Por mais lésbicas na literatura

Conheça o trabalho de editoras independentes e clubes de leitura dedicados a autoras lésbicas.


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Apenas na metade do ano de 1976, a escritora paulistana Cassandra Rios (1932-2002), pseudônimo de Odete Rios, teve mais de dez obras censuradas pela ditadura militar. Ao todo, foram 36 livros proibidos. Cassandra foi a autora mais perseguida pela censura, que retirou todas as suas obras das livrarias. Suas histórias enfureciam os militares, que não poderiam permitir a circulação de narrativas pautadas pelo prazer feminino em narrativas lésbicas. Ainda assim, desde o início da década de 1970, vendeu um milhão de cópias no país. Ao todo, lançou 50 títulos, hoje raros até em sebos.

Nos últimos anos, sua obra vem sendo redescoberta. Em 2013, a diretora Hanna Koric lançou o documentário
Cassandra Rios: a Safo de Perdizes (2013) sobre a autora, que também é tema de podcasts, vídeos no YouTube e costuma encabeçar as listas de indicações de leituras LGBTQIA+. Cerca de 20 títulos de Cassandra foram recuperados para Orgulho e resistências: LGBT na ditadura, em cartaz até 26 de abril no Memorial da Resistência, em São Paulo. A mostra resgata obras que bateram de frente com a censura para refletir sobre a relação entre autoritarismo e diversidade sexual.

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Coletânea da editora carioca Filipa Edições.Foto: Divulgação

A maior visibilidade cultural do segmento LGBTQIA+, nos dois últimos anos, levou a uma mobilização e viabilização de autoras e autores, novas editoras e interessados, defendem Adriana Azevedo, Aline Miranda e Renata Spolidoroas. Foi nesse contexto que elas criaram a editora carioca
Filipa Edições, em 2020. O trio já tinha projetos anteriores no segmento, como o coletivo Isoporzinho das Sapatão e do encontro literário Sapatão e ficção. Com formação em Letras, elas lançaram em formato de livro digital Visíveis, que reúne textos, poemas e imagens LBT, escolhidos entre os mais de 170 trabalhos enviados por uma chamada aberta ao público.

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“São narrativas que, propositalmente, circulam pouco. Porque a circulação do discurso é política”, diz Bel Baroni, da editora carioca Palavra Sapata.Foto: Divulgação

Também carioca, a editora
Palavra Sapata foi criada em 2018 pela dupla Bel Baroni, escritora e compositora, e Roberta Guizan, designer. A iniciativa independente publica contos e poesias com recorte lésbico e começou como um perfil no Instagram, onde divulgam textos, autoras e agendas LGBTQIA+. “São narrativas que, propositalmente, circulam pouco. Porque a circulação do discurso é política. Então, o caminho nasce do desejo de fortalecer essas histórias e autoras”, explica Bel.

Os 600 exemplares da coletânea
Que o dedo atravesse a cidade, que o dedo perfure os matadouros (2018), lançado pela editora, foram produzidos de maneira artesanal durante oficinas e mutirões. A dupla trabalha agora para produzir a impressão do e-book redondezas, segunda aventura literária de Bel, que também se prepara para apresentar a Corpas sonoras, série de encontros de jam sessions entre artistas lésbicas, trans e queers.

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Encontro promovido pelo Clube Lesbos.Foto: Divulgação

Das editoras independentes para os clubes de leituras, o
Clube Lesbos organizou desde 2017 mais de cem encontros para discutir obras de artistas lésbicas em cidades como Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, São Paulo, Fortaleza, Goiânia e Salvador. Com a pandemia, migraram para o formato online e agora contam com a participação de mulheres de diferentes regiões do país. Além das rodas de discussão, o clube de leitura organizou listas com livros, séries e filmes. Ao todo, já são mais de 300 livros organizados em diferentes categorias, como autoras lésbicas, bissexuais e não traduzidas.

“Sabia que o processo de disseminar a literatura lésbica seria demorado, mas estamos crescendo, com mais seguidores e mais interesse em conhecer essas autoras”, comenta a paulista Sol Guiné, 25 anos, cofundadora do
Clube Lesbos. Foi pelas redes sociais que Sol conheceu Lídia Bizio, cofundadora do Lesbos e que lançou a ideia do clube de leitura em um grupo do Facebook. “Sentia falta de um espaço onde pudesse conhecer mais lésbicas e mulheres bissexuais que não fosse uma festa. Frequentava clubes de leitura, mas nunca me sentia representada nas obras”, conta Lídia.

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“A gente pensa em autoras como Cassandra Rios, Ana Cristina Cesar, Adrienne Rich, Virginia Woolf, mas elas não contavam histórias possíveis para mim”, diz Gabriela Soutello.Foto: Divulgação

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Reconhecimento

Em 2019, o Festival Mix Brasil – a plataforma mais antiga de cultura LGBT do país –, reconheceu pela primeira vez talentos literários. A vencedora da edição foi a paulistana Gabriela Soutello com seu livro de estreia,
Ninguém vai lembrar de mim (2019, Editora Polén), também selecionado pelo Edital de Publicações de Livros para Estreantes, da Prefeitura de São Paulo, em 2018, e editado por Jarid Arraes.

No momento, Gabriela rascunha seu próximo livro e organiza uma antologia escrita por lésbicas e bissexuais. Em paralelo ao trabalho como gerente de redes sociais, Gabriela também realiza uma série com autoras
em seu perfil do Instagram: “Convidei escritoras que queria conhecer para contarem de que maneira a sexualidade atravessa a vida delas. Meu insta virou um espaço de troca”.

Desde 2019, Gabriela publicou ali dezenas de depoimentos de contemporâneas, como o da carioca Maria Isabel Iorio, da paraense Monique Malcher, da brasiliense Tatiana Nascimento e da gaúcha Natalia Borges Polesso. “A literatura, assim como outra arte, é um espaço de referências. A gente pensa em autoras como Cassandra Rios, Ana Cristina Cesar, Adrienne Rich, Virginia Woolf, mas elas não contavam histórias possíveis para mim porque não habitavam o universo que vivo. Ter escrito o livro me colocou nesse lugar, que já senti falta um dia.” O cenário é promissor.

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