De Anitta a Ana Castela, o “feat” domina o mercado musical brasileiro

Encontros musicais entre astros pop de estéticas diferentes se tornam um dos carros-chefes das paradas de sucesso. Filipe Catto, Josyara e Rico Dalasam dividem suas experiências


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Hoje em dia parece natural o hábito de consumir músicas que contêm “featurings”, os cada vez mais populares “feats“, na abreviação em inglês. Na tradução literal, “apresentando”, o termo indica que a canção foi gravada por um determinado artista, com participação especial de outro. 

Exemplo recente é Luísa Sonza, que acaba de lançar feats com Caetano Veloso (uma regravação de “You don’t know me”, de 1972, usando a base da gravação original) e com Maiara & Maraisa (“Bêbada favorita”). Luísa parece investir ao mesmo tempo no prestígio oferecido por Caetano e na alta audiência da dupla sertaneja mato-grossense. Em seu novo álbum, Batidão tropical vol. 2, Pabllo Vittar divide com Gaby Amarantos o microfone de “Não vou te deixar”, que, por sua vez, é uma versão de “I don’t want to get hurt”, um hit de 1995 da dupla sueca Roxette. O fenômeno parece natural, mas não é bem essa a realidade exata da inflação de feats que assola o cenário pop atual. 

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Na primeira semana de junho, por exemplo, das 50 músicas mais ouvidas no Brasil pela plataforma Spotify, nada menos que 30 continham feats, inclusive a número 1, “Quem não quer sou eu”, montagem de um sucesso na voz de Seu Jorge em 2011 acrescido de vocais do MC Leozin. Estavam ainda na lista encontros sertanejos de Ana Castela com Zé Neto & Cristiano (“Foi intenso”); novamente Maiara & Maraisa com Matheus & Kauan (“Não sei se tô solteiro”) e com Hugo & Guilherme (“Morena de Goiânia”); Lauana Prado com Jorge & Mateus (“Haverá sinais”). Os novos astros do trap e do funk são pródigos em feats, como é caso de “Não vou namorar”, paródia picante do “Já sei namorar” (2002), dos Tribalistas, com os MCs Dudu SK e TH da Serra. 

O mais comum é o crossover entre artistas de gêneros musicais em quase tudo diferentes

O mais comum é o crossover entre artistas de gêneros musicais em quase tudo diferentes, como nos encontros do sertanejo Luan Santtana com o funkeiro Kevin o Chris (“Pega escandaloso”) ou da sertaneja Ana Castela com o rapper Hungria e o eletrônico Alok. 

Neste ano, Anitta, uma campeã dos feats, já apostou na junção em ídolos pop (como Tiago Iorc e o britânico Sam Smith), pagodeiros (Menos É Mais), funkeiros (Dennis e Pedro Sampaio), destaques do afropop baiano (Léo Santana) e uma variedade de astros latino-americanos. Em seus 11 anos na indústria musical, Anitta já gravou com gente tão diversa como Pabllo Vittar, Ludmilla, Marília Mendonça, Wesley Safadão, além dos internacionais Madonna, Cardi B e Black Eyed Peas, os colombianos Maluma e J Balvin… Ludmilla segue a mesma linha, lançando feats com pagodeiros, rappers, trappers, sertanejos, cantores de piseiro, pagodeiros baianos etc.

Nada espontâneo

A prática dos encontros musicais acompanha a indústria fonográfica desde sua origem, mas nunca foi tão disseminada e banalizada como no presente. Na música brasileira em particular, há quem compreenda a quantidade de parcerias como um problema, ou pelo menos um fator controverso que está modificando toda a produção musical. 

Frequentemente, o modelo atual de feats não parte de uma parceria espontânea com motivações criativas, surgida livremente entre artistas que queriam trabalhar juntos por afinidade, mas por uma transação exclusivamente comercial. 

Daniel Ganjaman, produtor de artistas de prestígio como Criolo e BaianaSystem, expõe um ponto de vista ressabiado: “Os artistas nem precisam mais se encontrar pessoalmente. Às vezes, nem se conhecem, nem sequer se falaram. Já trabalhei em feats de artistas que não trocaram sequer um telefonema. Um arranjo de gravadora fez com que a participação daquele artista acontecesse. Mandei o instrumental, a pessoa me mandou a voz, coloquei, e a música saiu”. O produtor vai além: “Sendo bem comedido, eu diria que mais ou menos 90% das colaborações entre artistas no cenário pop atual soa como algo extremamente arranjado entre produtores e gravadoras, que extrapolam o aceitável”. 

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Outros preferem ver a questão de forma positiva, como algo que beneficia todos os envolvidos no encontro (e o público, supostamente). Jeff Nuno, ex-gerente no escritório brasileiro da distribuidora virtual de música ONErpm, hoje à frente de sua própria distribuidora sediada na Espanha, Lujo Network, argumenta que os feats acontecem para atender a dois tipos de situação. Na primeira, dois artistas já estabelecidos, mas acomodados em nichos musicais diferentes, somam e multiplicam seus respectivos públicos à custa da base de fãs do parceiro de ocasião. Exemplo recente é o single “Back for more”, em que Anitta canta com a boy band de k-pop Tomorrow x Together, cada um mirando em mercados do outro lado do globo. Numa espécie de expansionismo artístico-comercial, cada artista parte para a conquista de território estrangeiro, nesse caso não apenas de estilo musical, mas também geográfico. É possível imaginar que, eventualmente, o encontro se dê entre artistas que nem sequer são admiradores das obras dos parceiros.

Na segunda situação descrita por Nuno, um artista já estabelecido dá suporte para outro que está começando, com o objetivo de transferir para ele parte de sua audiência. É evidente o benefício que isso pode trazer ao cantor emergente, e o executivo explica por que a associação interessa também àquele que já acumula décadas de carreira e/ou milhões de seguidores e plays nas plataformas. “Um artista muito famoso tem que manter seus números, então para ele vale a pena estar associado com emergentes. Anitta faz muito isso, se associa a nomes novos com grande potencial. Assim, o artista grande reativa seus números durante um tempo”.

“Às vezes, por conta da colaboração de um novato com uma artista como Anitta, aquilo vai para um patamar completamente irreal em comparação à discografia inteira daquele artista” Daniel Ganjaman

A cantora surge como exemplo mais estruturado de artista expansionista, não à toa alçada à competição do alto das paradas mundiais, e não apenas de seu país de origem. Na configuração atual, em que a diversidade (individual, artística, étnica, racial, sexual etc.) se tornou commodity mesmo em ambientes antes avessos à expressão das ditas minorias, interessa à engrenagem misturar referências e artistas colombianos, brasileiros, mexicanos, porto-riquenhos, coreanos e assim por diante. 

“Às vezes, por conta da colaboração de um novato com uma artista como Anitta, aquilo vai para um patamar completamente irreal em comparação à discografia inteira daquele artista”, explica Ganjaman. “Só aquela música tem aquela audiência, mas a média de ouvintes mensais daquele artista vai ser catapultada. Isso acaba virando uma moeda entre gravadoras, produtores, artistas.” 

Apesar de hegemônica entre artistas emergentes de novíssima geração, há quem abomine o abuso da prática. É o caso da cantora e compositora gaúcha Filipe Catto: “Eu acho um porre, uma anacronia, chato, cafona. É horrível a gente ser obrigada a fazer qualquer coisa porque é um cruzamento de público, oportunista, lucrativo, vantajoso. Acho um horror”.

Catto afirma tratar o recurso com máxima moderação: “Fico muito feliz que graças às deusas nunca precisei fazer feat com ninguém, e nem planejo fazer tão cedo. Os que fiz foram pontuais, com pessoas muito especiais, como Zélia Duncan, que compôs a música (‘Só por ti’, 2017) comigo”. Sua receita para um feat ideal é mais ou menos o oposto do modelo predominante: “Um encontro artístico tem que ser feito pela própria arte, a música tem que desejar aquele encontro. É diferente ouvir uma parceria que tem razão de ser, como ‘Under pressure’ (1981), de David Bowie e Queen, ou ‘Nosso estranho amor’ (1980), de Caetano Veloso e Marina Lima”. 

Mais favorável aos feats, Josyara demonstra carinho pelo formato: “Acho que o público se interessa muito por esses encontros. Tem um frisson, uma expectativa diferente”. Participante de gravações conjuntas com Pitty, Margareth Menezes, Maglore e Giovani Cidreira, entre outros, a cantora e compositora baiana explica os critérios que utiliza para aceitar um convite de outro artista: “Tenho que gostar da música e tem que fazer sentido como se fosse uma composição minha, que eu esteja confortável em cantar”. O mesmo vale quando ela mesma toma a iniciativa: “Quando desejo convidar alguém, imagino a voz ou a identidade para o arranjo daquela canção. Na faixa ‘ladoAlado’, com Margareth Menezes, a música só fez sentido quando a voz dela ecoou os versos. Isso é bonito de sentir”.

O rapper, cantor e compositor paulista Rico Dalasam, que já fez colaborações com Pabllo Vittar, Curumin, Emicida, Edgar, Linn da Quebrada, Jup do Bairro, Céu, Tuyo, Xênia França, Liniker etc., também aborda a questão pelo lado positivo: “Particularmente, gosto de escutar encontros musicais de artistas que admiro, e gosto de participar também. Às vezes, é um desejo antigo dos fãs que se realiza, ou o encontro de duas forças que a gente nem sabia que precisava existir e ama o resultado”.

“Acho que o público se interessa muito por esses encontros. Tem um frisson, uma expectativa diferente” Josyara

Quanto à motivação para fazer um feat, Dalasam demonstra equacionar critérios artísticos e pragmáticos: “Em alguns gêneros, você compra um feat, em outros sua gravadora lhe consegue um como um encontro de marcas, e tem quem tenta legitimação com vozes de outras gerações. Acho tudo válido se estiver em coerência com seu movimento e gestão de carreira”. Ele admite que nem sempre o critério artístico é o que faz a roda girar: “Se não for do meu puro e sincero desejo, só aceito um feat hoje se valer minha contribuição intelectual e com adiantamento de dinheiro”.  

A balança geral oscila e pode estar em qualquer ponto entre os extremos da satisfação artística plena e do puro caça-cliques. Em tempo de avanço das inteligências e burrices artificiais, ao público é cada vez mais árdua a tarefa de distinguir gato de lebre.

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