“Quando me olho, dentro da minha cabeça, não tenho 80 anos”

Ney Matogrosso completa oito décadas de tabus quebrados, lança disco romântico, mas com uma boa dose de sexualidade, fala da selfie e compara os dias atuais com os tempos da ditadura militar e o coronavírus com a pandemia do HIV.


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Em quarentena e se sentindo preso dentro do próprio corpo, Ney Matogrosso completou 80 anos em agosto, enquanto criava o álbum Nu com a minha música, recém-lançado, e acompanhava a publicação de Ney Matogrosso – A biografia, do jornalista Julio Maria. Desde a semana passada é homenageado na 29ª edição do Festival Mix Brasil, com o prêmio Ícone Mix e uma mostra de filmes de que participou como ator, como Caramujo-Flor, de Joel Pizzini, e Ralé, de Helena Ignez, além de dois documentários. As circunstâncias o levaram a um trabalho mais introspectivo que a média das criações do cantor sul-matogrossense. Ele classifica Nu com a minha música como romântico, o que se comprova nas regravações de “Sua estupidez” (lançada por Roberto Carlos), o forró-canção “Espumas ao vento” (gravada por Fagner), “Quase um segundo” (dos Paralamas do Sucesso) ou “Mi unicornio azul” (do cubano Silvio Rodriguez), entre outras.

O próprio artista demarca que há quatro exceções, e todas são compostas compostas por autores de gerações mais novas. São “Faz um carnaval comigo” (“é boca com boca/ eu deito, eu rolo/ sou eu no seu colo/ você na minha mão”), dos cariocas Pedro Luís e Jade Beraldo, “Estranha toada” (“minha garganta repele o que trazes nos dentes/ arrepiando verdade nos pelos da nuca”), do pernambucano Martins, e “Boca” (“a boca foi feita pra morder, a boca foi feita pra beijar/ e pra lamber, a boca foi feita pra chupar”), do também carioca Felipe Rocha. “Achava que podia ousar sexualidade, porque é bom também acender os espíritos”, afirma, citando o desejo de contato físico que a pandemia inviabilizou. Na mesma levada, ri da selfie que publicou por engano em setembro, mostrando o pênis ereto: “Você sabe que eu nunca tive esse tipo de pudores, né?”.

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Foto: Divulgação/Marcos Hermes

Os 80 anos chegam com a voz em forma, e Ney sabe que sua geração tem mudado conceitos sobre envelhecimento, de Bob Dylan, Roberto e Erasmo Carlos (que também fizeram 80 anos em 2021) até Paul McCartney, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Mick Jagger e Chico Buarque, que completarão 80 nos próximos anos. Do mesmo modo, ele sabe do papel que teve na abertura de caminhos para a expressão livre de diversas sexualidades, hoje trilhados por Pabllo Vittar, Filipe Catto, Johnny Hooker, Bemti, Jaloo, Rico Dalasam, Gabeu e muitos outros.

Na entrevista a seguir, Ney fala do desrespeito que enfrentou por parte de apresentadores de TV como Chacrinha e Carlos Imperial e compara os dias atuais com os tempos da ditadura militar e o coronavírus com a pandemia do HIV, que atingiu em cheio a sua e outras gerações nos anos 1980 e 1990.

O modo como você concebeu o disco novo tem a ver com o que aconteceu nos últimos dois anos?
Ele é resultado dessa coisa da gente preso dentro de casa. Teve um momento que achei que estava preso dentro do corpo, não era nem dentro de casa apenas. Acabei fazendo um trabalho mais romântico. Com três exceções, é um disco romântico. Mas não determinei que seria isso. Quando vi o resultado, disse: é, é um disco quase inteiro romântico.

Como é estar preso dentro do corpo?
Foi a pandemia que fez isso, ela que me botou trancafiado dentro do meu corpo. Não era só dentro de casa. Eu precisava fazer alguma coisa para me livrar disso, e me livrei. A arte e a música têm esse poder. Eu estava tão louco sozinho aqui, dentro de casa, que botava mantras e ficava dançando para ver se me tiravam daquela coisa horrorosa que chegou a ser. Agora está mais calmo, mas já esteve horrível. Quanto mais se tomar vacina mais vai acalmar. Tenho muito medo que as pessoas saiam correndo para botar a vida em dia antes da hora.

Você já tinha ficado tanto tempo sem fazer shows antes?
Não, nunca tinha ficado. Já fiz um show em São Paulo, foi muito bom para mim, para os músicos, vi a plateia feliz. Mas foi tudo feito com muito cuidado. Agora tenho shows marcados até junho do ano que vem.

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Foto: Divulgação/Marcos Hermes

Voltando ao disco, as três exceções são as músicas dos autores mais jovens?
Sim, “Boca”, “Faz um carnaval comigo” e “Estranha toada”. Achava que poderia ousar sexualidade nesse disco, porque é bom também acender os espíritos. Isso ainda faz parte da nossa vida e da nossa realidade, né? Espero que logo a gente possa retomar essas coisas todas (ri) e se exercitar de novo. Porque eu te confesso, virei quase um padre.

Mas teve a famosa selfie…
Ah, aquilo foi um acidente de percurso. No final, eu estava até me divertindo com a história, mas tomei um susto na hora que vi para quem eu tinha remetido. Queria tirar, e as pessoas começaram a me telefonar para avisar e não me permitiam chegar lá para retirar. Aquilo foi me dando uma aflição, durou uns dez minutos. Ah, mas também você sabe que eu nunca tive esse tipo de pudores com nudez, né? Claro que eu não faria isso intencionalmente no Instagram, mas se quiserem me ver nu tem lá o livro da Vânia Toledo (Homens – Ensaio, de 1980). Não tenho problema nenhum de ter posado nu. Não posaria agora porque não é… Não é, não é.

Seria mais uma quebra de tabu.
É, mas não, não me interessa fazer isso mais, ficar nu em revistas ou em livros. Já fiz. E fiz quando não era permitido, né?

Sua geração está redimensionando o que significa a terceira idade?
Tenho consciência disso e tenho consciência de que as pessoas estão já começando a entender que a velhice não é… Por exemplo, eu fiz 80 anos. Eu, quando me olho, dentro da minha cabeça, não tenho 80. Não sei o que é, não sei o que tenho que fazer para ter 80 anos. Continuo vivendo como eu era. Claro, tenho essa possibilidade porque tenho saúde. Essa percepção me favorece. E de que a velhice não é um drama. E que a velhice esta muito dentro da cabeça da gente. E que é possível você, com 70 ou 80 anos, estar na ativa na vida. Não parei de trabalhar ainda e não pretendo parar.

Ouvindo o disco e escutando sua voz agora parece miraculoso como ela está preservada e em forma. Existe segredo para isso?Não, não tem segredo nenhum. Não sei mesmo, não sei. Que bom. As pessoas me dizem que (eu) falando isso fica evidente, eu não me ligo nisso.

“Aquilo (a selfie) foi um acidente de percurso. No final, eu estava até me divertindo com a história, mas tomei um susto na hora que vi para quem eu tinha remetido”

Você passou a quarentena sozinho em casa?
Sim, estou sozinho mesmo. Moro sozinho. Mas tenho alguns amigos, a gente já começa a se ver, a se encontrar. Um dia desses fomos ao cinema ver um 007. Mas ter tomado as três doses da vacina dá a segurança de não ir parar na UTI, apenas.

E a questão política por trás da pandemia?
Não, não me fale nessa tristeza toda. Nossa, nunca imaginei ver isso no Brasil de novo. Não é nem uma repetição, é uma outra coisa, tão ruim quanto.

Você disse “de novo”, vê semelhanças com o passado?
Não, vejo que há uma tentativa de ter semelhanças, mas não há. É outra coisa, tão ruim quanto era, só que não é a mesma coisa. Fica tudo pior com o comandante do país achando que é uma gripe, quando não é uma gripe.

Esse grupo que está no poder tem um desejo repressivo que os militares também tinham, e você enfrentava. Eles têm menos poder que os militares?
Acho que ainda não têm. Mas acho que não terá, não terá tempo para isso. Mas é a intenção, né?

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Foto: Divulgação/Marcos Hermes


Essa onda de artistas trans mostra que eles estão conseguindo se expressar mesmo assim? São todos filhotes de Ney Matogrosso?
Isso agora existe, e vai ter que se conviver com isso. No meu entender, o normal é conviver com todas as maneiras de expressão humana. Fico feliz de não ter sido em vão toda a minha exposição. Embora eu não seja trans ou travesti, sei que atuei no comportamento. Mas sabe que na época eu dizia “não, não é agora”. Não é agora, não é para já, mas vai ser. Eu sabia que aquilo que eu tinha feito ali provocaria uma liberação. Eu estava liberado, e a minha liberação ia influenciar outras pessoas. Isso de hoje nós nunca vimos antes. Eu via uma influência minha sobre outras pessoas, no Cazuza um pouco, no Paulo Ricardo um pouco, mas não era uma coisa maciça.

Você acompanha essa nova geração musical?
Não estou preocupado em colher fruto de nada, mas acompanho. Não vou te dizer que sei o que cada um canta, mas sei, sim, o que está acontecendo. Não vivo dentro de uma bolha. Preferia não citar nomes, porque toda vez que faço isso tem problema. Sempre vai escapar alguém que deveria e não está.

E se eu perguntar, por exemplo, o que você acha da Pabllo Vittar?
Sim, sim. Tem outros também, não são tão famosos quanto Pabllo, mas estão aí, no panorama. Já tive alguns encontros para fotos, faço com todos que me pedem. Faço, claro, encontro, trago na minha casa, não tem problema. Não digo muitos, mas alguns já vieram.

Você tem reclamações sobre a biografia?
Não. Tem algumas coisinhas, mas não vou entrar nesse mérito, sabe? Qual é o santo da cabeça? É um, lá está outro. Mas isso não é significativo. São coisas assim, bobas. Sempre falei tudo, não sei o que é inédito ali.

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Foto: Divulgação/Marcos Hermes


Cita pessoas com quem você se relacionou, atores da Globo, de Fellini.
Ah, mas o cara já morreu (ri). Não quero botar ninguém em boca de matilde, não gosto que façam comigo e não gosto de fazer com outras pessoas. Mas desses que já morreram eu falo, não tenho vergonha de nada que fiz. Pelo contrário, sou livre. Eu não tiraria alguém do armário, é uma coisa que não se faz. As pessoas têm que ter o direito de saírem se quiserem. Acho ótimo que possam falar e isso não atrapalhe a vida delas, como não atrapalhou a minha. Claro que tinha que pular muitos obstáculos por causa disso, inclusive com Chacrinha, Carlos Imperial. O que Carlos Imperial queria eram R$ 2.000 por mês para parar de falar mal de mim. O que é isso? Não tinha que alimentar esse louco. Eu sabia que o Chacrinha falava mal de mim, aí parei de ir no programa. Um dia pensei: pô, o Chacrinha está velho, daqui a pouquinho ele morre, vou voltar a ir. Eu adorava ir no programa dele. Acho melhor não ter ressentimentos. Isso foi uma coisa que trabalhei na minha vida. Eu tinha ressentimento de muitas pessoas, e não tenho mais de ninguém.

Quando e por que isso mudou?
Fui tomando tanta porrada da vida, fui vendo tanta morte, tanta coisa, que comecei a refletir sobre essas coisas da vida. E também entendendo, Chacrinha tinha um motivo, porque a censura estava proibindo as chacretes. Carlos Imperial, não, era escrotidão mesmo.

Esse tipo de desrespeito acontecia dentro das gravadoras?
Não. De gravadora, pelo menos claramente, nunca observei. Eles eram estranhos, um bando de gravadoras machistas, mas comigo não, se eu falar,é mentira. Falei abertamente antes da existência das gravadoras na minha vida. Já era tarde, eles não tinham que falar nada. Não me ocultei, porque não queria jamais ter que viver me escondendo ou submetido ao medo de descobrirem alguma coisa da minha vida. Eu sempre disse isso: antes que falem de mim eu já falo. Não tenho rabo preso.

“Ainda não notei nada de ruim por ter 80 anos”

Você viu a exposição da fotógrafa Madalena Schwartz sobre os anos 1970, os Dzi Croquettes, os Secos & Molhados?
Sei quais são as fotos, adorei fazer. Ela perguntou: “Você dança para mim?”. “Danço, é claro”. Vesti o figurino dos Secos & Molhados, ela tinha me pedido para fazer com a roupa do show. Era uma senhora composta, achei interessante ela estar interessada por pessoas e assuntos tão opostos. Aí você entende, era uma senhora toda contida, mas dentro dela tinha loucura, e usou a fotografia para por a loucura para fora.

Será que as senhoras gostarem tanto dos seus shows têm a ver com isso?
Certamente. Observei a chegada dessas senhoras no Bandido (1976), o show mais ousado da minha vida, até tapa-sexo eu trocava em cena. Um dia eu estava chegando no teatro e vi uma senhora bonita, de cabelo grisalho, bem vestida. Ela disse: “Então é você que está enlouquecendo as mulheres?” (risos) Estou? Eu nunca tinha ouvido isso, fico feliz de saber.

Não era libertador também para os homens?
Eu recebia cartas de homens, meu Deus do céu. (risos) Diziam que tinham que se preparar para ir me assistir. Eu pensava: mas o que será se preparar? Não entendia exatamente do que se tratava.

Você viveu duas pandemias, é possível comparar os dois vírus?
A Aids foi estigmatizada, diziam que era um “câncer gay”, coisa que absolutamente nunca foi. Não dá para comparar, porque pelo menos na Aids você podia abraçar e beijar as pessoas e não era contaminado. Esta, de agora, você não pode nem encostar a mão na pessoa. Agora é para todos, todos tiveram que ver de perto. Essa é a grande diferença desta praga que está aqui. Eu não acreditava no que diziam sobre a Aids, mas não podia ir para a chuva. Se bem que eu já tinha andado na chuva, era tarde para querer me poupar. Imagina quantas pessoas conheci, com quem transei, que morreram disso? E eu não tive. Não tem explicação.

A pandemia atual atinge seu círculo também?
Muita gente, muita gente. Os primeiros foram meus amigos médicos, sempre tive amigos médicos. Foi caindo um atrás do outro. Mas todos que conheço se ergueram e continuaram a trabalhar. Tenho enorme admiração por essas pessoas que vão para a linha de frente e não recuam nem ficando doentes.

Existe algum lado ruim em ter 80 anos?
Não. Se eu falar isso, estou inventando. Ainda não notei nada de ruim por ter 80 anos. Agora, mais uma vez reafirmo, tenho 80 anos, mas tenho uma saúde muito boa, e isso faz uma enorme diferença.

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