O agente secreto: estética vintage, mensagem atual
O diretor Kleber Mendonça Filho falou com a ELLE em Cannes, onde apresenta O agente secreto, estrelado por Wagner Moura.

Em seu quarto longa-metragem de ficção, O agente secreto, exibido em competição no 78º Festival de Cannes, Kleber Mendonça Filho coloca o espectador dentro de suas memórias de 1977, que juntam peças do cinema pop e do folclore recifense.
Marcelo, interpretado por Wagner Moura, é um pesquisador universitário que foge para o Recife e se refugia em um prédio residencial, que logo se mostra menos seguro do que parecia. A violência, a morte e a corrupção estão arraigadas na sociedade brasileira, especialmente nesse período.
Mas Mendonça Filho não faz um filme de ditadura clássico. Aqui, trata-se menos de ação e mais de uma atmosfera tensa, densa e cheia de texturas, que nos transporta para o clima sufocante da época, ao mesmo tempo que faz uma conexão com o presente.
Além de Wagner Moura, o elenco de O agente secreto tem Maria Fernanda Candido, Gabriel Leone, Carlos Francisco, Alice Carvalho, Hermila Guedes e Robério Diógenes, entre outros atores.
O diretor conversou com a ELLE em Cannes. Acompanhe a entrevista:
Wagner Moura e o diretor Kleber Mendonça Filho. Foto: Victor Jucá
De alguma maneira você se vê no Marcelo?
Eu pensei muito que o filme deveria ser bem clássico e ter a figura clássica da narrativa da literatura, do cinema, onde alguém é identificável, você consegue se apegar ou pelo menos identificar que é uma pessoa razoável, na forma como ele reage a coisas. O Wagner, como astro de cinema, tem essa qualidade do personagem com quem você consegue se relacionar. Um dos aspectos mais curiosos do astro de cinema é o carisma. Eu aprendi muito isso quando trabalhei com Sonia Braga em Aquarius. Eu olhei pela câmera e enxerguei carisma. É uma coisa chamada “star quality”, a qualidade de ser astro. Eu sempre quis que este filme fosse com o Wagner Moura. E eu acho que é muito importante para criar empatia com esse personagem. Acho inclusive que ele não é perfeito como personagem, como homem, mas você consegue se identificar com ele. Porque para você entender e sentir a história, é muito importante que se identifique com ele.
Fazia tempo que você queria trabalhar com o Wagner Moura?
Eu conheci Wagner em Cannes como crítico, fazendo uma entrevista parecida com essa. Ele estava aqui com Alice e com Lázaro em Cidade Baixa, do Sérgio Machado. Foi aí que conheci Wagner. O tempo passou, eu fiz curtas e fiz O som ao redor. Ele estava no Festival de Gramado, não sei o que ele estava fazendo lá, não sei se foi receber um prêmio. Mas ele viu O som ao redor, chegou para mim e disse: Acho que a gente precisa trabalhar junto. Respondi: É uma honra, vamos achar o filme certo para fazer isso. O tempo passou e 13 anos depois a gente está em Cannes com o filme que eu escrevi para ele. Levou tempo, mas foi o encaixe certo.
O filme é calcado em suas memórias. 1977 é o primeiro ano do qual você tem mais memórias, porque tinha 9 anos nessa época. E O agente secreto tem uma atmosfera densa também. Você sentia isso, apesar de ser criança?
Como adulto, eu tenho uma radiografia muito clara da década de 2000, de 1990, de 1980. 70 entra em uma neblina, porque eu era muito jovem. Mas eu lembro. Quando eu comparo o que tenho da década de 1970 em mim e penso nos anos 60, e eu não lembro nada dos anos 60, porque eu nasci em 1968, aí eu acho que há uma diferença grande de sentimento, de tom. Porque eu lembro dos anos 70. E eu lembro especificamente de 1977 e 78, até por questões familiares, que envolvem a saúde da minha mãe e colocam um carimbo de tempo nesse momento. Na hora de escrever o roteiro, de pensar na imagem do filme, na decoração, nos objetos, nos carros, no jornal, na participação do jornal no filme, de coisas de papel o tempo todo – telegramas, jornal, cartazes, papeis, bilhetes, desenhos feitos à mão –, tudo isso para mim é muito forte por causa dessa memória afetiva. E, ao invés, de tocar em alguns temas que são um pouco recorrentes em filmes de ditadura, como o aparelho, o assalto a banco para custear a resistência, eu me lembrei de coisas que para mim eram muito marcantes. Por exemplo, eu estudava em uma escola em que toda sexta a gente tinha de marchar. Imagine, meninos e meninas em fileiras, com a mão no ombro do outro, marchando. Que coisa mais dodói. Por que fazer crianças agirem como soldados, quando eu tenho certeza de que muitas famílias não tinham a menor pretensão de mandar seus filhos para a escola militar ou algo do tipo? Adultos que de repente falavam baixo porque o assunto era um pouco delicado. Essas são coisas que me informam mais no sentido de escrever um roteiro que tem um clima, mas não tem exatamente a reconstituição de algo que aconteceu, um incidente, alguma coisa assim. E eu gosto muito do tom geral, da textura. Tem uma densidade o filme.
A questão da memória está em todos os seus filmes. Quando a gente conversou sobre Retratos fantasmas, você disse que ele ia te mudar como cineasta. Vê um cineasta um pouco diferente neste filme?
Não me vejo diferente. Algumas pessoas dizem assim: ‘Poxa, seu filme mais maduro’. Ou: ‘Poxa, a mise-en-scène é mais’… Eu não vejo nenhuma diferença de procedimento em relação a O som ao redor. Eles têm exatamente o mesmo estilo em termos de câmera, de mise-en-scène, de uso da câmera como um ponto de vista. E o Bacurau, o Aquarius. Mas isso vem muito do observador externo. É claro que, de 2010, quando eu filmei O som ao redor, para cá, muita coisa aconteceu na minha vida e supostamente eu vou mudando. Mas eu não saberia… Talvez o observador externo esteja mais equipado para entender isso. Mas eu estou feliz com esse filme como estive com Bacurau, com Retratos fantasmas.
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Retratos fantasmas é um filme em que você se coloca. Isso acabou afetando O agente secreto?
Retratos fantasmas foi uma curva de aprendizado de me desprender de certas sensações de privacidade. Claro que hoje, com esses instrumentos que a gente tem no bolso, as pessoas têm uma capacidade muito grande de se expor, de fazer lives preparando um ovo, colocando música como um DJ. Mas para mim não é tão fácil. Claro que sou uma pessoa que lida com mídia e tenho certas regras para me expor nas redes sociais. Mas, quando você faz um filme e vai falar da sua casa, com foto do seu quarto bagunçado, você falando da sua mãe, do seu irmão, é uma curva de aprendizado. Foi exatamente aí que entendi que tinha entrado em uma outra área – eu acho que não é me expor, mas ser honesto e transformar isso em cinema. E eu não sou nem fui a primeira pessoa a fazer isso. Se você pegar grandes artistas que vieram antes de mim – Agnès Varda, Fellini, Glauber Rocha, em um filme maravilhoso como Di –, vê filmes muito desprendidos de dizer: ‘Essa é a minha casa, essa é a minha cueca suja. Essa é a vida’. Retratos fantasmas marcou realmente esse degrau. E ele me levou para O agente secreto, que, claro, é um filme de ficção, mas muito pessoal mesmo.
Esse filme se passa em 1977, mas fala muito sobre o Brasil de hoje, das reverberações do passado no presente.
Eu sempre achei que ia fazer um exercício de mergulho na história, principalmente se o filme ficasse bem-feito, essa coisa da textura, da verdade. É um momento histórico mesmo, consigo sentir com a mão. Essa era minha pretensão, antes de fazer o filme. Sempre achei que algumas pessoas iam dizer: ‘Poxa, as coisas eram difíceis naquela época’! E eu ia secretamente dizer: ‘Poxa, mas as coisas são difíceis hoje ainda’. Na pós-produção já, quando o Trump assumiu, em janeiro, começaram a aparecer uns paralelos muito inusitados, que eu nunca imaginei que aconteceriam nos Estados Unidos da América. Que está longe de ser uma sociedade ideal, mas francamente um presidente atacar a Universidade de Harvard é um negócio muito impressionante. É claro que o mundo roda em círculos e que os últimos dez anos do Brasil marcaram um atraso impressionante. Não só o Brasil foi freado, mas engatou a marcha-ré e voltou para uma mentalidade talvez associada ao final dos anos 1960 e início dos anos 1970, com a volta de palavras que tinham sido aposentadas, como misoginia, homofobia, desrespeito às minorias, racismo, xenofobia interna das divisões entre Norte e Sul do Brasil, o Nordeste vilão, terra de ignorantes que elege o PT. O filme é totalmente atual mesmo com essa maquiagem bem-feita do passado.
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