Filme sobre Ney Matogrosso faz retrato solar do cantor

Protagonizado por Jesuita Barbosa, "Homem com H" mostra a luta permanente do cantor contra a autoridade e o autoritarismo; longa conta com colaboração de Ney.


Jesuita Barbosa no filme sobre Ney Matogrosso
Jesuita Barbosa como Ney Matogrosso Fotos: Divulgação



“Tem coisas ali que não sei se disse, mas poderia ter dito”, reagiu Ney Matogrosso ao ler pela primeira vez o roteiro que o diretor Esmir Filho escreveu para aquele que viria a ser o filme Homem com H, com estreia marcada para esta quinta-feira (01.05).

Protagonizada pelo ator Jesuita Barbosa, a cinebiografia conquistou desde aí o cantor, que imediatamente se dispôs a estar próximo do projeto. “É óbvio que quero, vem comigo”, respondeu Esmir, diretor de Os famosos e os duendes da morte (2009) e Verlust (2020). Na pré-estreia do filme sobre Ney Matogrosso, na última quinta-feira (24.04), o cantor de 83 anos terminou a sessão ovacionado pela plateia, ruborizado e bastante emocionado.

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Homem com H começa do mesmo modo que o primeiro álbum solo de Ney, Água do céu – Pássaro (1975): com uma sinfonia de sons da natureza (passarinhos, água corrente, grilos, trovões), enquanto o pequeno Ney de Souza Pereira penetra a mata de sua terra natal, Bela Vista, na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Expondo o grau de envolvimento do artista com o filme, Esmir conta a reação de Ney à cena na versão inicial do roteiro. “Eu havia escrito: ‘Ney avança sobre a mata e corre’. Ele me disse: ‘Esmir, eu nunca corri. Sempre andava muito devagar, olhando tudo’”. Situações como essa foram sendo ajustadas durante as filmagens, inclusive com a presença de Ney em algumas sessões.

Uma relação difícil

O prólogo de Homem com H mostra a relação tensa entre o menino e seu pai militar, que chega às raias da violência física para obrigar o filho a se comportar “como homem”. O título do filme remete a esse conflito, mas cita também o forró de mesmo nome que o andrógino Ney cravou nas paradas de sucessos em 1981: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come/ porque eu sou é home, porque eu sou é home/ menina, eu sou é home, menina, eu sou é home, e como sou”.

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Foto: Divulgação

A complexidade da relação do cantor com o pai deu ao diretor a senha para tentar desvendar a personalidade de seu personagem, fundada no enfrentamento direto com toda e qualquer figura de autoridade, fosse o pai, a ditadura militar, empresários musicais, as câmeras de TV ou a moralidade social dominante. “Ele diz que a maior autoridade que já enfrentou na vida foi o sargento Mato Grosso”, evoca o diretor, lembrando que Ney extraiu seu sobrenome artístico do nome real do pai. Numa das cenas-símbolo de Homem com H, o Ney adolescente vivido por Jesuita ouve o pai chamá-lo de “viado” e retruca: “Não sou viado, mas quando eu for o Brasil inteiro vai saber”. Dito e feito.

Em primeiro plano está a transformação vivida pelo próprio “herói” da história em meio aos obstáculos, o confronto com a autoridade e o autoritarismo e sua luta por liberdade.

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Os Secos & Molhados no filme sobre Ney Matogrosso

O Ney que conhecemos até hoje foi revelado ao Brasil em 1973 como figura de frente do grupo Secos & Molhados, com a cara pintada, seminu, olhos arregalados e rebolado sensual. A relação entre os ex-integrantes, principalmente entre Ney e o compositor português João Ricardo, nunca mais se restauraria, com consequências que chegam até aos dias atuais. Em 2022, a Globoplay e a produtora O2 anunciaram a realização de uma série ficcional sobre o grupo, mas o projeto acabou cancelado porque João Ricardo não autorizou a utilização das músicas dos Secos & Molhados, marca que lhe pertence até hoje. 

Rusgas à parte, João autorizou desta vez o uso dos hits “O Vira” e “Sangue latino”, entre dezenas de músicas da fase solo de Ney. O músico português é retratado no filme sem muitos detalhes, mas de modo ainda provocativo. “Optei por retratar o grupo pontualmente, do ponto de vista do Ney. Neste filme estou de mãos dadas com ele”, explica o diretor.

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Foto: Divulgação

Cazuza, o HIV e o sol 

Episódios mais dramáticos são os dos anos 1980 e 1990, a partir da eclosão da pandemia da Aids. Ney perdeu amigos e namorados para o HIV – o mais conhecido deles foi Cazuza (1958-1990), com quem o ex-seco & molhado namorou, antes da fama do roqueiro à frente do Barão Vermelho. Homem com H procura responder com sutileza à cinebiografia Cazuza – O tempo não para (2004), de Sandra Werneck e Walter Carvalho, que não abordou a relação amorosa entre o compositor e o intérprete de “Pro dia nascer feliz”. “Tem uma retratação audiovisual aqui também”, graceja Esmir.

Numa das cenas-símbolo de Homem com H, o Ney adolescente vivido por Jesuita ouve o pai chamá-lo de “viado” e retruca: “Não sou viado, mas quando eu for o Brasil inteiro vai saber”.

“Ney viveu muitas mortes, teve semanas que ele foi três vezes ao cemitério”, diz o diretor em relação à pandemia da Aids. Ainda assim, ele evitou dar tons soturnos ao filme. Ao contrário, Homem com H é solar, com cenas de praia inspiradas no trabalho homoerótico do fotógrafo Alair Gomes (1921-1992), inclusive no período em que o HIV minava vidas como as de Cazuza e do médico Marco de Maria, com quem Ney viveu por 13 anos, até sua morte. 

O filme explora as passagens mais dolorosas com delicadeza, evidenciando, por exemplo, que havia (e há) vida sexual mesmo na presença do vírus. “Em todos os filmes que vi que retratam o HIV, é sempre alguém abrindo o exame, o resultado dá positivo e acaba o mundo daquela pessoa”, observa Esmir. “E Ney, não. Ele abre o exame e dá negativo.” A inspiração para o retrato ensolarado vem da atitude altiva do próprio cantor, que sempre foi avesso a qualquer cerceamento de liberdade e lutou contra a culpa ligada à sexualidade ou ao vírus.

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Ney Matogrosso e Esmir Filho nas filmagens de Homem com H Foto: Divulgação


O sexo, a indústria cinematográfica, o amor

Homem com H almeja conquistar plateias amplas e diversas, e o diretor diz torcer por um eventual sucesso de bilheteria como um símbolo de vitória para a história do “cinema queer brasileiro”. Para ele, seria melhor não filmar se fosse o caso de produzir uma obra asséptica sobre um personagem sensual, sexual e transgressor como Ney. O tom do filme teve de ser negociado com a Paris Filmes, distribuidora do longa, e o resulto final é rico em cenas de nudez, corpos em liberdade e sexo predominantemente gay. “Tivemos várias conversas (Esmir e a distribuidora), e eu ia falando que nada seria gratuito, que tudo teria um propósito. Bati o pé em muitas cenas: ‘Está bonito, está legal’. E escutava também o que tinham a dizer, porque quero conversar com todo mundo, quero que essa história entre mesmo na casa das pessoas.”

O filme assimila a filosofia do cantor, de que o HIV veio não para matar, mas para evidenciar uma comunidade até então apenas marginalizada. Como Ney costuma dizer, a crise do HIV trouxe à tona não só a humanidade, mas a própria existência da comunidade LGBTQIAP+.

O diretor cita as palavras de Ney: “Tinha a mente no controle, o sexo liberado, mas o coração trancado. Veio Cazuza e destrancou meu coração para entrar”. A devastação causada pelo HIV viria consolidar a transformação.

O cantor assistiu ao vivo à filmagem de algumas das cenas cruciais da relação Ney-Marco, e chorou convulsivamente ao final da tomada do choro de Jesuita. “Ney chorava e falava: eu não sou assim!, não sou assim!”, conta Esmir, relatando a dificuldade do cantor em reconhecer sua emoção. Atento, Jesuita incorporou aquela reação imediatamente, na cena em que Jesuney (como o diretor apelidou seu protagonista) chora: “Eu não sou assim, eu não sou assim!”. 

Na pré-estreia de Homem com H, Ney tentava segurar o próprio choro, mas o rosto vermelho denunciava o esforço que fazia para conter a emoção. Dos ídolos musicais brasileiros da geração nascida nos anos 1940, Ney é, por enquanto, o único que não só topou, como desejou e concretizou o desafio de se ver retratado num filme de ficção. Chorando ou não, a expressão de contentamento do senhor de 83 anos deixou transparente o orgulho pela própria história.

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