Fernanda Abreu: “Gosto de dizer que vou fazer 60 anos”

Cantora lança DVD que teve que gravar sem plateia, surpreendida pelo isolamento em março, e fala das três décadas de sua carreira-solo.


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No início de março, uma fila de fãs já se formava do lado de fora do teatro Imperator (Rio de Janeiro) para o show de gravação do DVD Amor geral, de Fernanda Abreu, quando o isolamento social foi decretado na cidade, o que impossibilitava a apresentação com plateia. Mesmo sem público, Fernanda decidiu seguir adiante com o show e a gravação. “Graças a Deus, não cancelei a apresentação, apesar do público ter ido embora e daquela situação estressante no camarim”, conta a cantora. “Reuni minha equipe e acho que graças aos meus 38 anos de carreira tive o pulso para injetar energia nas pessoas e dizer ‘vai ser o melhor show que a gente vai fazer’.”

Fernanda passou então os nove meses seguintes trabalhando na masterização e edição do CD e DVD, Amor Geral (A) Live, que ela lança neste mês. “Fiquei em quarentena completamente isolada, montei um estúdio em casa com meu marido (o músico Tuto Ferraz), que a gente chama carinhosamente de cativeiro, e fizemos umas lives”, conta. “Foi um ano difícil, perdi meu pai em março.”

2020 também marcou 30 anos do lançamento do primeiro disco-solo de Fernanda, Sla radical dance disco club, referência para as pistas nacionais e que ganhará reedição em vinil no início do próximo ano (com pré-venda já esgotada). A cantora preparava alguns projetos em torno da efeméride e chegou a ensaiar um show comemorativo quando veio a pandemia. “Gosto de dizer que vou fazer 60 anos no ano que vem, que tenho uma carreira (solo) de 30 anos e de 38 anos com a Blitz”, diz. “Não preciso ficar falando: ‘Eu tenho saudade mesmo de quando eu tinha 30 anos'”. A seguir, nosso papo com Fernanda.

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“Sempre defendi o funk em todos os momentos em que ele foi criminalizado e marginalizado”, diz Fernanda Abreu.Foto: Divulgação/Alexandre Calladinni

Como você acha que a sua carreira-solo se transformou nesses 30 anos em que você fez música para as pistas e teve um diálogo muito forte com o funk carioca?

É engraçado, eu estava produzindo meu primeiro álbum em 1989, quando foi lançado o primeiro disco de funk do Brasil, pelo (DJ) Marlboro. Então, minha caminhada nessa trilha do pop dançante se confunde muito com a história do funk carioca porque a gente começou junto e, de uma certa maneira, os nossos caminhos se cruzaram em vários discos, em vários momentos. No dia seguinte em que fui ao baile, o Marlboro estava comigo no estúdio para gravar no Sla Radical. Falei: “Gente, isso é um som supernovo”. A gente não escutava isso no Rio. Sempre defendi o funk em todos os momentos que ele foi criminalizado e marginalizado. Achava um movimento cultural e musical super importante, mexia com as nossas gírias, com o nosso comportamento, com o jeito de entender o Rio de Janeiro. Então, a minha carreira teve esse lado muito ligado ao Rio, do desejo da possibilidade de conversa entre morro e asfalto, que eu acho super rico na cidade.

E, não à toa, você tem dois dançarinos do passinho nesse DVD.

Exatamente. Como eu sempre estive muito próxima do funk, vi surgir esse movimento. Fui uma das primeiras pessoas que circulou nas favelas como jurada dos dançarinos do passinho, há uns dez anos. Chamei o Dream Team do Passinho para o Rock in Rio, que foram meninos que conheci lá atrás. Então, quis muito colocar eles (Hiltinho, que integrou o Dream Team, e Neguebites, do Heavy Baile) nesse DVD, em que botei mesmo a dança no centro, não só a música.

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“Sou uma pessoa vaidosa, mas até a página dois, não sou louca, não”Foto: Divulgação/Alexandre Calladinni

O Sla radical dance disco club completou 30 anos. Como você escuta esse disco hoje?

A gente vinha dos anos 80, em que a cena era dominada pelo pop rock, por muitas bandas de rock – Blitz, Paralamas, Legião… Quando lancei esse disco em 1990, lembro que o diretor artístico da gravadora falou: “Olha, você vem de uma banda de super sucesso que é a Blitz, fez o intervalo de quatro anos para compor o seu material. Mas não posso prometer nada, eu não sei que som é esse que você está me mostrando na fita demo. A gente não tem esse mercado no Brasil, a gente não faz música assim, com programação e bateria eletrônica, com sampler, com tecnologia”. Falei: “Também não sei, mas esse é o som que eu estou a fim de fazer”. E acho que foi um disco que marcou porque, de certa maneira, eu inaugurei um cenário de pop dançante e acho que por isso que até hoje as pessoas continuam comprando (o álbum) e a Noize Records quis reeditar agora — (o vinil) vai sair no comecinho do ano (2021). Mas voltando à pergunta sobre como é ouvir um trabalho que fiz há muitos anos, tive essa oportunidade porque também lancei este ano uma coletânea, Slow dance, em que botei uma gravação inédita e escolhi 16 baladas do meu repertório. Tive que ouvir esses discos de novo e tive uma surpresa agradável, fiquei orgulhosa das músicas, da produção, dos arranjos, muitas delas ainda têm frescor, podem perfeitamente tocar hoje em dia, não ficaram datadas.

O que você escuta e curte hoje na música?

Nesta quarentena, passei por várias fases, desde buscar os clássicos que eu sempre ouvia, como James Brown, o soul do funk americano, Marvin Gaye, Stevie Wonder, Miles Davis e até as coisas mais novas, como Bruno Mars, Rihanna, Drake, um pouco de trap. Estou escutando também um pouco de música eletrônica, os DJs que são meus amigos estão sempre me mostrando alguma novidade. Acompanho a música pop brasileira. Tem toda uma cena de São Paulo que eu acho super bacana, Liniker, Céu, Tulipa. Adoro hip hop, Emicida, Criolo, Racionais. Escuto Anitta, Ludmilla, estou sempre de olho no Spotify para ouvir os singles novos, o que está rolando. Gosto muito de samba, especialmente o tradicional, de raiz, de Martinho, Candeia, Cartola, Nelson Cavaquinho. O samba sempre esteve na minha vida desde muito pequena, os meus pais tinham um grupo, gravei alguns sambas-enredo. Tenho vontade de fazer um disco de samba.

A gente fala muito sobre as perdas do envelhecimento, mas quais foram os teus ganhos, o que o passar dos anos te trouxe?

Sou uma pessoa vaidosa, mas até a página dois, não sou louca, não. Sempre aprendi que faz parte da vida envelhecer. Vejo que o meu tônus muscular é diferente na aula de balé, as coisas que eu fazia e o que consigo fazer hoje. Mas a minha cabeça está muito boa, que é uma coisa que a gente se preocupa muito quando a gente vai ficando mais velho, a memória, o fantasma do Alzheimer, da demência. O que eu tento todos os dias para envelhecer com mais saúde é acordar com um projeto bacana para fazer na música e na dança, essa energia de produção, de realização, de vontade. E a parte física, de se alimentar bem, mas sem maluquice. Faço exercício, coloco meu filtro solar de manhã, um creme à noite, mas se saio em turnê e não consigo fazer isso todo dia, não fico me massacrando. Eu tento encarar da forma mais natural. Neste momento, eu ainda tenho medo de uma sala de cirurgia, anestesia geral, mas no dia em que a plástica bater mais forte do que o meu medo… Por enquanto, eu estou aqui segurando a onda e produzindo, que eu acho que é o mais importante. Gosto de dizer que vou fazer 60 anos no ano que vem e que tenho uma carreira (solo) de 30 anos e de 38 com a Blitz. Que eu conquistei a minha gravadora, o meu selo, a minha editora, o meu estúdio, a minha produtora, o meu escritório, minhas filhas que são maravilhosas (Sofia, 28, e Alice, 21 anos), meu marido que me ama, e que eu amo e uma casa linda. Acho que tenho que todo dia agradecer e achar bom ter chegado com 60 anos com tanta coisa legal na vida. Não preciso ficar dizendo: “Eu tenho saudade mesmo de quando eu tinha 30”.

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