Ney Matogrosso: “Não ter uma cara me deu a coragem que não sabia que existia em mim”
Aos 84 anos, o cantor é tema de mostra em São Paulo que revê sua carreira de cinco décadas e de uma cinebiografia com lançamento em maio.

Neste 2025, Ney Matogrosso completa 50 anos de carreira e é tema tanto de uma exposição que abre ao público nesta sexta-feira (21.02), no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, quanto de uma cinebiografia, com previsão de estreia no início de maio. A mostra percorre sua carreira desde a estreia no Secos & Molhados até seu mais novo álbum, Nu com a minha música (2021), e reúne fotos, figurinos e documentos. Já o filme, Homem com H, com direção de Esmir Filho e Jesuíta Barbosa no papel do cantor, percorre toda a sua biografia, passando por capítulos como relacionamento com Cazuza. Confira a seguir a entrevista com Ney na ELLE Men, publicada em agosto de 2024.
Na apresentação em que se sentiu especialmente nu, Ney Matogrosso vestia um terno. Era 1987, lançamento do disco Pescador de pérolas, no Golden Hall, do hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. Na data, tinha mais de dez anos de carreira. Ainda assim, se sentiu exposto. “Estava desprotegido. Me tremia todo”, fala.
Até então, estava habituado a cantar com pouca roupa, muita presença corporal e maquiagem pesada. Antes do primeiro show com o Secos & Molhados, em 1972, cobriu o rosto com purpurina. “Não ter uma cara me deu a coragem que eu não sabia que existia em mim”, diz, ao telefone, em seu apartamento, no bairro carioca do Leblon. “Isso é fácil de explicar: com máscara, a pessoa se libera, se solta.”
No fim da década de 1980, ele já tinha soltura de sobra. No entanto, aquela era a primeira vez que encarava uma audiência tão de perto e com outro personagem – ou melhor, com o mesmo personagem, mas em figurino diferente. “Foi um exercício. Me senti um ET de terno branco, mas me acostumei.”
Ney não almejava ser cantor. Queria ser ator. A música veio como estepe. “Sabia que podia cantar e que isso poderia ser útil. Acabou ao contrário: virei cantor e minha teatralidade é útil ao meu trabalho.” Apesar de toda a revolução sonora e musical, a linha de frente, o batalhão de choque do Secos & Molhados foi o visual. E nessa seara o artista era uma figura central. Seus movimentos improvisados, corpo esguio, malemolência, altíssima carga sexual e voz aguda o colocaram na dianteira daquele manifesto libertário em plena ditadura.
A vanguarda escapava à compreensão. Era desbunde demais. O regime militar sofria para enquadrar tudo aquilo (o que não significa imunidade do trio à repressão e violência). A resistência política era via costumes. O público, em especial o conservador, também demorou a assimilar (se é que assimilou) a relevância do grupo. A exceção eram as crianças. Com olhar natural e livres de moldes e opressões sociais, elas ficavam fascinadas com as danças, os figurinos e as maquiagens primitivistas.
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“Tinha confronto o tempo inteiro”, recorda Ney sobre os primeiros shows do Secos & Molhados. “Tive que enfrentar a plateia várias vezes, mandar tomar no cu.” Ainda assim, num Maracanãzinho superlotado, em 1974, não se calou diante da truculência e violência policiais contra os convidados. Com o rosto pintado, porém, vivia em relativo anonimato. “Isso me poupou de muitas coisas. No dia seguinte, estava na praia, deitado na sombra ou tomando sol.”
“Não ter uma cara me deu a coragem que eu não sabia que existia em mim.”
Na véspera desta entrevista, ele se encontrava em Petrópolis, Rio de Janeiro, em uma das apresentações de O bloco na rua, show com nome em homenagem à música de Sérgio Sampaio. “Antes me xingavam. Agora é festa. Me chamam de gostoso, dizem que me amam. Não estou acostumado a ouvir isso. É muito bom.” No dia 10 de agosto, Ney realiza o maior espetáculo da atual turnê, no Allianz
Parque, em São Paulo. “Será uma produção bem maior. Estamos ampliando tudo, revendo as imagens projetadas. Lá serão três telas imensas.” Há também três novos figurinos, “mas não tenho certeza se algum ficará pronto a tempo. Aí, uso os que tenho”.
Desde que deixou o Secos & Molhados, as maquiagens do artista mudaram consideravelmente. Seu rosto nu se tornou recorrente nos palcos e de frente para as câmeras. O anonimato do começo da carreira aos poucos perdia força, embora sua privacidade seguisse preservada em alguma medida. Hoje, são três as biografias publicadas sobre o cantor, incontáveis reportagens e entrevistas e um longa-metragem, Homem com H, dirigido e roteirizado por Esmir Filho, previsto para estrear em 2025.
“Quando saiu o primeiro livro, me debati muito”, confessa. “Achava que não era necessário, que era muito cedo. Tinha 50 anos, e já tinham lançado uma biografia minha? Aceitei só para não dizerem que era um idiota.” Agora, Ney encara com mais naturalidade, mas reconhece o grau elevado de exposição. “Se vêm conversar comigo, eu não minto. Foi o que falei para o Esmir: ‘Pode tudo nesse filme. Só não pode ter mentiras a meu respeito nem a respeito dos outros’.”
Homem com H propõe um recorte afetivo na história de Ney Matogrosso. “Sua biografia é uma jornada do herói, pautada por repressão e liberdade”, comenta Esmir. “É um corpo que enfrentou diversas situações de autoridade para poder ser, ousar ser.” Durante a pesquisa, o diretor e roteirista foi marcado pelos relatos do artista com o pai. “Ele diz que a maior autoridade que enfrentou na vida foi a paterna. Que tudo o que fez e todas as escolhas foram para contrariar a vontade do pai.”
Ney de Souza Pereira, 84 anos, nasceu em Bela Vista, no interior do Mato Grosso do Sul (na época Mato Grosso). Filho de militar, mudou de cidade com a família algumas vezes durante a infância. “Isso me fez uma criança muito introvertida. Quando começava a fazer amizades, tinha que ir embora porque meu pai era transferido.” A última parada foi no seu estado natal, e ele decidiu não fazer novas amizades. Iria partir a qualquer momento. Só não imaginava que seria por conta própria.
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Sempre soube que era diferente. Era mais magro do que os outros, mais delicado. Sua voz também destoava. Era fina. Parecia com defeito, pensava. Como podia um menino falar como uma menina?
O timbre era motivo de chacota, discriminação e vergonha. Para o próprio e para o sargento Antonio Matogrosso Pereira, seu pai.
“Um dia, ele me bateu tanto que os vizinhos começaram a reclamar. Ele queria que eu chorasse e eu dizia que não.” E não chorou. As agressões só pararam quando ameaçaram chamar a polícia. “Agora, quando minha mãe jogava um espanador em mim, eu desabava, aos prantos.” Tempos depois, pai e filho se reencontraram. “Ainda bem. Seria horrível morrer com ele como inimigo”, desabafa. Com três irmãos e duas irmãs, Ney era o único homem da família beijado por Antonio.
O entendimento sobre o afeto entre dois homens também se deu com um beijo. Aos 17 anos, ele se alistou na aeronáutica e, antes da confirmação, pediu transferência para o Rio de Janeiro. A partida foi turbulenta. No fim dos anos 1950, filho só saía de casa depois dos 21, casado e empregado. Ele não era nada disso. Só queria liberdade e independência. Durante o serviço militar, em uma noite quente, saiu para a varanda do dormitório e viu dois rapazes se beijando. Em entrevistas, Ney relata ter se assustado com o sentimento presente no ato, e não com o sexo.
Posteriormente, desistiu da carreira nas Forças Armadas e foi morar em Brasília com um primo. Trabalhava no laboratório de anatomia patológica do Hospital de Base do Distrito Federal. “Mexia com as lâminas para as biópsias. Mas chegou uma hora que enjoei. Não era fácil. Do lado da minha sala, ficava a da necropsia” O diretor do hospital era seu amigo, então pediu para ser transferido: “Me bota para trabalhar com crianças ou com loucos. Ele disse: ‘Com loucos, não tem nada. Com crianças, tem uma sala vazia, mas elas já têm professora. Você quer fazer a recreação?’” Respondeu sim. “Cuidava delas com o maior amor. Era o brinquedinho delas. Eu era hippie, então usava um monte de colar no pescoço. Elas amavam. Ficava colocando colar de uma em uma.”
Na capital, fez as pazes com a voz. Tinha 19 anos quando entrou para um coral e ouviu de um professor sobre suas qualidades vocais. Decidido a seguir a carreira artística, voltou para o Rio de
Janeiro em meados dos anos 1960. Por lá, fazia artesanato, estudava música e teve algumas experiências como ator.
Na virada para a década seguinte, a amiga e compositora Lulhi ficou sabendo que uma dupla de São Paulo estava atrás de alguém capaz de cantar em tons agudos, mas que não fosse uma mulher,
e promoveu um encontro em sua casa, no bairro de Santa Teresa.
“Me chamam de gostoso, dizem que me amam. Não estou acostumado a ouvir isso. É muito bom”
Em 1971, Ney Matogrosso, Gerson Conrad e João Ricardo oficializavam o nascimento da banda Secos & Molhados. O sucesso foi estrondoso e hoje o grupo é tido como uma das maiores representações da contracultura nos anos 1970. Mas logo os desentendimentos entre os integrantes se tornaram impraticáveis. Em 1974, Ney saiu em carreira solo.
O show de lançamento de Pescador de pérolas, em 1987, teve performance contida e ambiente intimista. Eram respostas à crítica que via nele mais corpo, dança e sexo do que voz. Leonino do dia 1º de agosto, Ney não gosta que digam o que ele pode ou não pode. E faz questão de provar o contrário. Não à toa, a música “Metamorfose ambulante” foi escrita por Raul Seixas, mas tem uma de suas melhores interpretações no corpo e na voz do matogrossense.
Sua vida e trabalho foram – são – pautados pela máxima e completa liberdade de expressão. Comercialmente, inclusive. “Passei por seis gravadoras. Pedi para sair de todas. Ninguém me mandou embora. Dizia que não queria mais, virava as costas e ia atrás de outra. Eu sou rebelde. Você sabe, né?” E ainda vale ser rebelde em 2024? “Hoje ninguém precisa ser rebelde para fazer qualquer coisa. Está tudo expandido, liberado. Ao mesmo tempo, tem toda uma caretice controlando tudo, deixando tudo igual.” Não deixa de ser uma forma de autoridade. Ney nunca aceitou ser moldado, estereotipado, tipificado ou caracterizado de forma direta e objetiva. De terno branco ou completamente nu.
“A gente não pode ser o que as pessoas querem. Temos que ser o que queremos ser. O que somos”, argumenta. Em uma entrevista ao programa Conversa com Bial, em 2017, ele conta que Cazuza
costumava perguntar: “Por que a gente é assim?” Ele nunca respondia. Não diretamente. Dizia apenas: “Porque a gente é”.
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DIREÇÃO CRIATIVA: LUCIANO SCHMITZ | EDIÇÃO DE MODA: LUCAS BOCCALÃO I BELEZA: CIDOCA NOGUEIRA | DIREÇÃO DE ARTE: ANDERSON RODRIGUEZ | COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO DE MODA: DIEGO TOFOLO PRODUÇÃO DE MODA: THIAGO TORRES, LAITÂNIA GOMES E VINICIUS RODALM | PRODUÇÃO DE ARTE: CORINNE WERNER
PRODUÇÃO EXECUTIVA: IZABELA RIBEIRO | TRATAMENTO DE IMAGEM: TELHA RETOUCH
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