Filme transporta plateia para cela com Caetano

Dupla de diretores fala sobre Narciso em Férias, documentário em que Caetano Veloso relembra sua prisão pela ditadura militar, período que considera o mais duro de sua vida.


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“Comecei a achar que a vida era aquilo ali. Só aquilo. E que a lembrança do apartamento, dos shows, da vida lá fora era uma espécie de sonho que eu tinha tido”, lembra Caetano Veloso no trailer de Narciso em Férias, documentário em que repassa, mais de 50 anos depois, suas memórias do período que considera o mais duro de sua vida. Na manhã de 27 de dezembro de 1968, dias após decretado o AI-5, o compositor foi retirado de sua casa sem maiores explicações por agentes da Polícia Federal e passaria 54 dias preso pela ditadura militar – sete deles em uma solitária –, sem que a imprensa pudesse noticiar a detenção.
Com produção de Paula Lavigne, esposa de Caetano, direção de Renato Terra e Ricardo Calil, Narciso em Férias será exibido pela primeira vez no 77º Festival de Cinema de Veneza nesta segunda-feira (7), mesmo dia em que será disponibilizado ao público brasileiro pela plataforma Globoplay.

Diante da proibição da entrada de brasileiros na Europa devido ao cenário da pandemia no país, nem Caetano nem a equipe vão poder assistir à estreia do filme, exibido fora de competição em Veneza – o primeiro grande festival de cinema que acontece presencialmente após o alastramento da Covid-19 pelo mundo. “A gente está muito honrado, com esse travo agridoce de não pode estar lá, mas feliz que o filme vai representar o Brasil”, diz Ricardo. “A Itália adora o Caetano e acho que o filme será olhado com atenção. O país viu recentemente a ascensão e a queda de um governo de extrema direita. Acho que estão atentos à questão política do Brasil também”, completa o codiretor.

Narciso em Férias nasceu de uma iniciativa de Paula. “Em 2018, muito por causa do primeiro turno das eleições, essa história da prisão voltava e ela sentia que Caetano queria falar sobre isso”, lembra Renato. “O Brasil tem um governo que diz que a ditadura militar foi algo bom. E eles estão tentando lançar isso sob uma luz positiva. Então, é hora de falar sobre este período da forma como faço no filme”, disse o compositor, às vésperas do lançamento do filme, à Variety. Ainda em 2018, Paula procurou Renato, que chamou Ricardo, com quem ele já dirigiu Uma Noite em 67 (2010), sobre o 3º Festival da Música Popular Brasileira, com depoimento de Caetano, e Eu Sou Carlos Imperial (2016).

O documentário ganhou então a produção-executiva de João Moreira Salles – a quem Calil se refere como “um farol” para a dupla – e o selo da VideoFilmes, produtora que João tem com o irmão, Walter Salles. Renato conta que João ajudou a dupla a chegar ao corte final do filme e, com Walter, a decidir como iriam lançar o documentário.

Os diretores apostaram em um formato minimalista: Narciso em Férias é centrado no relato do compositor, apenas acompanhado por algumas músicas. “Filmamos o depoimento do Caetano e ficamos pensando um tempão se a gente ia fazer um documentário original na forma e que provocasse essa experiência de prisão, de clausura, de monotonia, às vezes de angústia. Ou se a gente iria trazer o Gilberto Gil [detido na mesma manhã que Caetano], o Perfeito Fortuna [ator, ex-integrante do Asdrúbal Trouxe o Trombone], que, em determinando momento, ficou preso por um tempo com o Caetano, e faria um tipo de documentário que as pessoas estão mais acostumadas, com várias pessoas falando, cobertos por imagens de arquivo. Mas tinha uma intuição muito forte de que o filme deveria ser só o Caetano”, diz Renato. “Qualquer elemento a mais que a gente trouxesse iria roubar as pessoas da experiência que é o relato do Caetano, que por si só é muito cinematográfico e transporta a gente, de alguma maneira, para aquela cela com ele”, diz Ricardo. “Se fosse uma pessoa que não tivesse a força e o carisma do Caetano, esse filme não se seguraria com uma pessoa só”, completa Renato.

O depoimento foi gravado em uma sala cinza da Fundação Cidade das Artes (Rio de Janeiro), uma referência calculada à prisão. “Filmamos uma longa entrevista com o Caetano em 2018. Ele estava muito mexido com a iminência do Bolsonaro ir para o segundo turno, uma porção de coisas devem ter passado pela cabeça dele”, diz Renato. “O Caetano tem uma memória muito prodigiosa, conheço poucas pessoas assim. Outra coisa que me surpreendeu é a transparência do relato dele, que comporta muitas emoções. Ele chora de ter que pedir para interromper as filmagens e, em alguns momentos, apesar do tema árduo, gargalha de perder o fôlego”, conta Ricardo.

Entre os trechos mais emocionantes, Renato destaca o que inspiraria a composição de “Terra”, lançada dez anos depois no disco Muito – Dentro da Estrela Azulada. Como lembra o codiretor, Caetano ficou preso em diferentes quartéis e, em um deles, sua então mulher, Dedé Gadelha, levou um exemplar da revista Manchete com as primeiras fotos da Terra vistas do espaço. “O Calil achou essa revista, a original, e quando o Caetano lembrou dessa história, mostrou. Ele se emocionou muito porque se lembrou de um sargento baiano que deixou a Dedé entrar na cela e depois foi preso por causa disso. Ele tem uma pena enorme de não lembrar do nome dele.”

Renato também destaca o episódio em que o Caetano retorna para casa. “Ele achou que estava maluco, mas o pai fez ele recobrar a razão. Com muita clareza, ele descreve que não se reconhecia, não sabia o que era aquilo que estava olhando no espelho. Os pais tinham ido ao aeroporto [para buscá-lo], mas se desencontraram dele. O pai disse uma frase, ‘não me diga que esses filhos da puta deixaram você nervoso’, e ele recobra a razão na hora, porque o pai nunca falava palavrão. Essa força paterna é muito emocionante, uma coisa que todo mundo, de certa forma, se identifica.” Para Renato, em nenhum momento o compositor se coloca como herói ou vítima.
Ainda que os dois meses na prisão tenham sido relatados pelo próprio compositor em Verdade Tropical, no capítulo que dá nome ao documentário, Ricardo conta que o filme traz um fato novo jornalístico em relação à publicação de 1997. “No livro, ele fala de desconfianças sobre os motivos da prisão dele, a partir dos interrogatórios e tudo mais. Mas no filme, os motivos, dos mais banais aos mais profundos, estão muito mais delineados.”

Apesar do contexto político do depoimento, às vésperas da eleição de 2018, Ricardo não vê uma bandeira a ser levantada. “Não é o objetivo do filme. Para mim, ele tem um pouco de caráter de alerta. Em 1968, a gente estava em uma época diferente, era uma ditadura já oficial, mas tiveram alguns momentos em que a brutalidade e o absurdo eram cotidianos, o AI-5 institucionalizou aquilo. Acho que estamos em um momento que a brutalidade e o absurdo estão virando cotidianos de novo. Todo dia a gente se surpreende com uma notícia meio surreal, absurda, parece um pesadelo. O filme diz também para a gente tomar cuidado para aquilo que é cotidiano não virar lei, não seja institucionalizado.”

Neste cenário, Ricardo também vê Caetano como um grande tradutor poético do Brasil. “Essa live recente [que reuniu o compositor e os filhos no mês passado] confirma que, de tempos em tempos, a gente precisa voltar ao Caetano para entender o que é isso aqui, esta bagunça, este país e o que ele poderia ser, se não tivessem tantos percalços.”

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