Protagonizado por Maeve Jinkings, “Carvão” chega aos cinemas

Longa premiado, que marca a estreia da diretora Carolina Markowicz, expõe a flexibilização moral do brasileiro.


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Foto: Divulgação



Carolina Markowicz cresceu no interior de São Paulo e sempre observou com curiosidade como as pessoas se comportavam lá. “O que você pode ser fora de casa nem sempre corresponde à verdade”, disse ela em entrevista à ELLE. “Eu me lembro de observar as pessoas, os comportamentos, o que elas falavam e o que de fato faziam, além das fofocas.” Nos últimos tempos, a escalada do conservadorismo no Brasil fez com que pensasse muito na flexibilidade moral e na inversão de valores, “essa coisa de tudo poder ser modificado em nome dessa família tradicional e de Deus”.

Foi pensando nisso que ela teve a ideia para Carvão, seu primeiro longa-metragem, que acaba de chegar aos cinemas, depois de passar pelos festivais de Toronto, de San Sebastián e pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. No Festival do Rio, ganhou os troféus Redentor de roteiro, atriz coadjuvante (Aline Marta) e direção de arte. Antes, Markowicz dirigiu seis curtas, entre eles, O órfão (2018), exibido na Quinzena dos Realizadores em Cannes e vencedor da Queer Palm, prêmio paralelo do festival para obras de temática LGBTQIAP+.

O filme, rodado em Joanópolis, interior de São Paulo, tem como personagem principal Irene, interpretada por Maeve Jinkings, de O som ao redor (2010) e Boi neon (2014). Ela é uma mulher simples que cuida da pequena carvoaria da família, da casa, dos animais, do pai acamado e do filho Jean (Jean Costa). Tudo isso praticamente sem ajuda do marido Jairo (Romulo Braga), que quase sempre está bêbado. A complexa dinâmica familiar fica ainda mais complicada com a chegada de um estrangeiro misterioso (César Bordón), que eles decidem abrigar em troca de dinheiro. A violência e sua naturalização estão à espreita.

“É uma personagem que eu consigo odiar, amar e ter empatia, tudo em um só tempo”, disse Jinkings à ELLE. “Ela está sobrecarregada, mas quer ter algum prazer.” Para construir a personagem, ela isolou-se em Joanópolis e conviveu com as pessoas de lá. Teve uma “musa”, com quem aprendeu a lidar com os animais, por exemplo. Frequentava a missa aos domingos para observar os comportamentos e ouvir os sermões dos padres.

Também ajudou muito a caracterização da personagem, que usa roupas largas, velhas e sobrepostas para poder lidar na carvoaria e no trato dos animais. “Irene é uma personagem como poucas vezes eu tive chance de desenvolver na minha carreira, que não faz questão de agradar nem sequer fisicamente”, disse Jinkings sobre a ausência de vaidade da protagonista. “Não é um corpo, como é comum no audiovisual, a serviço da beleza, da docilidade.”

Markowicz ficava preocupada ao ver as imagens glamourosas de Jinkings nas redes sociais. Na época, elas mal se conheciam, e a diretora não sabia se a atriz ia se permitir viver no corpo de Irene. “Eu falava: ‘Carolina, não acredite no Instagram’”, contou a atriz. “Ela só relaxou no dia do teste de caracterização. Para mim, essa transformação só me ajuda. Foi muito libertador.”

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Ter uma diretora foi fundamental para criar essa mulher tão cheia de nuances. “A gente queima muitas pontes, porque somos dois corpos femininos”, disse Jinkings. “Assim como eu nunca vou entender totalmente a complexidade de viver no corpo de um homem, é mais difícil para um cineasta homem entender o que se passa com uma mulher – não que alguns diretores do sexo masculino não sejam capazes de criar boas personagens femininas.”

Markowicz insere-se em uma onda de diretoras que vêm conquistando espaços no cinema, de Júlia Murat e Juliana Rojas, no Brasil, a Carla Simón, ganhadora do Urso de Ouro neste ano com Alcarràs, e Julia Ducournau, vencedora da Palma de Ouro em 2021 com Titane, no exterior. “Está melhorando, mas ainda é difícil”, disse Markowicz. “Ainda são feitos mais filmes masculinos, e a mulher precisa se impor para ser respeitada como chefe.”

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