Jarid Arraes aborda abuso infantil em seu primeiro romance

Nova obra conta história de uma menina de 12 anos criada pela avó no interior do Ceará. "Me incomodam a negligência, o uso da autoridade como ameaça e chantagem e tantas outras coisas que crianças e adolescentes reais vivem", diz autora.


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O homem abusador, que submete a companheira às mais variadas agressões. Ela desconta suas mágoas na filha, que por sua vez se anestesia dessa realidade trabalhando sem parar, negligenciando Amanda, de 12 anos, fruto de uma gravidez na adolescência. A partir da menina, na terceira geração dessa família, se desenrola a trama de Corpo desfeito, primeiro romance de Jarid Arraes. Quando perde a mãe repentinamente, Amanda passa a viver sob os cuidados da avó. A partir daí, vivências dolorosas vão se acumulando aos traumas que a garota já carregava. A menina se torna vítima da saúde mental comprometida da tutora. Passa a sofrer abusos físicos e psicológicos e a lembrar com saudade das poucas alegrias que a vida até então lhe proporcionava, como visitar sua única amiga ou ir à escola.

Ambientada no interior do Ceará, terra natal da autora, a história tem como pano de fundo questões sociais conectadas com o Brasil de 2022. O machismo, a precarização do trabalho, a manipulação da fé e, claro, a vulnerabilidade infantil, tema no qual Jarid já vinha se aprofundando desde quando estudava psicologia. “Há alguns anos assisti a um filme chamado Cafarnaum, que tem um forte texto a respeito disso (vulnerabilidade infantil). Constantemente me via particularmente sensível a enxergar atos abusivos de pais e outros adultos contra crianças, mas sempre encontrando dificuldade de falar sobre isso, porque, para nossa cultura, muitos desses atos são considerados até necessários para a educação dos filhos”, conta ela, que também é colunista da ELLE, onde trata de temas que vão do cotidiano ao kpop.

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Jarid Arraes: “Me incomodam a negligência, o uso da autoridade como ameaça e chantagem e tantas outras coisas que crianças e adolescentes reais vivem”.Foto: Divulgação

Corpo desfeito é uma tentativa de ampliar o debate sobre o abuso infantil. “Me incomodam a negligência, o uso da autoridade como ameaça e chantagem e tantas outras coisas que crianças e adolescentes reais vivem, como a Amanda, que a tudo isso tem misturado o machismo e como o fato de ser uma garota pode ser usado contra ela”, afirma. E o aprofundamento no universo das mulheres, que já se tornou uma marca da trajetória literária de Jarid, também costura a nova obra. “É por meio da literatura que desafogo os incômodos e as revoltas que a sociedade me causa. E eu iniciei minha vida como escritora publicando e priorizando personagens mulheres por perceber que quase tudo o que eu havia lido falhava com essas personagens, tive pouquíssimo acesso a livros escritos por mulheres, isso só foi mudar quando eu já tinha 19 anos”, relembra. Mais do que autoras nas capas, diz, sentia falta de tramas femininas. “Dentro de mim existia muita vontade de ler histórias que eu ainda não tinha encontrado nos livros.”

A dor de Amanda e seus elos com as mulheres à sua volta vêm à tona com a sensibilidade, a delicadeza e a riqueza de detalhes que leitores e leitoras de Jarid já conhecem. “Para mim, é importante que as histórias que eu conto revelem mulheres que podem estar perto de nós, tão reais quanto os temas que as cercam, e por isso personagens femininas podem ser todos os tipos de coisas, protagonistas pelas quais sentimos empatia e também cruéis, assombrosas, bizarras, incoerentes. É um exercício de construção de uma história que precisa ser contada, quase como se a pedido das próprias personagens”, avalia.

Com mais de 70 títulos publicados em literatura de cordel e livros, como o premiado Redemoinho em dia quente (contos) e Um buraco com meu nome (poesias), a autora já havia idealizado Corpo desfeito como seu primeiro romance. “Eu pensei que dar mais um passo para expandir minha forma de contar histórias seria interessante. Sempre tenho várias ideias que ficam dividindo a vida comigo, mas a história de Amanda veio muito forte. Acabaria longa demais se eu tentasse escrever como conto. Antes de qualquer coisa, escrever um romance foi um ato de acolhimento à história de uma criança enfrentando a dor”, pondera. Assim, acima de escolhas estéticas, esteve a importância de contar a história de uma menina que amadurece em meio às turbulências, fazendo descobertas sobre si e sobre o mundo quando passa a refletir sobre o que está por trás da religiosidade castradora da avó ou enquanto sente aflorar o seu primeiro amor. “Acho que o mais importante é o fato de que eu tentei compreender e sentir quem era essa personagem e me permiti escrever com sensibilidade, de forma que o sentimento não seja sufocado pelas preocupações técnicas, mas que esses dois pontos pudessem caminhar juntos.”

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