Beyoncé e Drake devolvem os holofotes à house music

Gênero volta ao topo do pop com os novos discos da cantora e do rapper, que tomaram emprestadas as batidas criadas nos clubes da Chicago dos anos 80.


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Arte: Mariana Baptista



“Procuro motivação/ Procuro uma nova fundação/ E tô nessa nova vibração” são os versos que compõem a letra de “Break my soul”, single lançado por Beyoncé no fim de junho. Motivação, fundação e vibração são termos que combinam muito com a house, o ritmo que a cantora estadunidense escolheu para sua volta seis anos depois de lançar seu penúltimo álbum, Lemonade.

A opção pelo gênero eletrônico criado em Chicago nos anos 1980 pegou os ouvidos do mundo de surpresa. Não era uma levada que se esperava da cantora que construiu seu reino musical a partir de referências do R&B, do soul e do hip-hop. Em Renaissance, álbum que veio em seguida ao single, a cantora acabou por absorver uma porção de estilos dançantes (reggaeton, afrobeats, hyperpop, disco), além de outras incursões pela house.

“Break my soul” apareceu três dias depois que outro megastar, Drake, também surpreendeu geral com Honestly, nevermind, um álbum cheio de faixas de uma house introspectiva, e nada do hip-hop e R&B que seus fãs se acostumaram a curtir.


Beyoncé – BREAK MY SOUL (Official Visualizer)

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Tanto Beyoncé como Drake recrutaram ajuda de especialistas para suas transformações musicais. Entre as dezenas de parcerias de Renaissance, se destacam os nomes de Honey Dijon e Green Velvet, DJs e produtores originários de Chicago. Já Drake incluiu entre seus colaboradores o sul-africano Black Coffee, DJ que é bombado no circuito internacional.

Diz-se no jornalismo que são necessários pelo menos três exemplos para que se configure uma nova tendência. Mas dado o imenso alcance de Drake e Beyoncé, não é preciso esperar a terceira adesão no pop para cravar que a house music está em pauta. Especialmente por causa da cantora, a crítica musical e as redes sociais se debruçaram sobre o gênero como há tempos não se via.

Muitas análises apostaram na ideia de que ela “salvou” a house do ostracismo. “Como Beyoncé ressuscitou a house music”, disse o jornal espanhol El País. Já a revista Entertainment Weekly afirmou que tanto Beyoncé quanto Drake “reviveram” o gênero com seus novos álbuns. A revista Time se empolgou: a house seria “o som do verão” nos Estados Unidos graças a Renaissance e Honestly, nevermind.


Drake – A Keeper (Official Audio)

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É o tipo de afirmação que pode ser recebida com certa ironia por quem acompanha a música eletrônica de perto. “A house não ficou parada nos anos 1990”, afirmou a cantora Crystal Waters, conhecida pelo sucesso “Gypsy woman”, ao jornal Philadelphia Inquirer. “Saem músicas de house novas e frescas todo mês”.

O universo de clubes, raves e festivais movimenta milhões de dançarinos e dólares desde a virada dos anos 1990, quando a house estourou globalmente pela primeira vez por meio de sucessos como “Gypsy woman”, “Everybody everybody”, do Black Box, e “Show me love”, de Robin S (cujo ultrafamiliar baixo sintetizado foi sampleado por Beyoncé em “Break my soul”).

Na última década, a house e outros gêneros que dela derivaram, como techno e trance, seguiram lotando festivais como Tomorrowland (Bélgica), Dekmantel (Holanda) e Universo Paralello (Brasil), nas mixagens de DJs que vão de David Guetta a Blessed Madonna e como referência de artistas pop como Dua Lipa, Charli XCX e Lady Gaga.

Mas o desconhecimento é de mão dupla. Frequentadores assíduos da cena eletrônica muitas vezes também esquecem que existe um público lá fora que ignora os mil desdobramentos da música das pistas. É um ouvinte que só é lembrado de sua existência quando um artista pop de grande magnitude traz a referência para rádios e playlists pop do Spotify.


Crystal Waters – Gypsy Woman (She’s Homeless) (Official Music Video)

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Embora há quem torça o nariz entre os especialistas, há veteranos da house aplaudindo a empreitada de Beyoncé. “Dá mais validação para nós”, reconheceu a cantora Crystal Waters em uma entrevista ao Washington Post. “Acho que é ótimo para todas nós, meninas”, acrescentou ao jornal estadunidense, fazendo referência a outras cantoras de house que tiveram sucessos décadas atrás e que atualmente labutam em discos que não chegam na esfera pop. “Obrigada, Beyoncé.”

Graças ao lançamento da cantora, “muitos notaram as origens negras e queer da house music, e a longa história do talento artístico e criatividade de pessoas negras e queer dentro desse gênero”, escreveu no Twitter o coletivo Cite Black Women, que se denomina uma iniciativa feminista negra que busca “honrar o trabalho de mulheres negras”.

Frankie Knuckles, o pai de todos

Os primeiros discos do gênero surgiram na primeira metade dos anos 1980, a partir de uma cena em que jovens DJs e produtores de Chicago tentavam fazer uma música dançante simples e forte com sintetizadores, samplers e baterias eletrônicas.

O pai desse rolê é o DJ Frankie Knuckles (1955-2014), cuja discotecagem ligava os pontos entre a disco music dos anos 1970 e as sonoridades eletrônicas europeias da década seguinte. Suas noites eram eufóricas e inspiracionais. “É como na igreja, na hora em que o pregador tem tudo encaminhado. Quando as coisas começam a ir para o auge, o salão se torna uma coisa só”, disse uma vez Knuckles.

Em pouco tempo, a house se desdobrava em variantes. Havia discos melódicos com mensagens positivas, herdeiros do soul e do gospel. A utopia proporcionada pela pista de dança, onde todos podem ser livres e viver em harmonia, é exaltada em letras como a de “Promised land”, de Joe Smooth: “Irmãos e irmãs, um dia estaremos todos livres de brigas, violência e gente chorando na rua”, diz a música de 1987.


Joe Smooth – Promised Land (Club Mix) (HQ)

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No outro extremo, estavam as sonoridades minimalistas, faixas cujo apelo era sua propulsão rítmica e nada mais. Um exemplo primoroso dessa abordagem é “No way back”, de Adonis, de 1986.

Havia também uma linha menos eufórica e energética, que logo passou a ser chamada de deep house. Com nítidas influências de jazz, “Can you feel it?”, faixa de 1987 de Mr. Fingers, alcunha de Larry Heard, é o marco zero.

A house proporcionou uma trilha para espaços seguros e libertários onde era possível se entregar sem medo à dança. Clubes de Chicago como o Warehouse, que deu o nome ao gênero, o Power Plant (ambos com Knuckles como residente) e o Muzic Box eram frequentados principalmente por jovens negros e gays, como também eram muitos dos DJs. Logo, a house foi exportada para pistas do mundo inteiro. De Nova York a São Paulo, o gênero virou nos anos 1990 o estilo predominante de uma nova geração de clubes e festas marcadas pela diversidade e pela dança fervorosa.


Frankie Knuckles – Live at the Powerplant, Chicago – Somewhere in 1983 Side A

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Em um texto sobre Renaissance publicado em seu site, Beyoncé desenvolve a ideia de que a house e a pista de dança protegem e libertam: “Minha intenção foi criar um lugar seguro, um lugar sem julgamento. Um lugar para se estar livre do perfeccionismo e da elaboração. Um lugar para gritar, se soltar e sentir liberdade”.

Uma inspiração-chave para esse entendimento e para a música do álbum, segundo a cantora, foi seu tio gay Jonny. Segundo a cantora, ele era uma fonte inesgotável de energia, além de alguém que trazia referências de sons e estéticas para Beyoncé e sua irmã, Solange. Era ele quem ajudava a criar figurinos para a Destiny’s Child, grupo onde Beyoncé cantava antes da carreira solo. Jonny morreria de complicações derivadas da AIDS.

“Obrigado a todos os pioneiros que dão origem à cultura, a todos os anjos caídos cujas contribuições ficaram sem reconhecimento por tempo demais. Esta é uma celebração para vocês”, escreveu a cantora.

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