Clássico dos Racionais MC’s, “Sobrevivendo no inferno” ganha novo livro
Álbum recebe análise minuciosa em série que já destacou discos de Jorge Ben e Chico Science & Nação Zumbi.
Não é a primeira vez que me pego às voltas com um texto sobre o Racionais MC’s. Não é a primeira vez que tenho a mesma dificuldade ao iniciar um texto. Escrever sobre o que marcou sua vida profundamente é mais caro, mais sensível, mais íntimo. Por isso, peço desculpas desde já pela primeira pessoa adotada nestas linhas. Escrever sobre os quatro pretos mais perigosos do Brasil é resgatar, para mim, um pedaço da periferia que habitei, um pedaço da minha vida. E escrever, mesmo que não diretamente, sobre Sobrevivendo no inferno é um diálogo com o menino de 11 anos que ouviu “Diário de um detento” e “Mágico de OZ” pela primeira vez e entendeu ali, naquelas ruas estreitas do Parque Modelo, na Zona Norte de São Paulo, que periferia é periferia em qualquer lugar e que a fórmula mágica da paz exige muitos elementos. Que quando era office boy perto da Casa de Detenção, no Carandiru, via — apressado, católico — as pernas penduradas em calças beges nas janelas.
Racionais MC’s me trouxe um universo de reflexão sobre o mundo ao meu redor, me trouxe compreensão, me fez entender meus privilégios, me fez notar as fronteiras sociais tão marcadas no chão entre as quebradas e o centro expandido, me abriu os olhos para outros olhares, outras leituras. Me ensinou sobre a cocaína e o crack (pelos quais os manos morrem rapidinho, sem lugar de destaque). Não há dúvidas de que o rap salva vidas e de que muitas delas mudaram depois de ouvir Sobrevivendo no inferno.
Lançado em 1997 com 200 mil cópias vendidas em um mês, o disco foi um fenômeno, ainda mais de uma gravadora independente, como a Cosa Nostra. Segundo o próprio grupo, o álbum vendeu cerca de 1,5 milhão de cópias oficialmente e mais de 4 milhões no mercado paralelo, os famosos camelôs. A primeira vez que ouvi, inclusive, foi de um CD pirata de um amigo na Avenida Ultramarino depois da aula. Um tempo depois, adquiri meu próprio pirata do Sobrevivendo no inferno que guardo com carinho até hoje.
Foto: Divulgação
Bom, depois deste longo preâmbulo vamos ao motivo de estarmos aqui neste espaço batendo teclas sobre um dos mais simbólicos álbuns do rap nacional. Arthur Dantas Rocha, um punk incorrigível e nerd de rap, lançou o livro Racionais MC’s: Sobrevivendo no inferno, uma edição da coleção O livro do disco (Cobogó), um compilado de obras que se presta ao mergulho em obras seminais para a música como Clube da Esquina (de Lô Borges e Milton Nascimento) e A tábua de esmeralda (de Jorge Ben). Em 2018, a Companhia das Letras publicou as letras do disco — leitura obrigatória no vestibular da Unicamp, ao lado de títulos de Luís de Camões e Olavo Bilac —, em formato de livro.
Em 168 páginas, Dantas se aprofunda nas 12 músicas, minuciosamente descritas com explicações sobre seus samples. Dá para saber, por exemplo, que neste álbum o quarteto cortou trechos de músicas de Isaac Hayes, Curtis Mayfield, Marvin Gaye, War, entre outras gigantescas referências. No livro, há também uma grande escavação pelo contexto social, político e racial que este disco nos traz.
E nesta leitura racial é importante ressaltar a bibliografia do livro. “Tive um cuidado consciente de trazer autores negros e a voz feminina. Esse disco está muito imbuído de negritude e não tinha como tratar disso numa perspectiva só de branco, seria ridículo e racista”, conta Dantas. “É aquilo que Angela Davis fala: não basta você não ser racista, você tem que ser antirracista. E esse antirracismo epstemológico passa por ter essa procura por vozes negras para falar sobre o Racionais.”
Em 12 músicas, Sobrevivendo no inferno traz muitos olhares, muitas versões. A de quem é abordado pela polícia, a de quem está atrás das grades, a de quem viveu o crime, a de quem foi baleado, a de quem viu o surgimento do crack na cidade de São Paulo, a de quem clama por São Jorge e mostra que em qualquer lugar as periferias se assemelham.
Mano Brown fotografado por Bob Wolfenson para a ELLE Volume 3
Com uma vivência no punk rock, Dantas faz um paralelo muito interessante sobre a obra do quarteto da periferia de São Paulo com a banda estadunidense de Washington Fugazi. “A postura super rigorosa que o Fugazi tinha era basicamente a mesma do Racionais: ter gravadora independente, uma relação distanciada com os grandes meios de comunicação e dar mais acesso aos veículos que eram próximos – no caso dos Racionais, as rádios comunitárias, e do Fugazi, as rádios universitárias e fanzines punks da época –, a postura de confrontar nos shows os próprios fãs. Nunca houve uma relação confortável, eles sempre botavam os fãs para pensarem.”
Entre recortes de jornal, memórias de show e conhecimento in loco, Dantas se prepara há mais de 20 anos para este livro. “Eu tinha plena convicção de que estava preparado para isso. 80% ou mais do material de pesquisa que usei tenho guardado desde 1997”, diz. “Acho que nunca tive tanto cuidado em nada do que fiz na minha vida como tive com esse livro. Foi um trabalho bem meticuloso, porque sabia que era uma responsa muito grande falar de um disco que é tão grande e tão visceral para a minha geração”, explica Dantas. “É um trabalho de um fã que queria que o Racionais saísse maior desse livro do que eles já são.” E depois de uma esfomeada leitura dá para dizer que o objetivo foi cumprido com êxito. Bom, não sei se o Racionais MC’s, para mim, saiu maior do que era, mas o livro trouxe uma infinidade de camadas sobre a obra que ela já se torna indispensável para quem gosta de rap, para quem não gosta de rap e para quem quer entender um pouco mais sobre o Brasil.
Se você ainda não ouviu com atenção Sobrevivendo no inferno e a obra do Racionais MC’s, faça-se um favor e dê o play nos álbuns. Talvez não seja algo tão surpreendente quanto foi para o menino de 11 anos na Zona Norte, mas pode destampar um universo que está só a alguns quilômetros e muros de distância.
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