Para Marjorie Estiano, Ângela Diniz era uma feminista sem consciência política disso

Atriz interpreta a socialite vítima de feminicídio em “Ângela Diniz: Assassinada e condenada”, série da HBO Max.


Marjorie Estiano
A atriz Marjorie Estiano. Foto: Luiza Ananias



Marjorie Estiano aceitou o convite para interpretar a socialite Ângela Diniz, morta a tiros em 1976 pelo namorado, Doca Street, antes mesmo de ler o roteiro da minissérie dirigida por Andrucha Waddington (Vitória), que estreia nesta quinta-feira (13.11) na HBO Max.

Ângela Diniz: Assassinada e condenada nasceu a partir do podcast Praia dos Ossos (2020), sucesso da Rádio Novelo, que mergulha em um dos casos de feminicídio mais emblemáticos do Brasil.

“Não sabia nada sobre ela. Mas depois que ouvi o podcast, entendi a dimensão do que aquilo significava. Trata de uma violência estrutural que me atinge diretamente. Então, foi inevitável sentir a responsabilidade, pessoal e profissional, de contar essa história”, diz a atriz em entrevista à ELLE.

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O crime, que chocou a sociedade da época, ocorreu na casa de veraneio da mineira, na Praia dos Ossos, no balneário de Armação de Búzios, no Rio de Janeiro. O julgamento do assassino, vivido na série por Emílio Dantas, ficou marcado tanto pelo machismo da defesa quanto da cobertura da imprensa, ganhando repercussão e impulsionando a luta contra a violência de gênero no país.

“Ângela era uma feminista sem consciência política disso. Vivia sua vida de forma que rompia com as regras patriarcais, mesmo sem perceber”, afirma Marjorie. “Ela não lutava por um direito coletivo, mas fazia isso ao reivindicar o direito individual de viver como quisesse.”

Na conversa com a ELLE, Marjorie reflete sobre o impacto que a personagem teve em sua vida, seus trabalhos no cinema e a participação no show de Gilberto Gil.

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Marjorie Estiano como Ângela Diniz Foto: Divulgação

Como você reagiu quando recebeu o convite?

Comecei a me preparar imediatamente, mesmo sem saber se o projeto aconteceria. Era um tema tão importante, e uma personalidade tão distinta do que normalmente se vê nas personagens femininas. Ângela é uma mulher que se sente bem na própria pele, que fala o que pensa, vive o que quer, se dedica ao prazer e se autoriza a senti-lo. Isso é absolutamente inédito, não só para mim, mas como para a espectadora também.

Como foi esse processo?

Cada personagem demanda diferentes tipos de estudo. Quando há um recorte de época, é preciso entender o contexto, o pensamento, o comportamento da sociedade naquele período. Depois, vem a personalidade da figura em si – como ela pensa o mundo, como se apresenta fisicamente, qual é sua perspectiva. E, no caso da Ângela, havia ainda o propósito da série: discutir a violência estrutural do patriarcado sobre a mulher.

“Acho que a principal herança da Ângela Diniz foi a conexão com o prazer, no sentido mais amplo: o prazer de estar viva, de se relacionar, de existir”

Você também leu muito material sobre o tema.

Ler foi essencial. Cada autora trouxe uma visão particular sobre o assunto. Comecei com O segundo sexo (1949), de Simone de Beauvoir, e depois fui para A reengenharia do tempo (2003), da Rosiska Darcy, que traça um paralelo econômico sobre a desigualdade de gênero. Também mergulhei em textos raciais, escritos por Djamila Ribeiro, Lélia Gonzalez, e assisti a muitos documentários. Esses estudos me ajudaram a entender minha própria formação. Quando falo sobre violência contra a mulher, estou falando sobre mim mesma também. Precisei estudar para abrir espaço e viver essa perspectiva, porque, de alguma forma, também fui e ainda sou acometida por essas violências.

O primeiro episódio já descreve Ângela como “linda, livre e louca. E ser tudo isso, nos anos 70, era perigoso”.

Ângela vivia sua vida rompendo com as regras patriarcais, mesmo sem perceber. Há entrevistas em que ela diz que feminismo era coisa de mulher mal amada. Ela realmente não compreendia o feminismo, mas, enquanto personalidade transgressora e libertária, era uma militante, ainda que sem essa consciência. Ela não lutava por um direito coletivo, mas o fazia ao reivindicar o direito individual de viver como bem quisesse.

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Marjorie Estiano como Ângela Diniz e Emilio Dantas como Doca Street Foto: Divulgação

O caso também ficou marcado pela tese da “legítima defesa da honra”, que inocentou Doca no tribunal. Essa tese só foi proibida pelo Supremo Tribunal Federal em 2023. Sente que avançamos?

Avançamos, mas ainda há muito a fazer. Existe uma dissintonia: as mulheres conquistam mais liberdade individual, representação, liderança, mas o Brasil ainda é o quinto país do mundo no ranking de feminicídios. As leis de proteção à mulher mostram justamente que a mentalidade não mudou. Se tivesse mudado, não precisaríamos de mais leis para nos proteger. Basta surgir uma denúncia de assédio ou estupro para ver a enxurrada de ataques à vítima.

O que você aprendeu sobre si mesma com a personagem?

Essa personagem me atravessou profundamente. O estudo foi um processo de letramento. Passei a reconhecer com mais clareza como o machismo se manifesta ao meu redor e em mim mesma. Foi quase psicanalítico – sobre minha formação, minha relação com o masculino, com a sexualidade, com o desconforto da exposição. Acho que a principal herança dela foi a conexão com o prazer, no sentido mais amplo: o prazer de estar viva, de se relacionar, de existir. A Ângela tinha essa filosofia de viver a vida pelo prazer, não pela realização. Isso me transformou muito. Com o avanço do conservadorismo, é ainda mais urgente falar sobre isso.

“Hoje sinto mais prazer no trabalho e entendo melhor meu propósito”

Você completou duas décadas de carreira. Como é olhar para trás aos 43 anos?

É um privilégio. Reconheço as oportunidades que tive, mas também o quanto investi em mim mesma, nos estudos, na profissional que quis ser. Hoje sinto mais prazer no trabalho e entendo melhor meu propósito. No início, atuava porque amava contar histórias. Com o tempo, fui entendendo para que e para quem eu fazia isso.

No cinema, você tem dois projetos saindo do forno. Como foi atuar no terror Enterre seus mortos, adaptado e dirigido por Marco Dutra, seu parceiro em As boas maneiras (2017)?

Não sou uma fanática do terror, mas o gênero me permite vivenciar o fantástico e isso me fascina. O filme feito pelo Marco Dutra é profundo. Ele usa o gênero para questionar a sociedade, e isso me atrai bastante. Trabalhar com ele é um privilégio. O fantástico me permite me desorganizar, me virar do avesso e isso oxigena meu pensamento e minha forma de construir personagens.

E o drama ainda inédito Precisamos falar, em que você interpreta uma mulher de direita, meritocrata, defensora das hierarquias sociais, dirigido por Pedro Waddington e Rebeca Diniz?

Eu tinha necessidade de entender como esse pensamento da extrema direita se forma, encontrar o lado humano e vulnerável dessas pessoas. É difícil conversar com quem nega desigualdades, a história e a própria ciência. Mas viver essa personagem me obrigou a tentar compreendê-las. Esse é o propósito do filme, exercitar o diálogo, porque eu também tenho impulsos de rechaçar quem pensa diferente de mim, só que na direção oposta. Então, é um exercício importante para viver em sociedade e não sucumbir à barbárie.

Como você consegue conciliar tantos projetos?

A diversidade me atrai. Tenho curiosidade sobre diferentes realidades, gêneros e formas de expressão. Tento equilibrar os projetos com base em alguns critérios: com quem é, sobre o que, em que momento da vida estou. Quando percebo que algo está pesando, busco compensar com o próximo trabalho ou com momentos de descanso, viagem, estudo. Não dá para planejar a longo prazo nesse mercado, então cada escolha é uma renúncia.

“Não sou uma fanática do terror, mas o gênero me permite vivenciar o fantástico e isso me fascina”

Na música, você despontou como cantora na 11ª temporada de Malhação, da Rede Globo, e depois lançou três discos solo, sendo o último de 2014. Mas este ano, você subiu no palco para cantar com Gilberto Gil em sua turnê de despedida. Como foi isso?

Foi uma das coisas mais lindas da minha vida. Sou muito fã do Gil, sempre fui. Já tinha tido a oportunidade de cantar com ele uns 15 anos atrás, num projeto chamado Cidade do Samba, da gravadora Universal, pela qual eu era contratada na época. Estava tão enrijecida pela responsabilidade que acabei não conseguindo aproveitar aquele momento com leveza e prazer. Mas quando surgiu essa nova chance, prometi a mim mesma que seria diferente. E foi muito especial. Essa turnê é a última dele, e o show celebra toda a sua trajetória, com a família no palco.

Além disso, aconteceu em Curitiba, minha cidade natal. O Gil convida artistas de cada região por onde passa, e foi por ser curitibana que pude subir naquele palco. Sou muito grata à minha cidade por isso – foi onde eu sonhei ser atriz, ser cantora, cantando no banheiro da minha casa. E, de repente, estava ali, num estádio, diante de milhares de pessoas. Fiz até uma surpresa para a minha família. Dei os convites, disse apenas que era o show do Gil, mas não contei que eu participaria. Minha mãe, que é baiana e ama o Gil, ficou eufórica. Quando entrei no palco, foi uma emoção indescritível. Um dos momentos mais especiais da minha vida.

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