Pianista Jonathan Ferr aposta no urban jazz para curar

Carioca transformou aflições e reflexões que viveu no primeiro ano de pandemia em músicas que reuniu em novo disco, Cura.


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Jonathan Ferr se lembra até hoje do momento em que ouviu o disco que mudaria sua vida. Tinha 18 anos, estava na escola de música e o professor colocou A Love Supreme, de John Coltrane. Jonathan já tocava profissionalmente, colaborando com grupos de pagode, artistas de rap e de gospel, mas pouco conhecia de jazz. “Achei aquilo totalmente disruptivo, transgressor, não consegui compreender, era absurdo. Fiquei impressionadíssimo. Digo que esse disco mudou minha escuta para sempre, mudou minha vida, mesmo. Acho que só sou jazzista, só escolhi o jazz por conta desse disco. Transformou, reconfigurou tudo que eu pensava sobre música”, lembra.

Passados 16 anos, Jonathan já é um dos principais nomes da nova geração do jazz no Brasil e lança seu segundo álbum, Cura. Instrumental, o trabalho, já nas plataformas de streaming e em uma websérie no YouTube, reúne nove faixas e as participações do cantor e ator Serjão Loroza, do violoncelista Jacques Morelenbaum e da filósofa Viviane Mosé. O nome já dá a pista: o projeto materializa aflições e reflexões durante a pausa profissional forçada pela Covid-19. Não à toa, as faixas foram batizadas com nomes como “Esperança”, “Amor”, “Felicidade”, “Choro”. “Tinha uma pretensão muito grande de lançar um disco de piano solo, mas achava que ia ser daqui a uns três, cinco anos. Então, chegou a pandemia, tinha um monte de show marcado, inclusive internacional. Quando parou tudo, senti que era o momento de olhar pra dentro, não tinha mais desculpa. Os nomes são ‘moods’ do que eu estava sentindo”, diz. “No auge da pandemia, o assassinato de pessoas pretas, ao mesmo tempo o governo desastroso com relação à vacina, no cuidado com a população, tudo dando ruim, o mundo um caos, a ‘Esperança’ era o mood daquele momento. ‘Choro’ é a música que toquei porque estava querendo chorar, estava aqui entalado, escoei tocando piano. Depois de ter feito todas essas músicas e algumas outras que não entraram, entendi que era um álbum e queria que fosse diferente. As pessoas conheciam meu trabalho com banda, queria fazer um disco com foco no piano, minimalista.”


Jonathan Ferr – Sensível feat Jacques Morelenbaum (Oficial Visualizer)

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Um mergulho profundo e “ecumênico” em busca de significados e possibilidades de cura fez parte do processo musical. “Já tinha me convertido ao budismo em 2016, depois de ter sido cristão durante um bom tempo. Vinha passando por rituais da Ayahuasca. Comecei a ler sobre cura, xamanismo, candomblé. Então, tudo isso foi chegando. Falei com vários guias espirituais, pajé, pai de santo, bruxos e magos. Estava estudando tarô. E aí me veio esse nome porque era como eu me sentia, me curando. E, claro, a música sempre. O piano é minha terapia, ‘pianoterapia'”, reflete. Encontrou respostas? “Eu me perguntava o que é a cura. Mas acredito que ela não é instantânea, acontece no processo, às vezes na dor. Quero despertar nas pessoas a ideia de que quem se cura é a gente, somos nós mesmos nosso próprio remédio. A cura pode estar em dizer ‘eu te amo’ para uma pessoa e receber um ‘eu te amo’ de volta, mandar um nude para o crush e aí receber de volta ‘opa, sexta-feira vou levar um vinho aí’.”

As influências de Madureira

No trajeto que percorreu entre o primeiro contato com a música, quando ganhou um teclado de brinquedo do pai aos 9 anos, até o lançamento de Cura, o primeiro por uma gravadora (Som Livre), o artista nascido e criado no Morro da Congonha, em Madureira (zona norte do Rio), e seu urban jazz enfrentaram resistência. Ainda que com ele já tenha chegado a palcos de importantes festivais, como Festival de Inverno de Garanhuns, Rock in Rio, Sesc Jazz e Rio Montreux Jazz Festival. “Em Madureira, tive meus primeiros acessos à música de uma forma geral porque é aquela miscelânea. Vai de sertanejo a funk, passando por hip hop e samba. E meus pais eram evangélicos e na igreja também tinha muita música. É um bairro com duas, três escolas de samba e tem o baile charme. Na adolescência, tinha muitas casas underground de rock que eu frequentava. Isso tudo foi me moldando, um espaço muito fértil para a construção do artista que sou hoje”, diz. “Na época que comecei, uma galera mais purista falava ‘esse som aí é uma maluquice, mistura de um monte de coisa. Jazz é outra coisa, isso aí não é jazz’. Eu pensava: o que é jazz? Para mim é movimento, contar uma história, eu conto assim.”

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Foto: Divulgação/Renan Oliveira

Até que a música se tornasse uma profissão, as barreiras eram outras. “Aos 9 anos, já estava fazendo aula havia uns três meses e meus pais falaram que não iam poder mais bancar. Comecei a vender umas coisas, jornal, cloro. Foi o meu primeiro tino empreendedor da vida, em prol da cultura [risos]. Falava para as pessoas que estava vendendo para pagar as aulas, e elas ficavam ‘nossa, vou comprar, me dá três jornais’. Isso durou algum tempo, depois consegui uma bolsa de estudos.” Até então, para tocar um instrumento que não fosse seu teclado de brinquedo, ia à casa de uma vizinha. “Ela tinha um piano bem zuadinho. Ia lá com o pretexto de visitá-la, mas ela obviamente já tinha entendido qual era o motivo de eu estar ali e adorava, fazia uns biscoitinhos.”

Já adulto, ele não media esforços pelo amor ao jazz. “Saía de Madureira e ia para o Leblon [zona sul do Rio], pegava dois ônibus, metrô, gastava um dinheiro, tomava só uma água porque era caro pra caraca, não tinha muita grana. E aí ficava ouvindo [o show], curtindo muito. Depois de certa hora, tinha que correr, às vezes antes do show acabar, pra dar tempo de chegar em casa, pegar o metrô aberto.” Os amigos, relembra, não entendiam muito. “A galera falava ‘pô, mano, essa música é ruim pra caraca, não dá para entender nada’. Mostrava Coltrane e falava ‘olha, isso aqui é sublime, A Love Supreme, o amor supremo’. Eles falavam ‘ah, amor supremo é Katinguelê, mano’ [risos]. Acho ótimo isso porque as percepções são o que são.”

“Na época que comecei, uma galera mais purista falava ‘esse som aí é uma maluquice, mistura de um monte de coisa. Jazz é outra coisa’.” Jonathan Ferr

Mas, no seu mundo musical ideal, o jazz pode dividir espaço com Salgadinho e “Inaraí”. Daí, a vontade que carrega como missão de popularizar o gênero. “Penso que a música instrumental tem um poder muito forte de conexão. Não colocando em um patamar de o que é melhor, mas a canção com letra te dá um totem, né? Falando de alguém que fez não sei o que, você vai para aquela história. O instrumental lida com uma subjetividade, você mergulha em si mesmo. Sempre falo que busco isso com as minhas músicas. Autoconexão, acessar lugares que talvez você não acesse de uma outra maneira. Você ouve uma canção, lembra de alguém, do momento, aquilo te faz sentir uma emoção x ou y”, diz. “Fico muito feliz no show, de ver gente curtindo que falava que jazz é música de elevador. Galera jovem, moleque de boné para trás, isso é muito maravilhoso”, diz. Estudos sobre afrofuturismo reforçam suas convicções. “Uma coisa que eu creio é que a utopia leva a gente para a frente, outros lugares, possibilidades. Tudo começa a partir do que a gente imagina. Eu gosto muito da frase que diz ‘o que vai acontecer já está acontecendo’ porque é a todo tempo, né. Então, o afrofuturismo se mostrou para mim uma possibilidade para pensar no futuro, pensar a minha música para esse futuro. Para além da coisa estética, é também da ação.”

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