Um vício inerente à Graça Infinita

Em uma animada troca de áudios com o tradutor Caetano Galindo, nosso repórter Pedro Camargo mergulha na obra máxima de David Foster Wallace e conta por que essa não é uma leitura como outra qualquer.


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Ilustração: Gustavo Balducci



Não vou mentir: trabalhar na ELLE Brasil tem, sim, as suas mordomias. Vez ou outra, chega aqui em casa um lançamento de beleza, um creminho chique, umas ampolas inovadoras, umas paletinhas de sombras etc. Mas, não é exatamente isso que faz o dia a dia dessa redação (temporariamente virtual devido à pandemia) tão especial. Para mim, é a possibilidade de ouvir, aprender e, na mesma medida, ser ouvido. A ELLE está sempre aberta às paixões mais calorosas de quem trabalha aqui. Nem sempre elas têm muito a ver com moda ou com beleza (apesar de, no fim das contas, quase sempre esbarrarem nesses assuntos. Eles são muito mais profundos e poderosos do que nós mesmos, que trabalhamos diariamente com isso, imaginamos).

Dessa vez, tinha acabado de terminar de ler (e não conseguia parar de falar sobre) o mastodôntico romance do norte-americano David Foster Wallace de 1996,
Graça Infinita, traduzido pelo magistral Caetano Galindo e publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2014. Com mais de mil páginas (sendo 136 delas de propositalmente longas notas de rodapé) o livro é considerado uma obra-prima da literatura “pós-moderna”, termo que o próprio autor repudiava. Durante a reunião de pauta, pedi para escrever sobre essa leitura, levar tudo isso de algum jeito para ELLE. E não é que deixaram? Para fazer inveja aos fanáticos por literatura, imagine o privilégio que é poder conversar com o tradutor do livro que você acabou de ler para escrever sobre o assunto… Um deleite.

A leitura, no entanto, foi muito menos prazerosa do que está sendo encarar o desafio de escrever sobre ele. Mas, calma! Não estou dizendo que o livro é ruim. Pelo contrário, é talvez a obra mais extraordinária que já tive a alegria de enfrentar. Contudo, o verbo é esse: mais do que ler, enfrentar. Sim, evidentemente, primeiro pela extensão da coisa. As mil páginas assustam e demoram. No meu caso, seis meses seguidos por um hiato de sei lá quantos meses e depois mais três deles para finalmente conseguir virar a última página. Que aliás, no meio do caminho, já não era mais de papel.
Apelei para o Kindle. Só de pensar em carregar o bloco laranja de um quilo e meio já me dava preguiça. Depois, porque os conteúdos ali destrinchados em uma narrativa frenética e distópica são de uma ordem ontológica. E a verdade é que a gente nunca sabe o que pode acontecer com quem se permite ser atravessado por ideias que retomam a mais básica das mais básicas dúvidas da nossa aventura enquanto humanos: “o que é ser?” Lispector, Rosa, Garcia Marquez, Borges, Pynchon e Delillo (entre outros) que o digam.

Graça Infinita impressiona nessa presciência do que viria a ser a tecnologia do entretenimento ou do entretenimento de tecnologia que vemos hoje.” Caetano Galindo

Mencionando Elena Ferrante, Galindo, em nossa agitada troca de áudios do Whatsapp, diz que a literatura de Foster Wallace é 100% verdadeira. “E, como tudo aquilo que é verdadeiro, ela é muito perigosa, sim. Não é um livro que você leia como entretenimento e guarde a partir dele alguma coisa divertida e pronto. Ele vai cutucar assuntos adormecidos. Coisas que você não queria resolver agora ou que você nem sabia que tinha que resolver.” O argumento se agrava quando lembramos que, no dia 12 de setembro de 2008, o autor cometeu suicídio. “Isso não ajuda em nada a nossa defesa de que este é um livro que vale a pena ser lido. Mas, é um fato incontornável da fortuna crítica da obra. O que se lê é uma grande investigação da condição humana, uma imensa tentativa de entender o que é isso. Como ele mesmo disse, cavar fundo dentro de si para encontrar algo que brilhe e, então, trazer isso à tona.”

Nesse caminho, o próprio Wallace parece ter se perdido em certo momento. Graça Infinita, portanto, é um livro desestabilizador. E, como já anunciei lá no começo do texto, não pretendo mentir por aqui e, por isso, preciso avisar que eu mesmo me peguei agradecendo ao universo por ter tido a sorte de me encontrar com essas páginas somente agora, aos 26 anos, com uma década de terapia nas costas. Tivéssemos nos esbarrado antes, não sei muito bem com que equilíbrio a minha cabeça sairia da leitura. “A obra do Wallace me alterou profundamente. Graça Infinita é o grande símbolo de tudo isso. O livro é perigoso, mas eu também acredito que ele é fundamentalmente uma força positiva. De aquiescência. Embora não seja a tonitruante afirmação do ‘sim’ para a vida de Ulysses de James Joyce [também traduzido para o português brasileiro por Galindo], Graça Infinita carrega algo similar. É um livro muito mais torturado, vem de uma consciência torturada, mas é um grande ensinamento sobre a busca da beleza, do sentido, da ternura e até do amor no meio desse desespero.”

Eu poderia reservar um parágrafo para explicar um pouco mais sobre a problemática família Incandenza (protagonista da obra), a Casa de Reabilitação Ennet, a Academia de Tênis Enfield, a Organização das Nações da América do Norte (a ONAN, um conglomerado multinacional em que se misturaram Estados Unidos, Canadá e México no futuro criado por Wallace) e as dezenas de personagens que você vai encontrar em Graça Infinita. Prefiro te deixar na curiosidade para conhecer o intrigante superdotado Hal, a misteriosa radialista mascarada Madame Psicose, o alcoólico em recuperação Don Gately… De minha parte, adianto somente o inescapável tema que, em qualquer uma das mil páginas deste livro, aparece de uma forma ou de outra: a ideia do vício como o enfrentamento de uma condição humana eternamente insatisfeita e que empurra estas almas a procurarem fora de si algo que preencha o buraco de fundo infinito que sentem existir no próprio peito.

 

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Capa da edição brasileira de “Graça Infinita”, publicado pela Companhia das Letras, em 2014

 

Graça Infinita é estruturado, segundo DFW, como um triângulo de Sierpinski. Ou seja, um fractal. E, como todo fractal, ele se multiplica, fica cada vez mais complexo, mas nunca se resolve. Parece algo quase impossível de se materializar em literatura. Mas a escrita do autor, para além de ter marcado a história pelo seu tom descrito por Galindo como “uma navalha entre o altamente erudito e o absolutamente popular”, dá conta de em seu formato realizar esse feito. Se pensarmos que esta é uma obra sobre a nossa incapacidade de conceber a ideia do vazio, isso é levado às últimas consequências. Está na construção dos neologismos, na costura incerta das frases, nos parágrafos ora cambaleantes, ora vertiginosos, nos capítulos esfrangalhados pela narrativa e, por fim, na obra, como um todo, incompleta. “Wallace toma muito cuidado para que o livro acabe 15 minutos antes de tudo explodir ou se resolver.” Ou seja, para ler Graça Infinita é preciso dar adeus a ideia de “começo, meio e fim”. Do contrário, você pode acabar como os espectadores do filme de mesmo nome, Graça Infinita, que existe dentro do livro, dirigido pelo estranhíssimo James O. Incandenza. Por ser tão cativante, o longa-metragem captura quem o assiste para sempre: de modo que, ao não conseguir desgrudar os olhos da tela, essas pessoas vão morrendo desidratadas em frente aos seus monitores. Acredite, ao terminar de ler o livro, seu primeiro impulso será o de recomeçá-lo. Ironicamente, como tudo o é quando se fala de Wallace, o livro pode gerar um efeito de droga irrecuperável, extremamente viciante.

Na história, o tal filme está na iminência de cair nas mãos erradas, o que poderia gerar uma pandemia do entretenimento. E é aí que 1996 parece se grudar em 2020. O presidente da ONAN, Johnny Gentle, por exemplo, para Galindo (e para mim também) é assustadoramente parecido com Donald Trump. “Ele começa como uma caricatura do Reagan, mas, nos nossos tempos atuais, ele é o Trump. Não tem como fugir. O Graça Infinita impressiona nessa presciência do que viria a ser a tecnologia do entretenimento ou do entretenimento de tecnologia que vemos hoje. É um livro ainda do século 20, dos primórdios da internet. E a Netflix está lá, o binge-watching está lá. A cultura da celebridade na internet está lá”, lista e vai além: “Não é tanto a previsão do fato, mas a previsão do espírito. De como a gente seria mastigado por essa busca por entretenimento, por esse descolamento da realidade, por essa artificialização da vida. Nesse sentido, é realmente espantoso”.

“Esse livro tem poderes…”

Quem me segue no Instagram já leu essa história e, por isso, peço desculpas por ter que repeti-la para aqueles que a conhecem. Pule um parágrafo, não faz mal se esse é o seu caso. Mas, para quem não me conhece, rolou um bafo na minha infância, mais especificamente na sexta série, que percebi somente em julho deste ano que ainda havia sequelas graves desse trauminha…

“Uma então colega de sala entrou no meu e-mail (associado ao saudoso MSN) e disparou uma mensagem para todos os meus contatos. Nela, passando-se por mim, essa colega escreveu que eu decidi assumir ser gay e descreveu uma série de ‘obscenidades’ que, supostamente, eu fazia às escondidas em favor de homens mais velhos do que eu. Amigos do meu pai, ela escreveu. Na época, eu nem sabia direito o que era ser gay. Não tinha noção do que era sexo. O que sucedeu foi um ano terrível repleto de humilhações diárias que eu decidi atravessar em silêncio. Chorei pouco essa dor. Mas, anos depois, na sessão de terapia de hoje, consegui chorar as últimas lágrimas. Saiu uma bola de chumbo do meu peito. Uma sensação física de alívio. Parece que finalmente assentou na minha alma a ideia de que a minha própria perspectiva, o meu próprio entendimento de quem sou, também conta. Eu não sou tão somente o resumo do que dizem de mim, do que acreditam sobre mim”, escrevi na legenda de uma foto minha quando criança.

“É um livro torturado, vem de uma consciência torturada, mas é um grande ensinamento sobre a busca da beleza, do sentido, da ternura e até do amor no meio desse desespero”
Caetano Galindo

Antes disso, vinha discutindo Graça Infinita na terapia. A simples capacidade de continuar lendo já era algo avaliado pela minha terapeuta e por mim como algo diferente do meu padrão de comportamento procrastinador. Terminei de ler alguns dias antes da sessão em que, finalmente, chorei essas lágrimas atrasadas. Então, fico sem saber se foi o livro ou a terapia que me proporcionou essa catarse. Tendo a acreditar que foi uma combinação (muito privilegiada) das duas coisas. Porque, no fim das contas, é um pouco isso: Graça Infinita desestabiliza, ataca, cutuca, mas também salva. E a psicanálise também.

Decidi não reler o livro ao contrário do que pedia o ímpeto que tive ao terminá-lo. Decidi dar adeus à
Graça Infinita. Aliás, escrevo aqui como quem dá tchau. Nesse mix de análise e leitura me aproximei muito dessas condições vulneráveis dos personagens da obra. Só para não dizer que não falei de moda, assim como eles, parece que, durante a minha vida, até aqui, eu ficava tentando me encaixar em uma roupa que não servia em mim. Ficava me sufocando em colarinhos apertados demais, em calças de numeração incompatível com o meu quadril, em sapatos sem espaços para os dedos. Porque estar tão somente reduzido ao julgamento alheio é viver uma fração da vida que pode (e deve) ser vivida em sua completude. Os personagens de Graça Infinita, arrisco dizer, até mais do que o contexto distópico em que se inserem, arremessam de suas trajetórias ofegantes a noção de que, na verdade – apesar de vivermos em um mundo aparentemente muito diferente do deles –, somos muito parecidos. Eles caem em desgraça, na maioria das vezes, por tentarem se encaixar nesse guarda-roupa torturante. Por achar que são capazes de caber nos modelitos impostos, se enforcam neles. E é essa realização terrível, assustadora, que, paradoxalmente, nos afasta deles. Ou pelo menos, me afastou. A leitura nos dá essa chance. Essa saída. A vida, por sua vez e infelizmente, nem sempre. “Esse livro tem poderes…”, me escreveu Galindo quando o contei desse giro com minha psicóloga.

“Essa coisa de localizar ou centralizar o diagnóstico de uma condição problemática nessa sensação de falta, e no desejo como remédio a ela, tem um dado curioso. Ela parece ser uma busca que se move para fora do sujeito. Que vai no mundo buscar essa coisa. Mas, no fundo, ela acaba se transformando em um encarceramento do indivíduo dentro da sua própria cabeça, muito grosso modo. O diagnóstico oposto – o de que o desejo, então, é o problema – traz a proposta de dar-se por satisfeito das coisas como são. O que pode parecer uma postura muito racional e internalizada e estática, mas, ao mesmo tempo, ela envolve uma imersão, uma aceitação do mundo. É um negócio paradoxalmente estranho e estranhamente paradoxal.” E, eu adicionaria, surpreendentemente libertador.

Para fechar, duas pontuações a respeito da tradução de Caetano Galindo. A primeira é que, corajosamente, ele decidiu traduzir o título do livro (Infinite Jest) como Graça Infinita. “Jest”, do inglês, é algo mais próximo da piada, do chiste. No entanto, no português, apesar de “Graça” ainda carregar esse sentido, a junção “Graça Infinita” parece remeter a uma luz divina: uma benção, por assim dizer. Há quem o critique pela ousadia. Eu elogio. O próximo comentário, no entanto, peço para que só leia quem realmente já terminou de ler o livro… Ou não. Sei lá, você escolhe.

Alerta de spoiler

“Só queria notar um fracasso de tradução, portanto. Foi só uma aluna minha, a Ana Carolina Verna que, anos depois, apontou para o fato de que o livro termina com a expressão ‘way out’, querendo dizer ‘lá longe’. Mas, nesse sentido da condenação a uma internalidade, o livro termina com esse aceno para uma ‘way out’, ou seja, uma saída. Ele termina oferecendo essa saída. Embora ela esteja em um sonho, em uma alucinação, de novo, presa dentro da cabeça de alguém, ele parece acenar com essa única porta no fim. E eu não consegui manter isso na tradução. Na verdade, nem tinha reparado na relevância dessas duas palavras lidas dessa maneira. Então, fica esse último comentário apontando a minha própria falha”, disse Galindo ao finalizar o último “audião” de nossa conversa.

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