“Sou feminista de nascença”, diz Helena Ignez
Cineasta, que exibe novo filme no Festival de Curtas de São Paulo, relembra as dificuldades de ser mulher nos anos 50 e 60.
Helena Ignez estava, como quase todo o mundo, passando uma boa parte da pandemia na cozinha. Então, quando o cineasta Kleber Mendonça Filho (Bacurau, Aquarius), coordenador de cinema do Instituto Moreira Salles, telefonou convidando-a para fazer um curta-metragem de cinco minutos, ela pensou logo: Fogo baixo, alto astral. O filme, que retrata seu 34º dia de isolamento, participa do 33º Festival Internacional de Curtas de São Paulo – Curta Kinoforum, que segue até dia 28.08, de forma presencial e gratuita em São Paulo e com parte da programação disponível online. “Fogo baixo, alto astral foi um presente. Foi uma festa”, disse ela à ELLE.
Ela cursou Direito, mas logo abandonou a futura profissão pelos palcos e pelas telas. Foi casada por alguns anos com o cineasta Glauber Rocha (1939-1981), com quem teve uma filha, Paloma. Foi chamada de “musa do Cinema Novo”, um rótulo que não lhe agrada, mas também não ofende. Como atriz, fez filmes importantes do cinema nacional, como O assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Farias, O padre e a moça (1966), de Joaquim Pedro de Andrade, e O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla (1946-2004), que se tornaria seu segundo marido e pai de suas outras duas filhas, Sinai e Djin. As três são sócias em uma produtora de cinema. Helena, 83 anos, estreou como cineasta com mais de 60 anos, tendo realizado desde então Canção de Baal (2008) e Luz nas trevas – A volta do Bandido da Luz Vermelha (2010). A seguir, ela fala de machismo e cinema:
Como é essa vida de uma família de cinema?
É uma família muito linda. Todos querendo fazer um bom cinema. E têm uma égide que é Rogério Sganzerla, um cineasta de uma riqueza extraordinária, que criou movimentos culturais, como a produtora Belair, que eu também fundei. De alguma maneira, sou uma ativista feminista de nascença. Porque passei por um período terrível. Os anos 50 e 60, para as mulheres, eram terríveis. Nós não tínhamos nenhum direito. Nem de viajar sem autorização do marido. Era uma coisa absolutamente ridícula. E a gente conseguiu sair disso. Então, eu faço parte dessa luta, e meu próximo filme, Alegria é a prova dos nove, que terminei de rodar, é extremamente feminista.
Você começou como modelo antes de ser atriz?
Comecei como atriz. Mas em Salvador (onde ela nasceu), eu era considerada uma bonequinha de luxo. Era glamour girl. Mas nunca ganhei um tostão com isso. Não era minha profissão. Eu ganhava como atriz, porque desde muito cedo fui contratada. Engraçado que a revista ELLE tem uma coisa afetiva comigo interessante. A ELLE francesa era a coisa mais chique que você podia imaginar. E diziam que eu era uma garota ELLE porque eu me vestia muito bem. Que coincidência gostosa. Como a vida dá voltas.
Você era uma it girl, então?
Isso! Eu era uma garota de estilo. E namorava o Glauber. Então imagine o escândalo que isso era em Salvador. Vestir-me daquele jeito, afrancesada, chiquésima, com aquelas saias de Audrey Hepburn, era um acinte (risos).
Chamava a atenção.
Sim. Mas não me arrependo de nada.
“Os anos 50 e 60, para as mulheres, eram terríveis. Nós não tínhamos nenhum direito”
Sofreu muito sendo artista naquela época?
A profissão não era aceita. Mas nesse momento na Bahia houve uma revolução cultural muito grande, que formou toda essa geração: João Gilberto, Caetano, Gil, Glauber. Todos nós. Dentro daquele movimento, a gente tinha força. Na verdade, a gente estava começando uma modernidade que ainda não existia. Mas as mulheres, claro, vão ser perseguidas por isso, até conseguirem sair dessa. Não existia divórcio (a lei do divórcio só foi sancionada em 1977). Eu era uma menina de 24 anos quando me separei do Glauber, depois de cinco de casamento. Você não pode imaginar o horror que era. As pessoas se sentiam donas (de você). Era cantada por tudo quanto era lado. Um horror.
Você circulava em meios progressistas, de artistas, esquerdistas, em que imaginamos que questões como machismo, racismo, homofobia não seriam tão acentuadas. Tinha isso nesse meio?
Era um machismo amoroso, entre aspas, era protetor, por exemplo, no Cinema Novo, que surgiu na elite cultural jovem. Eles eram muito protetores, cuidadosos, mas mulher não abria a boca. E tinha muita mulher inteligente ali. Ao mesmo tempo, elogiavam muito: “Meu amor, vou fazer um filme para você”. Aí entrava a história da musa. Me deram esse nome de musa do Cinema Novo. Musa era terrível. Porque musa não fazia nada. Era uma coisa deles. Eles gostariam que eu fosse assim, assado. Não era um machismo agressivo. Mas existia. Todo o mundo é machista. Os próprios homens maravilhosos com quem me casei, a formação deles era machista. A gente está mudando é agora.
No trabalho, era difícil?
Tinha pessoas elegantíssimas, como o Joaquim Pedro de Andrade, com quem fiz O padre e a moça. Mas ele era também machista. Não tinha jeito. Sofri muitíssimo fazendo o filme, que é muito lindo, mas eu era a única mulher no grupo de homens. Eu saí muito doente. Queria largar tudo. Claro que tinha machismo e queriam, evidentemente, comer a atriz, que era uma menina.
As coisas mudaram?
Estão mudando. Hoje eu li uma coisa linda do Caio Blat sobre o hétero tóxico. Ele fala que adora usar saia, pintar as unhas. Então está mudando. Caetano também disse uma coisa linda tempos atrás. Falaram (para ele) que as mulheres eram loucas por ele. E Caetano respondeu: “É porque sou delicado. Sou, como se diz na Bahia, uma moça”. Os pais não beijavam os filhos. Eu mesma fui criada sem beijo. Meu pai e minha mãe eram uns amores, mas não me beijavam.
Tentou fazer diferente com suas filhas?
Eu dei a elas amor. Amor, amor, amor.
Em algum momento começou a lutar contra o rótulo de musa?
Achei que não tinha a ver, mas não chegou a me incomodar.
Mesmo tendo uma carreira própria tão maravilhosa, sentiu-se à sombra de seus maridos?
Sim. Extremamente à sombra. Era inatingível o lugar onde eles estavam. Essa é a pior luta: afirmar que uma pessoa criativa é uma pessoa, e não a sombra de ninguém. Eu não quero ser a sombra. A pior coisa são os filmes que tentam imitar Rogério. Eu jamais me meti nessa.
Tornar-se cineasta foi o encontro de uma nova identidade?
Interessante… Acho que foi a continuação de uma identidade fluida. Eu tinha mais de 60 anos quando fiz meu primeiro filme. Houve uma história tão inacreditável, que nunca contei. Quando o Rogério morreu, a Sara Feres, que trabalhou com Flavio Império (um dos maiores cenógrafos do teatro brasileiro) e é taróloga, descreveu toda a minha vida e disse que eu ia fundar uma produtora com minhas filhas. Coisas que eu não fazia. E foi acontecendo de uma maneira mágica mesmo. Eu sou mística.
“Eu tinha mais de 60 anos quando fiz meu primeiro filme”
Qual o segredo para continuar tão produtiva?
A gente vai aprendendo, sabe? Estava conversando com Djin, e ela me disse que estava exausta. Eu falei que a gente tem de aprender a descansar. Você tem de relaxar.
Como acha que luta hoje pelos direitos das mulheres?
Esse filme que estou fazendo, Alegria é a prova dos nove, é sobre o prazer da mulher, sobre o orgasmo. Estou mexendo com fogo.
É algo de que não se fala muito, ainda mais depois de certa idade, não?
Imagine aos 83! Uma amiga me disse que vai ser um escândalo. Mas nem é. Somos seres humanos. Meu filme é todo baseado em pesquisa. E uma das pesquisadoras fala sobre a terceira onda do feminismo, o prazer da mulher. Ela termina dizendo algo que eu digo também: o prazer feminino mudará a face do universo.
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