Estilo de Elis Regina revelava sua personalidade única

Há quatro décadas, o Brasil perdia uma das maiores cantoras de sua história. Mas os looks ousados de Elis, que ajudou a popularizar a minissaia e o pixie hair, continuam mais atuais do que nunca.


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Foto: Bob Wolfenson



Elis Regina cantou com convicção que o passado é uma roupa que não nos serve mais. Metáforas de Belchior à parte, a cantora gaúcha, que nos deixou em 19 de janeiro de 1982, apresentou roupas, figurinos e penteados que insistem em permanecer no imaginário coletivo como referências de moda e personalidade. Quatro décadas após sua morte precoce, aos 36 anos, as escolhas estilísticas de Elis não apenas ainda nos servem bem, como contribuem para contar parte de sua fundamental trajetória na música brasileira.

Elis vivenciou o sucesso de maneira avassaladora aos 20 anos, ao conquistar júri e público no 1º Festival da Música Popular Brasileira, em 1965, com “Arrastão”. A peruca modelada de laquê e o vestido de corte alongado utilizados na ocasião se tornaram rapidamente anacrônicos no turbilhão cultural e comportamental da década de 1960.

À frente do programa de TV O fino da bossa, entre 1965 e 1967, aos poucos deixou as perucas de lado e aderiu a um corte na altura dos ombros. Nesse período, frequentou o ateliê de madame Boriska, estilista húngara radicada em São Paulo, e se aproximou de profissionais que se empenhavam em introduzir a alta-costura no país, como Clodovil Hernandes e Dener Pamplona.

Na memória de Clodovil, Elis acidentalmente estreou a minissaia no Brasil. “Lancei o uso da saia curta por um erro da contramestra. Mandei descer 8 cm num vestido que a Elis Regina usaria no Fino da bossa e ela subiu 8 cm. Só vi na TV. Disse para a Elis: ‘Você é louca’. Ela respondeu: ‘Você mandou!’ Como boa cliente, ela não questionava minha criação”, contou o estilista, falecido em 2009, em uma entrevista de 1991.

Em 1967, quando se casou com Ronaldo Bôscoli, Elis teve um desentendimento com Clodovil e passou a ser cliente de Dener. O vestido de noiva, com cauda de 10 m, que ocupou quase toda a capela onde ocorreu a cerimônia, assim como os vestidos de gala usados em apresentações europeias no fim da década, foi assinado por ele.

Com Dener e Laura Figueiredo, padrinhos do casamento com Bôscoli, Elis se integrou a um círculo social no qual absorveu referências sofisticadas de moda. Nessa época, acrescentou peças de Yves Saint-Laurent, Chanel e Dior ao guarda-roupa.

Em 1968, ela remodelou a iconografia em torno de si ao aderir ao corte “joãozinho” – o célebre pixie da atriz Mia Farrow. Segundo ela, uma estratégia de autoproteção perante os homens com quem trabalhava e convivia: “Quem sabe eu não tenha vestido muita calça comprida, muita camisa e cortado meu cabelo curto para ficar imune a certo tipo de ataque? Talvez tenha sido até inconsciente, para me defender”, aventou numa entrevista.

Já no início dos anos 1970, Elis projetou uma imagem mais moderna e solar, com vestimentas de ar despojado, como batas com estampas psicodélicas e vestidos floridos. Quando foi equivocadamente acusada de ser conivente com a ditadura militar, em 1972, mudou novamente: suas canções e interpretação ficaram mais sisudas, ao passo que seu visual se tornou mais sóbrio e simples, com camisetas lisas ou de estampas discretas e saias alongadas.

Em dezembro de 1975, o espetáculo Falso brilhante trouxe um novo marco à carreira. Os figurinos lúdicos, assinados por Lu Martin, como o clássico vestido de alça branco adornado com estrelas prateadas (na foto ao lado), ajudavam a destacar o discurso engajado do espetáculo.

Ao fim da temporada, Elis deixou os cabelos crescerem e mudou novamente de repertório e visual. Após a morte de Dener, naquele mesmo ano, retomou a parceria com Clodovil, que a encorajou a explorar sua sensualidade.

No show Saudade do Brasil, de 1980, popularizou o estilo sportswear. “Lembro de andarmos nas ruas do Rio e as pessoas olharem com estranheza. Depois virou uma grande tendência. Nos últimos anos, ela estava cada vez mais brasileira. Uma de nossas últimas viagens foi a Pernambuco e ela ficou fascinada pelas rendas de bilro de Olinda. Ela fazia crochê e bordado e tinha paixão por temas nacionais”, recorda o filho João Marcelo Bôscoli.

Elis voltou a cortar os cabelos curtos, com um mullet descolorido, e seu figurino também ficou mais moderno e antenado com as tendências oitentistas, como o macacão dourado de seu último show, Trem azul, de 1981.

A roupa com que foi enterrada não foi menos significativa: a camiseta censurada do show Saudade do Brasil, preta, com a bandeira do país ao centro, onde se lia “Elis Regina”, no lugar de “ordem e progresso” – uma tentativa de retomar um dos símbolos nacionais deteriorado pelos militares. Passados 40 anos da morte de Elis, suas canções, visuais e ações permanecem impactantes e impregnados de saudade.

Renato Contente é autor do livro Não se assuste, pessoa! As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar (Letra e Voz) e vai assinar os textos da fotobiografia de Elis, organizada por Augusto Lins Soares, sobre a relação da cantora com a moda, com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2022.

Esta reportagem foi originalmente publicada na ELLE impressa Volume 06. Para comprar a edição ou fazer a sua assinatura, clique aqui.

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