seis Oscars, o diretor Sean Baker transforma Cinderela em conto sobre a falência do sonho americano; ELLE conversou com o elenco.


Cena de Anora
Mark Eydelshteyn e Mikey Madison como o casal de Anora Foto: Drew Daniels



Desde que venceu a Palma de Ouro em Cannes, Anora vem sendo comparado a Uma linda mulher (1990), o conto de fadas em que Julia Roberts é uma prostituta contratada por um executivo para acompanhá-lo em eventos. Mas o filme que estreia nesta quinta-feira (23.01) no Brasil, concorrente a seis Oscars (incluindo melhor longa), sete Baftas e sete Critics Choice Awards depois de disputar cinco Globos de Ouro, é dirigido por Sean Baker (Projeto Flórida), e não Garry Marshall. 

E isso quer dizer que, por mais que no início ele até pareça uma comédia romântica divertida e adorável nos moldes de Hollywood, o longa-metragem logo se mostra, como todos os outros filmes de Baker, uma investigação sobre diferenças de classe nos Estados Unidos e no mundo.

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Em Anora, Mikey Madison (indicada ao Oscar de melhor atriz) interpreta a personagem-título, uma nova-iorquina que não leva desaforo para casa e prefere ser chamada de Ani. Ela trabalha como dançarina em uma boate frequentada por homens. Uma noite, o gerente do local pede que Ani, fluente em russo, atenda Ivan (Mark Eydelshteyn, uma espécie de Timothée Chalamet da Rússia). Filho de um oligarca, Ivan é divertido e mão aberta. O atendimento na boate passa para a mansão do rapaz, e os dois em poucos dias se casam durante uma viagem a Las Vegas.

Se a história parasse aqui, ou continuasse apenas explorando de maneira divertida as diferenças dos universos de Ivan e Ani, teríamos mesmo uma versão moderna de Uma linda mulher ou Cinderela.

Em Anora, porém, o romance é descoberto pelos pais de Ivan, que enviam Toros (Karren Karagulian), Igor (Yura Borisov, indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante) e Garnik (Vache Tovmasyan) para desfazer o matrimônio. A partir de uma cena típica das comédias malucas dos anos 1930, como Levada da breca, o drama vai ficando mais denso e dramático até explodir em uma sequência final que não deixa ninguém indiferente.

Por isso, Madison não consegue enxergar muito as comparações com o filme protagonizado por Julia Roberts nem com contos de fada. “Claro que é uma produção icônica, ela está espetacular. Mas eu não penso muito nisso”, disse a atriz em uma mesa-redonda com a participação da ELLE. “Entendo a atração das pessoas por contos de fada porque todos querem um certo escapismo em suas vidas. Mas nunca vi Anora dessa forma, porque para mim o filme se parece demais com a vida real. Claro que algo grandioso acontece com a minha personagem, mas isso é tirado dela.”

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Mark Eydelshteyn e Mikey Madison como o herdeiro e a stripper que se apaixonam em Anora Foto: Divulgação



O diretor planejou assim. “Na primeira meia hora, a edição é acelerada e embalada pela música”, explicou Baker. Em seu filme anterior, Red rocket (2021), bem antes de Deadpool & Wolverine, ele utilizou “Bye bye bye”, do *NSYNC. Neste, escolheu “Greatest day”, de outra boy band, a inglesa Take That, para a cena de abertura no clube de strip-tease. “Dessa forma, essa primeira parte tem uma abordagem jovem e cheia de energia. De repente, pisamos nos freios e trazemos tudo para o tempo real. Então, são dois filmes diferentes (dentro de um único longa).”5
Trabalho sexual sem estigma

Anora é o quinto filme seguido de Baker em que os personagens são trabalhadores do sexo. Segundo ele, não foi nada planejado. Desde o início de sua carreira, o cineasta estadunidense interessou-se por pessoas à margem, como imigrantes. 

Seu quarto longa, Starlet (2012), tratava de uma jovem atriz de filmes pornográficos que ficava amiga de uma mulher com mais de 80 anos de idade. Em sua pesquisa, ele descobriu um universo de possibilidades. “Percebi que havia milhões de histórias para contar desse mundo”, disse o cineasta, que tenta diminuir o estigma relacionado a essas atividades. 

Em Tangerine (2015), rodado com iPhones, sua protagonista era uma trabalhadora do sexo trans. Em Projeto Flórida (2017), pelo qual Willem Dafoe concorreu ao Oscar de ator coadjuvante, a stripper Halley (Bria Vinaite) mora com sua filha, a pequena Moonee (Brooklynn Prince), em um motel perto do Disney World. Red rocket, o ator de filmes pornográficos Simon Rex interpreta Mikey, um astro de produções do gênero em decadência que volta à sua cidade natal, no Texas. 

Ao voltar suas câmeras para essas pessoas, o cineasta tem a chance de mostrar como as diferenças de classes transformam o chamado sonho americano em uma ilusão.

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Controvérsia em Anora

Mesmo com sua trajetória respeitada, o diretor foi alvo de certa controvérsia nas redes sociais recentemente quando Madison revelou que o filme não usou coordenador de intimidade para as cenas de nudez e sexo – que são muitas, em geral em contexto mais cômico. A atriz disse que foi consultada e, em comum acordo com outros atores, decidiu que não seria necessária a contratação de um profissional.

Madison, que fez aulas de russo e de dança e passou um tempo em Nova York para aprender o sotaque local, acredita que aprender a dançar influenciou muito a maneira como ela se sente sobre si mesma e seu corpo. “Me deu uma nova perspectiva sobre minha sexualidade”, disse.

“Essa primeira parte tem uma abordagem jovem e cheia de energia. De repente, pisamos nos freios e trazemos tudo para o tempo real. Então, são dois filmes diferentes (dentro de um único longa)” Sean Baker, diretor

Dançar e fazer cenas de sexo não foram os únicos desafios da atriz de 25 anos, que nunca tinha sido protagonista. Algumas sequências têm ação, drama e comédia. Ani está acostumada a lutar por si mesma, e não é diferente quando começa a sofrer humilhação atrás de humilhação. Ela pode estar gritando e esperneando, mas, ao mesmo tempo, guarda para si seu sofrimento. 

Por isso, a explosiva sequência final tem sido tão comentada, porque ela vai de um tom a outro em um piscar de olhos. “Uma das coisas que eu amo no Sean é que ele conta a história que deseja. Não está preocupado em servir nada em bandeja de prata para o público”, disse Madison. “Ele está constantemente revertendo os clichês e tornando a história ou a cena algo inesperado. Quanto ao encerramento, acho que ele só queria retratar de uma maneira que fosse impactante para todos nós e para os personagens.”

E é definitivamente por causa dela que Madison ganhou diversos prêmios de atuação, além de concorrer ao Oscar, ao Bafta, ao Globo de Ouro e ao Critics Choice.

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