Letrux: “Desdenho de quem não se abala”
Conversamos com a cantora e compositora carioca sobre o processo por trás do recém-lançado clipe de "Abalos Sísmicos" que conta com intervenções gráficas e ilustrações originais de onze artistas.
Em 2017, Letícia Novaes se transformou em Letrux. Há três anos, surgia o Letrux em Noite de Climão, primeiro disco solo da cantora, compositora, atriz e escritora que, antes disso, estava na dianteira do Letuce, ao lado do também carioca Lucas Vasconcellos. Depois do enorme sucesso de seu álbum de capa vermelha – cor que pintou o figurino de shows e festas ao redor do Brasil na espera do hit “Flerte Revival” –, Letrux decidiu chorar. Neste ano, ela lançou Letrux Aos Prantos e, pouco tempo depois, estourou uma pandemia global. As letras que já demonstravam a necessidade de render-se às lágrimas, agora, parecem incontornáveis.
É por isso que o clipe de “Abalos Sísmicos” vem tanto a calhar neste momento ressaqueado que vivemos. A música fala sobre alguém que não consegue desviar do sofrimento e se irrita com quem finge que é capaz de tal proeza. Falamos com Letrux sobre esses malabarismos e sobre os processos por trás de um clipe colaborativo, feito com ilustrações originais e intervenções gráficas de onze artistas diferentes.
Como tem sido sua vida durante a quarentena? Quais são as principais angústias? Que tipo de alegria você está conseguindo extrair desse momento tão árido?
Uma verdadeira montanha-russa brasileira (risos). Já morei por três meses na serra, aí voltei para o apartamento que tinha acabado de me mudar em janeiro. Fiquei uns dois meses lá e agora estou na Região dos Lagos, uma casa de férias da minha família. Privilégio enorme não pagar um aluguel nesse momento de escassas entradas. Privilégio também estar em contato com a natureza. Eu sou muito desse lugar… Se estivesse trancafiada em um apartamento, sinto que surtaria. O que, por sinal, me leva a uma total empatia por quem sucumbiu. Não foi um ano fácil, em termos totais: econômicos, espirituais, evolutivos. São muitas angústias existenciais: “Quando vai passar? Vai passar?” Como manter a sanidade sem trabalho, sem contatos, sem um bar com as melhores amigas, observando o desmonte do país diariamente? É uma dose muito pesada de angústia e só consigo extrair alegrias daqueles que realmente sempre me trouxeram amor verdadeiro. Reafirmei laços com as pessoas que amo, percebemos nossas importâncias, nos unimos. E comecei a ver tudo com microscópio. Uma receita, uma linha de um livro que talvez eu fosse ler rápido, ouvir um álbum inteiro e não um single. Já era dada às profundezas, mas fiquei ainda mais. Isso me traz alegria, parece que a vida faz mais sentido quando assim.
O clipe de “Abalos Sísmicos” evoca uma viagem para o espaço. Onde você queria estar agora? Que lugares habitam os seus sonhos?
Eu amaria estar numa ilha da Grécia que chama Milos, onde fui ano passado, realizando o sonho da minha infância. Não é uma coisa badalada, Santorini, nada disso. É pequena e ainda conserva lugares muito pitorescos, comida absurda de boa e barata. Sonho com esse lugar direto. Eu mergulhei em uma praia onde pensei: “Posso morrer agora, porque aqui é o paraíso. É o céu”. Parece que houve um regresso quando estive lá. Amo a língua portuguesa, sou devota, mas me pareceu tão inspirador também estar num lugar onde não consigo entender nada. E ainda assim admirar a língua. Pelo som, pelos gestos que as pessoas faziam ao falar. Fiquei hipnotizada. Iria pra lá agora e ainda sonho com Milos.
O clipe parece evocar certo calor humano. Tem algo no artesanal, no feito à mão, que traz um pouco desse sentimento. Como você entrou em contato com todas essas pessoas que colaboraram contigo? Qual a relação que você tem com elas?
Também amo trabalho manual, sei o quanto dá trabalho e como é árduo. Portanto, é lindo ver que, em tempos modernos, ainda há paixão por essa arte. Conheci o trabalho da Maria Flexa no ano passado, pelo Instagram e me encantei. Convoquei Maria para fazer uma pintura d’eu chorando pra ir pra capa do disco. O Victor Jobim me fotografou, analogicamente, foi super forte. Eu chorando na frente de duas pessoas que nunca tinha visto na minha vida. E a Maria fez a pintura com essa foto que ele fez. Daí deu-se um contato astral, comecei a acompanhá-los. E a Gaia Meirelles, amiga deles, chegou junto e também o Pedro Magalhães, então essas quatro pessoas elaboraram essa ideia e foram convocando amigas e amigos que também ilustram, desenham, tatuam… Nem todos são profissionais, o que amo, pois é sempre momento de começar. E há ainda ilustração da irmã do Victor, a Cecília, que tem apenas 12 anos. Amo!
“Foi a única música que eu chorei gravando voz”, Letrux
Quando você escreveu essa letra, o que passava pela sua cabeça? Aos Prantos é um disco de lágrima que chegou pouco antes do mundo inteiro sofrer um trauma coletivo. Como mudou a leitura das suas próprias letras de lá para cá?
Em fevereiro do ano passado, fizemos um pocket-show e, na hora da passagem de som, a Natália Carrera começou a improvisar um riff e eu peguei meu celular e gravei pois achei aquilo muito lindo. Voltei pra casa e já saiu: “me abalo e me abalo muito”. É um assunto da minha análise isso, minha afetação. Percebo o mundo muito mais cínico do que eu. Eu leio A Hora da Estrela, da Clarice Lispector e eu me conecto muito à Macabéa, sabe? (risos) Ou seja: estou lascada! A letra sou eu impressionada com pessoas que não pedem desculpa e seguem a vida deslumbradas com outras coisas que não a emoção. Fico chocada. Foi a única música que eu chorei gravando voz. Engraçado… Veio a pandemia e muitas letras cresceram com a situação atual, sem dúvida. Não estávamos em um lugar “ok” de país, mas ainda assim acho que a atual circunstância sublinha mais essas letras.
Em “Abalos Sísmicos”, há uma personagem que, ao mesmo tempo em que desdenha de quem não se abala, quem não move frente à experiência sentimental, também enfrenta o ônus de viver uma vida à flor da pele. Você é assim? Essa dualidade te cabe?
Totalmente. Eu desdenho de quem não se abala, questiono. Mas, ao mesmo tempo, me fodo por me abalar demais! (risos) Uma desgraça, Brasil… Mas, prefiro. Sempre prefiro a experiência humana no talo do que o simulacro, a ironia em excesso, as máscaras… Essas eternas personagens. Preguiça demais! Eu me abalo muito, mas também tem o bom humor. É para o lado do drama, mas também da comédia, sabe? Sou abaladíssima também com a graça. Os dias podem ser duros, mas eu e minha egrégora fraterna e amorosa temos nossos mecanismos de nos fazer rir que é uma beleza. Portanto, há compensações de ser assim à flor da pele.
Abaixo, assista ao clipe de “Abalos Sísmicos”, faixa de Letrux Aos Prantos, com direção de Gabriela Gaia Meirelles, Maria Flexa, Pedro Magalhães e Victor Jobim e obras originais de Cecilia Jobim, Christian Proença, Joana Uchôa, Larissa Jennings, Luísa Martins, Maria Flexa, Nicole Schlegel, Paula Werneck, Pedro Pessanha, Renny Pereira e Victor Jobim.
Letrux – Abalos Sísmicos
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