10 vezes Zuzu Angel

"Quem é essa mulher? Uma biografia de Zuzu Angel", de Virginia Siqueira Starling, esmiúça a trajetória da mineira, da infância ao assassinato pela ditadura militar.


Zuzu Angel
Zuzu Angel apresentando sua coleção em Nova York, em 1971. Foto: Moe Becker/WWD/Penske Media via Getty Images



Zuleika Angel Jones entrou para a história da moda brasileira por ter sido a primeira costureira a clamar por uma moda nacional. Como muitos de seus pares, começou fazendo sob medida para as senhoras abastadas da época, influenciada pelo que acontecia na Europa. Teve como clientes as primeiras-dama Sarah Kubitschek e Yolanda Costa e Silva e a atriz Joan Crawford, de quem se tornou amiga, entre muitas outras mulheres célebres dos anos 1960/70. Mas fez uma reviravolta na carreira ao desfilar em Nova York e colocar na passarela roupas inspiradas em baianas e cangaceiras, cores e estampas fortes. Mais: uma moda-manifesto.

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Foto: Divulgação

E entrou para a história do Brasil ao desafiar o regime militar. Mãe de Stuart Angel, estudante de economia e militante do grupo guerrilheiro Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), que foi assassinado durante uma série de torturas no seu interrogatório, conduzido por militares da aeronáutica, e nunca teve seu corpo devolvido à família, Zuzu Angel fez política da maneira que sabia: costurando.

Do desfile na casa do cônsul-geral do Brasil em NY, Lauro Soutello Alves, em 1971, ao seu assassinato em 1976, bordou tanques ao lado de anjos, sóis enclausurados, e soldados que pareciam figurinhas de chumbo, “daqueles que tantos meninos gostam de brincar”, como narra Virginia Siqueira Starling, autora da ótima biografia Quem é essa mulher?, publicada recentemente pela Todavia. “Entre os chiffons laranja e as estampas de borboleta, Zuzu desfilou o seu protesto.” 

A seguir, ELLE seleciona dez fatos que marcaram a vida da estilista e chamam a atenção no livro:

1 Moda política

A estilista brasileira foi pioneira em fazer da moda um canal político. Em 1971, mesmo ano em que Stuart “desapareceu”, Zuzu apresentou sua terceira coleção em Nova York, munida de simbolismos para todos os lados – para começar, ela estava toda de preto, com um cinto de metal repleto de crucifixos prata (foto acima e abaixo). A encarnação do luto. Na passarela, Zuzu dividiu os 58 looks em nove grupos: vestidos leves para o verão, xadrezes de festa junina e cores vibrantes como turquesa e tangerina, perfeitos para férias, entre eles. Lá estavam pequenos grandes detalhes, como uma faixa preta de luto amarrado ao braço de uma modelo, um sol atrás das grades bordado em uma gola de um vestido plissado, um anjo ao lado de um tanque militar. “Concebidas e confeccionadas em um ambiente historicamente reconhecido como feminino – o ateliê de costura –, as peças bordadas extrapolam o consumo como meta: apresentadas para uma audiência internacional, enunciavam o drama pessoal de sua criadora, que correspondia aos dramas de centenas de famílias brasileiras, e manifestavam suas críticas e acusações contra o governo militar”, descreve a autora no livro. “Fashion takes a political turn”, ou a moda assume um rumo político, escreveria o jornalista Dennis Redmont, no The Washington Post.

2 Hi-lo

Muito antes do hi-lo entrar no vocábulo fashion, Zuzu começou a ganhar dinheiro e fama com suas saias balonês feitas de zuarte, tecido de algodão resistente, rústico e barato, similar ao jeans e comum na manufatura de capas para forrar colchões. “Nenhuma costureira cogitaria fazer saias de zuarte para clientes de uma certa posição social, especialmente se fossem amigas da primeira-dama. Mas Zuzu precisava inventar moda com o que tinha nas mãos, dentro de um orçamento limitado, e as estampas de passarinho mescladas com listras coloridas – em tons de verde, azul e rosa sobre um fundo bege – atiçaram o lado mais atrevido de sua criatividade. Ela coordenava as cores do tecido com as fitas de gorgurão; variava, de acordo com a peça, fechamentos laterais e fileiras de botões claros; acrescentava galões, um tipo de fita enfeitada em toda a sua extensão, para ocultar imperfeições no pano e aprimorar o acabamento”, narra Virginia.

“Zuzu bateria de frente com o ‘ditatorialismo dos grandes costureiros europeus’” Virginia Siqueira Starling

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3 Feminista

Atenta à sua época e mulher independente que era (criou os filhos sozinha, sem a ajuda do ex-marido), se fascinou pela “Lata de lixo da liberdade”, uma instalação na qual as mulheres eram convidadas a jogarem fora símbolos opressores, como os sutiãs, usada em um protesto contra o concurso de beleza Miss America, em 1968, e adotou uma posição próxima aos movimentos feministas – se filiou, aliás, ao Women’s Liberation. Logo, levou o lema para sua própria moda. “Zuzu pretendia diferenciar a moda que escraviza da moda que ela própria criava, mais alinhada com as campanhas de libertação integral da mulher”, escreve Virginia. “Ou seja, Zuzu bateria de frente com o ‘ditatorialismo dos grandes costureiros europeus’, firme em sua crença de que a mulher brasileira já o havia superado e era definitivamente ‘livre para usar o que quiser’.”

4 Moda sem conflito de gerações

Como era de se esperar, Zuzu atacou também o etarismo. Na sua sexta coleção International Dateline Collection, de 1972, revelou “a mulher sem idade, sem receio e… sem soutien”. “Fosse ela mãe ou filha, seria absolutamente confiante em seu corpo, destemida na hora de escolher as roupas, despida de preconceitos e desobediente quanto às normas de estilo e elegância”, narra a autora. Para garantir esse novo guarda-roupa, a estilista garantiu comprimentos variados, do míni ao longo, embutiu pennes e cortes nas blusas, como em um bustiê, que modelavam e sustentavam os seios, fez pantalonas, vestidos frente-única e peças de polybel estampadas com pássaros em revoada. Mais: na campanha de lançamento, inverteu os papéis esperados, juntando mães, que vestiam modelos jovens e arrojados, e filhas que apareciam com longos quase comportados.

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A estilista apresentando sua coleção em Nova York, em 1971 Foto: Moe Becker/WWD/Penske Media via Getty Images


5 Controvérsias

Zuzu acusou Dener de plágio, por ter feito uma coleção de alta-costura inspirada em baianas, tal como ela havia feito. Mas nunca creditou Luiz de Freitas, fundador da Mr. Wonderful, por ter feito dez vestidos de patchwork de renda, a pedido dela. “Não satisfeito em entregar o pedido, Luiz de Freitas teria feito mais. Explicou onde encontrar as melhores rendas, por quais preços, e não exigiu nada além de pagamento. Não imaginava que tinha dado a chave mestra de um vestido que, com o tempo, seria peça emblemática da versão de moda brasileira de Zuzu. Ela nunca o creditou publicamente pelo trabalho”, escreve Virginia. 

6 Modelos 

Além de recorrentemente fazer das duas filhas, Ana Cristina e Hildegard, modelos, a mineira também era encantada por Elke Maravilha, por achar que ela encarnava com perfeição seu ideal de mulher livre. A modelo retribuiu a confiança e amizade, chegando a ser presa no aeroporto de Congonhas, depois de rasgar um cartaz em que Stuart era dado como desaparecido e procurado, num claro movimento da ditadura tentar se distanciar do seu assassinato. “Elke tinha seguido o exemplo de Zuzu: esfregado, bem debaixo do nariz da ditadura, que sabia o destino de Stuart. O cartaz era um artifício perverso que permitia aos militares divulgar dados de acusados de subversão, fingir que estavam vivos e foragidos e, assim, convencer a opinião pública de que não passavam de assaltantes de bancos, terroristas e sequestradoras que deveriam ser denunciados e punidos”, traz o livro.

“Elke (Maravilha) tinha seguido o exemplo de Zuzu: esfregado, bem debaixo do nariz da ditadura, que sabia o destino de Stuart” Virginia Siqueira Starling

7 Marketing

Zuzu Angel tinha um olhar extremamente sagaz para o business. Desde cedo, se aproveitou da proximidade com mulheres famosas para ganhar colunistas sociais dos jornais mineiros e cariocas mais importantes da época, como o Jornal do Brasil, O Globo e O Correio da Manhã – era comum ela mesma enviar fotos em que aparecia ao lado de gente como Kim Novak, a estrela de Hitchcock que visitou sua loja em Ipanema. A estilista ingressou em grupos feministas, como o Fashion Group, cujo objetivo era incentivar mulheres a lançarem e desenvolveram suas carreiras na moda e que contava com membros a exemplo de Virginia Pope, do The New York Times, e Carmel Snow, da Harper’s Bazaar. Fez do anjo não só um símbolo de protesto pelo seu filho, como também ícone, espalhando-o por camisetas e sacolas. E bolou um esquema de diversificação da sua marca, criando a linha Do It Yourself, em que a cliente recebia um molde e o tecido para que fizesse sua própria peça Zuzu, a um preço mais baixo. “Não faria suas roupas chegarem a todas as classes sociais, mas seu projeto da Nova Mulher (ligado às questões feministas da época e sua noção de uma moda mais livre) demonstrava que um prêt-à-porter criativo, cujos preços reduzidos o deixavam mais competitivo em relação aos modelos de alta-costura, expandia significativamente o rol de clientes sem grandes prejuízos ao elemento aspiracional da marca”, narra Virginia. 

8 Tipo exportação

Primeira estilista a desfilar fora do Brasil, Zuzu levou sua moda para os Estados Unidos, não só na passarela. Suas roupas foram vendidas na prestigiada loja de departamento Bergdorf Goodman e, posteriormente, na Neiman Marcus. “Os anúncios da Bergdorf publicados nos jornais da cidade convidam as nova-iorquinas a se dirigirem ao seu ponto nobre na Quinta Avenida, onde poderiam conhecer um anjo, Zuzu Angel: o achado, o prêmio, a alegria da loja, cujas roupas de criação exclusiva para o magazine eram ‘frescas e divertidas, únicas e atrevidas, mas sempre, sempre uma delícia de vestir’”, escreve a autora.

“Depois de um desfile-protesto bem debaixo do nariz do cônsul-geral brasileiro em Nova York, de um anjo-símbolo estampado em tudo quanto era produto, de cartas e reuniões e apelos a generais, os órgãos de inteligência e segurança estavam seguros de que a campanha de Zuzu não teria fim” Virginia Siqueira Starling

9 Desafio à ditadura

Dona Zuzu não ficou só nos recados simbólicos que suas roupas traziam. Como qualquer mãe inconsolável, fez o que pode: tentou a simpatia e compaixão primeiro de esposas de militares de alta-patente, acionou a embaixada americana, com a ajuda dos parentes estadunidenses de Stuart, enviou cartas a Anistia Internacional e a senadores americanos, contrários ao apoio dos Estados Unidos em países com regime ditatorial, driblou a segurança durante a visita de Henry Kissinger ao Brasil nos anos 1970, conseguindo passar um bilhete a sua mulher (que acabou sendo interceptado), e pretendia reiterar suas denúncias na Europa durante a visita do presidente Geisel a Londres e Paris. “Depois de um desfile-protesto bem debaixo do nariz do cônsul-geral brasileiro em Nova York, de um anjo-símbolo estampado em tudo quanto era produto, de cartas e reuniões e apelos a generais, os órgãos de inteligência e segurança estavam seguros de que a campanha de Zuzu não teria fim (…). Prendê-la não era viável (…). Nesse impasse, restava a mais definitiva das soluções”, narra Virginia.   

10 Legado 

A trajetória destemida de Zuzu inspirou livros, a famosa canção do Chico (de quem era amiga e para quem enviou um bilhete dizendo que se sofresse um acidente, seria crime, o que aconteceu em 1976, provocando sua morte), “Angélica”, filme, teses universitárias, enredo de escola de samba, balé, poesia, a ministra do Supremo, Cármen Lúcia, que dedicou um texto à ela, comparando-a a Antígona, e, claro, a moda. Nessa seara, o discípulo mais famoso dessa moda brasileira e politizada, difundida por ela, é o também mineiro Ronaldo Fraga, que, não à toa, já fez dois desfiles em sua homenagem. “Ao ler sobre Zuzu pela primeira vez, sentiu todo o impacto de uma descoberta transformadora: a moda se descortinava muito mais livre e revolucionária do que o jovem Ronaldo imaginava, poderosa o bastante para provocar e empurrar o público rumo a novas reflexões e sensações. Quanto mais ele considerava o potencial da criação através da indumentária, mais concordava com as ideias de Zuzu sobre a moda ser ‘força viva de expressão e comunicação’”, traz a autora.

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