Twitch extrapola o mundo dos games e cai na música

Confira como artistas como Marcelo D2 e Daniel Ganjaman têm usado a plataforma de streaming para novas investidas criativas.


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Apesar da proximidade com o toca-discos, Daniel Takara, mais conhecido como Daniel Ganjaman, faz questão de dizer que não é DJ. O produtor musical paulistano explica que, em condições normais, só costuma discotecar com músicos com quem já tem um trabalho pré-desenvolvido, sendo o exemplo mais icônico disso sua relação com Criolo. Mas neste caótico 2020 Ganjaman se reinventou: no desassossego de nunca ter ficado tanto tempo sem tocar, ele se tornou um híbrido de anfitrião e DJ, além de desbravador de uma plataforma que está sendo dominada pela cena musical brasileira: a Twitch. “Entrei nessa viagem para colocar um som para as pessoas curtirem”, diz sobre o começo do canal, quando ainda não tinha ideia da repercussão e relevância que o Baile do Ganja tomaria.


Tudo começou com a reformulação simbólica do Festival AmazôniaS, que propunha um intercâmbio cultural entre Norte do país e São Paulo, para uma edição online. Como Ganjaman era um dos curadores, ele foi convidado para fazer o set de abertura do evento. “Peguei o equipamento de um amigo que tem uma empresa de locação. Toquei na sexta nesse festival, achei divertido; toquei no sábado no meu canal do YouTube, achei divertido, então, toquei no domingo. Na segunda-feira, liguei para o meu amigo e ele me contou que estava com 13 pares de toca-discos e mixers parados porque não estava rolando nada”, relembra. “Falei para ele deixar o equipamento comigo que eu tinha o plano de discotecar em casa e, quando aparecesse alguma live patrocinada ou alguma coisa assim, eu entraria com uma grana para ele.”

Nesse primeiro final de semana, ele recebeu algumas notificações do YouTube sobre direitos autorais – suas lives não poderiam ficar arquivadas. No final de semana seguinte, tiraram a apresentação do ar enquanto ele tocava. O YouTube deixou de ser uma opção. Mas, com uma discussão tão complexa e delicada como direitos autorais dentro da música, que plataforma seria acolhedora para milhares de DJs (que foram dos primeiros profissionais a pararem suas atividades e, muito provavelmente, estarão entre os últimos a voltar à ativa)?

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O produtor musical Daniel Ganjaman: o Baile do Ganja pega fogo.Foto Alexandre Gennari

Quem procura acha. Nas pesquisas, Ganjaman flagrou uma movimentação curiosa da cena musical gringa dentro da Twitch. Em abril, a plataforma já abrigava a gravadora Mad Decent, o canal de música eletrônica Insomniac, os sets do Questlove, do The Roots, e DJ Spinna, para citar alguns. Além do site ser munido de mecanismos que dialogam com a movimentação de uma cena musical, como encaminhar seu público de um canal para o outro – ótimo para a troca de DJs –, o produtor musical assegura que a qualidade de áudio é infinitamente superior às demais plataformas disponíveis. Quanto aos direitos autorais, como é recente a popularização de músicos e musicistas na Twitch, originalmente uma rede de streaming de videogames, a densa discussão ainda está em aberto. Por hora, as lives não são derrubadas e os trechos em que são identificadas infrações às políticas de direitos autorais são silenciados. Foi assim que, entre final de abril e começo de maio, o Baile do Ganja migrou para a Twitch, o que colocou seu criador como pioneiro dessa transição no Brasil.

Atualmente, toda edição tem uma média de 3.000 pessoas online. Kuzola, da PONGO, já é considerada uma faixa hit do rolê. Daniel diz que o nome não é muito a sua cara, mas “Vai ter Baile do Ganja?” virou uma marca dos finais de semana em isolamento social e ele viu muito carinho nisso. Sem sua intervenção, foram criados logo da festa, Instagram, Twitter e grupo de WhatsApp, onde são compartilhados links de videochamadas no Zoom para curtir a live junto. No segundo domingo de agosto, mais de 4.000 pessoas estiveram online, o chat ferveu e a chamada do Zoom reuniu gente do Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Distrito Federal e São Paulo.

Com a fidelização do público, Ganjaman abriu uma vaquinha para buscar contribuições voluntárias e o resultado tem surpreendido. “De um dia para o outro a vaquinha juntou 4 mil reais. Agora está em quase 22 mil. Eu já consegui pagar uma grana para o cara que alugou o equipamento, dar mil reais na mão de cada um da equipe técnica do Criolo e tenho uma grana para daqui a pouco fortalecer mais uma galera. Isso provavelmente vai continuar”, conta.

O sucesso do Baile do Ganja foi muito interessante para a própria Twitch, pois houve uma movimentação orgânica na rede de quem já acompanhava o Ganjaman no YouTube, justamente no momento em que a plataforma buscava aquecer sua presença dentro da cena musical no Brasil. Marcelo D2, BayanaSystem (com o canal Máquina de Louco) Pitty, Filipe Ret, Criolo, Kondzilla, Laboratório Fantasma e Jaloo foram alguns nomes convidados pela plataforma para criarem seus canais por lá. Entre as atrações, há lives abertas e também conteúdo fechado, exclusivo para assinantes.

“A gente foi empurrado para o futuro por causa dessa pandemia, não tem como a gente voltar atrás agora: as lives vieram para ficar. Isso me deixou muito empolgado para fazer alguma coisa interessante na Twitch”, conta Marcelo D2. “Essa sensação do faça-você-mesmo, de que qualquer pessoa pode se comunicar, isso é muito bonito. Tudo que eu pensar em uma TV, posso fazer ali dentro [na Twitch].”

A proposta da plataforma é a de ter vários canais de música, que conversem entre si, com total liberdade criativa em cada um deles. Criolo tem desenvolvido uma produção de conteúdo, Ganjaman está discotecando. Inquieto, D2 propôs uma grade de programação completa: ele cozinha no Almoço dos Crias, faz entrevistas no 4a às 20, discoteca (algo que não fazia há mais de 20 anos) no Baile dos Cria, além de compartilhar o processo de criação do seu novo disco, Assim Tocam Os Meus Tambores, no programa de mesmo nome.

“Talvez esse seja o processo criativo mais interessante de todos que já fiz na vida”, declara D2. Entre lives de composição e gravação de voz, a troca no chat é constante, com 2.000 pessoas online dando sugestões, propondo ideias. Laços são criados entre os usuários e com o próprio D2, que hoje tem amizade e fala no WhatsApp com pessoas que conheceu na plataforma.

A estratégia é muito simbólica: criar um disco colaborativamente durante o isolamento social. E a coletividade não se restringe às conversas com o público, mas também na quantidade de participações de outros músicos: Kiko Dinucci, Nave, Don L, Criolo, Liniker, Juçara Marçal, Rodrigo Ogi e Akira Presidente são alguns dos nomes que acompanham D2. No radar do hip-hop brasileiro, o álbum desponta como um dos projetos mais ousados e vanguardistas dos últimos tempos. Não à toa, o músico tem se emocionado bastante – na Twitch os fãs tem marcado um placar de quantas vezes o artista já chorou durante o processo do novo álbum. “Comecei a fazer rap quando tinha 20 anos, estou com 52. Há 32 anos eu não imaginava que iria fazer música por tanto tempo e ainda estaria sendo uma pessoa relevante na cena, na vida das pessoas, no meu discurso, sabe? Para mim isso é muito importante”, reflete.É em torno desse senso de comunidade que a cena musical da Twitch tem girado: um espaço de acolhimento e fortalecimento, para que as pessoas se conectem de uma nova forma. Para D2, seu novo disco não poderia existir se fosse criado sozinho. “A ideia do Assim Tocam Os Meus Tambores é subverter os tambores: tambores serem a minha voz, a Twitch, as pessoas, os toca-discos. O tambor é um mensageiro”, diz ele.

Da mesma forma, o Baile do Ganja vai muito além do DJ set. “Eu troco ideia, tem toda uma interação, falo sobre vários assuntos que estão dentro da minha natureza de persona pública”, explica Ganjaman. Tanto ele quanto D2 demonstram uma preocupação em criar um ambiente seguro nessa interação, livre de discursos de ódio. No canal do Ganjaman, a mensagem é direta: “Zona Antifascista! Qualquer comentário de ódio será BANIDO do canal!” A música é importante, diz ele, mas a comunicação que está sendo estabelecida é fundamental.

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