Maria Luiza Jobim equilibra identidade e herança paterna em “Azul”
Em seu segundo disco solo, com participação da filha e de Adriana Calcanhotto, ela se firma como uma compositora e cantora pop e delicada, depois de flertar com o universo eletrônico.
Maria Luiza Jobim nasceu nas águas de março de 1987, época em que seu pai, o maestro, compositor e pianista Antonio Carlos Jobim (1927-1994), era acompanhado pela Banda Nova, compunha bossas novas sobre “Passarim” e gravava “Samba do Soho”, escrita pelo filho Paulo Jobim, meio-irmão 37 anos mais velho da hoje cantora e compositora de 36 anos.
Maria Luiza precisou voar para longe do pai, classificado por ela como uma “árvore frondosa” que traz luz e faz sombra ao mesmo tempo. Demorou a se encarar também como uma artista da música. Gravou um primeiro álbum em 2016, quase incógnita, como metade do Opala, dupla eletrônica de canções em inglês. Esforçou-se para criar uma identidade musical própria, independente do legado descomunal do principal compositor da bossa nova.
Depois do álbum solo de estreia, o semieletrônico Casa Branca, lançado em 2019, apresenta agora o sucessor Azul, como uma compositora e cantora pop suave e delicada que não tenta se firmar como continuadora da bossa nova nem tampouco fugir dessa herança.
Nascida no Rio de Janeiro, morou em Nova York, Paris e São Paulo. De volta ao Rio, passou a pandemia na Serra Fluminense, onde compôs o segundo álbum, batizado de Azul em referência dual ao Rio e ao mar, à tristeza do blues e à alegria do céu azul, à luz e à sombra.
O disco celebra a cidade natal na simplicidade de “Boca de açaí”, reflete sobre o tempo e o vento em “O tempo”, acaricia Tom Jobim em “Papais” (composta e cantada com Adriana Calcanhotto). Ironiza os dramas banais do cotidiano em “Drama” e “Medo bom”, brinca com Arnaldo Antunes em “O culpado é o cupido”, canta em japonês com a paulistana radicada em Tóquio Lisa Ono em “Nada sousou”. Entre uma maioria de composições próprias e inéditas, regrava o “Samba do Soho” (“Quando ando pelo Soho/ eu me lembro da Gamboa/ ai, ai, ai, que coisa louca/ ai, meu Deus, que coisa boa”), em homenagem ao meio-irmão Paulo Jobim, que morreu no ano passado, aos 72 anos.
Se em 1994, aos 6 anos de idade, Maria Luiza fez participação triunfal no derradeiro disco do pai (Antonio Brasileiro), cantando o “Samba de Maria Luiza” (“O samba de Maria Luiza é bonito pra chuchu”) e “Forever green” (“Where is the blue?”), em Azul ela traz a filha Antonia, de 4 anos, para soltar a voz em “Papais” (“Pai, o tempo tem passado tanto/Pra frente e pra trás”).
Em entrevista à ELLE, fala sobre as conexões inquebráveis entre as famílias Jobim e Caymmi, e com a música. Lembra, por exemplo, a primeira infância vivida junto à Banda Nova, integrada por sua mãe, Ana Lontra Jobim, e pelo padrinho Danilo Caymmi, pai da hoje também cantora e compositora Alice Caymmi, outra das crianças que orbitavam ao redor dos últimos anos de vida de Tom Jobim. O “cabelo amarelo” celebrado pelo pai no “Samba de Maria Luiza” escureceu com a maternidade e aparece descolorido na capa de Azul, como num comentário bem-humorado sobre as coisas que são da natureza e as que não são. A seguir, os principais trechos dessa conversa:
Azul
“Se Casa Branca foi uma ode à minha infância, Azul fala muito do meu presente, de quem me tornei. E fala muito do Rio, do reapaixonamento pela minha cidade, da volta pra cá. As canções são todas mais recentes, compostas no auge da pandemia, e trazem um traço mais melancólico, mais introspectivo. Como artista, o conceito do disco nunca vem pronto, nunca vem antes. É como terapia, você faz e depois entende. Gosto muito da dualidade da palavra. Em inglês, ‘blue’ é o sentimento de tristeza, e em português ‘tudo azul’ é uma expressão de alegria. Adoro esse contraste, duas expressões que significam coisas opostas numa mesma palavra, luz e sombra. O disco tem muito disso. Acho muito interessante a informação de que o azul é a cor mais rara da natureza, e no Rio está por toda parte. Achei poético.”
Maria Luiza e a música eletrônica
“O duo Opala foi um período de busca, de pesquisa. Eu sempre fui do rolê da música eletrônica, sempre gostei e pesquisei muito, era obcecada. Ia para a balada, mas mais como pesquisa, meio nerd, sabe? Não era tanto uma coisa social, pelo contrário, eu queria ouvir certos artistas e DJs. Namorei um DJ quando tinha 16 ou 17 anos, aí aprendi a mixar. Tinha duas picapes e ficava em casa mixando, obsessões (risos). Quando comecei com a música, tive um impulso de correr na direção contrária do meu pai, para poder encontrar qual era a minha verdade, o que eu era ali naquele lugar, quando se tem uma árvore e a sombra tão frondosa por perto. Foi um movimento saudável para mim, de autoconhecimento.”
A filha compositora de Tom Jobim
“Sempre vai existir uma decepção, porque meu pai foi tão amado, a obra dele tocou tanta gente de uma maneira tão profunda, e eu, sendo filha dele, muita gente espera uma coisa… Tive muita sorte de ser criada num ambiente de artistas, todos muito livres. Não tinha pressão para ser nada, de ser cantora ou ser alguma coisa. Teve uma maturação, escolher a música para mim não foi óbvio. Fiz cinco anos de arquitetura, fiz letras, sempre desenhei, escrevi. Me respeitei muito, era muito importante me descolar da imagem do meu pai. Fui fazer uma coisa completamente diferente, cantava em inglês e produzia minhas músicas eletrônicas. A dificuldade talvez tenha sido porque a música estava num lugar tão sagrado, de memória do meu pai, que, por mais que eu tivesse uma relação extremamente íntima com a música, para mim era difícil ir ali. Tinha medo de tornar aquilo um ofício e bagunçar tudo que sinto.”
“Fiz cinco anos de arquitetura, fiz letras, sempre desenhei, escrevi. Me respeitei muito, era muito importante me descolar da imagem do meu pai.”
Memórias do pai
“Tenho muitas. Minha memória é de elefante, e tive muita sorte, porque ele foi um pai maravilhoso, muito presente. Estava num período da vida muito voltado pra família, viajando menos, estando muito em casa, tendo uma vida diurna. Desfrutei muito disso. A gente tinha nosso mundinho, ele tocava e eu ficava desenhando. Me lembro de escolher as cores de acordo com o que estava ouvindo.”
De volta ao começo
“Hoje em dia, com a maturidade e o trabalho, consigo transitar na obra do meu pai com naturalidade e também com propriedade. Eu vim dali, aquilo também é meu, não estou replicando uma coisa de outra pessoa. Estou falando de uma coisa que é minha também. Casa Branca era um pedido de licença para entrar, agradecendo e honrando meu passado e minha origem, e Azul é quem eu sou no mundo. Faço terapia desde que eu aprendi a falar praticamente, estou elaborando essas questões.”
“Faço terapia desde que eu aprendi a falar praticamente, estou elaborando essas questões.”
Os cabelos amarelos de Maria Luiza
“Sou loira originalmente, mas quando era criança eu era superloira. Depois da gravidez, meu cabelo escureceu muito. Hoje estou com o cabelo descolorido. Nunca fui muito apegada a ele, adoro fazer umas maluquices. Tem um pouco dessa identidade do cabelo amarelo (diz, em referência à música ‘Samba de Maria Luiza’), mas de um outro jeito, não fingindo que é uma coisa natural. Não é uma réplica, é um statement, uma reedição. Meu processo criativo é muito sinestésico, sensorial, das imagens, das cores, dos cheiros. Minhas letras falam muito disso. A forma como você se veste tem a ver com isso também. E faço isso de maneira muito intuitiva. Sou mãe, então para mim roupa tem que me ajudar no meu dia a dia, no corre de ser mãe-polvo e fazer mil coisas ao mesmo tempo, com conforto e versatilidade.”
Os irmãos e a filha Antonia
“João Francisco era meu irmão mais velho, e morreu quando eu tinha 11 anos (em um acidente de carro). Era meu irmão por parte de mãe e de pai, foi uma perda muito dura. Dediquei o disco Casa Branca a ele, e Azul dedico ao meu outro irmão, Paulo, dos olhos azuis. O nome Antonia é uma homenagem ao meu pai. Como trabalho em casa, trago muito ela para meu universo. É um desafio trabalhar com uma criança pequena em casa. Às vezes, é impossível mesmo, mas ela participa comigo, adora música. Trouxe ela para este disco, Antonia faz um backing vocal na faixa que canto com Adriana Calcanhotto. Estava gravando num estúdio em que meu pai gravava, me vieram muitas sensações e memórias e me deu muita vontade de replicar aquilo que vivi. E ela se sentiu tão prestigiada, tão importante, bonitinha, curiosa. Foi uma coisa leve, gostosa, que vai ficar na cabeça dela”.
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