As metamorfoses dos irmãos Campana

Fernando e Humberto Campana abrem as portas de seu novo estúdio com exclusividade para a ELLE Decoration Brasil. Em um bate-papo emocionante e divertido, fazem um balanço dos 37 anos vividos no antigo ateliê e dão pistas do que está por vir.


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Humberto e Fernando Campana Foto: Thomas Tebet



Fernando é formado em arquitetura e do signo de Touro – muito ligado à terra, à família, às suas origens. Observador cauteloso e desenhista voraz, ele compõe imagens, colagens e filmes surreais, advindos de sua mente nada ortodoxa e avessa a regras. Humberto fez direito, mas nunca exerceu. Foi tomado pela fluidez, introspecção e liberdade, guiadas por seu signo solar e seu ascendente, ambos em Peixes. Nômade por natureza, ele ama explorar o desconhecido e enfrentar desafios, superando-os por meio de sonhos e insights que se traduzem em ideias multifacetadas. Tendo trabalhado juntos por exatos 37 anos em um pequeno e estreito ateliê no centro de São Paulo, Fernando e Humberto Campana acabam de se mudar para um novo espaço, maior, mais amplo e mais luminoso, para acolher a nova fase da dupla, em eterna metamorfose. Irmãos Campana, sim. Mas também Fernando e Humberto em suas individualidades. Os dois receberam ELLE Decoration Brasil no novo endereço para uma conversa exclusiva, que você lê a seguir.

 

Cadeiras com texturas e formatos variados, algumas cobertas por bichos de pelucia

Em sentido horário: poltrona Bolotas Apple, poltrona Aracnídeo, pufe Banquete, cadeira Lina, obra para a galeria Giustini/Stagetti, poltrona Banquete e mesa da coleção Ofídia.Foto: Thomas Tebet

Como foi sair do icônico estúdio de Santa Cecília, espaço onde vocês conviveram e criaram suas peças durante 37 anos de Estudio Campana? Fortes emoções?

Humberto – Foi uma viagem no tempo. Encontramos muitos desenhos, cadernos, suvenires e até protótipos esquecidos, como um espelho com moldura de pentes feitos de bronze, que fizemos para a Galeria O, de Roma, mas que não vingou. Um processo forte de reflexão de como eu era quando iniciamos a trabalhar lá e como eu estou agora, sabe?

Fernando – Para mim foi um processo de reorganização, de limpeza. Como lá o estúdio era menor, estava entulhado de coisas. A gente não conseguia ter uma visão do todo. Precisávamos realmente de mais espaço. Mas foi também um processo que tocou em muitas memórias. No final dos anos 1990, eu morei lá por um tempo.

Essa mudança representa o fim de uma época, né? E, como em todo fim de ciclo, há o luto.

Humberto – Estou tão concentrado em ocupar esse novo lugar que a ficha ainda não caiu, não processei, mas você tem razão. Não deixa de ser um luto. Eu sinto certa melancolia. O Fernando morou lá numa fase muito difícil para nós. A gente estava prestes a desistir, a fechar o estúdio, porque ninguém entendia o que a gente criava.

Fernando – Aí um dia a Paola Antonelli (curadora de design do MoMA de Nova York) me liga e pergunta: “Você não está feliz com a exposição?” Eu não entendi nada e perguntei se ela estava trazendo uma expo do MoMA para o Brasil. E ela responde: “Passei um fax um mês atrás, convidando vocês para exporem no MoMA junto com Ingo Maurer”.

Humberto – Isso aconteceu em meados de 1998. A gente estava tão deprê, tão desacreditado, que nem tinha papel na máquina de fax. Esse convite não havia chegado a nós.

 

homem de barba atr\u00e1s de uma estrutura vazada amarela

Humberto atrás da cadeira de balanço Cocoon, da coleção Objets Nomades para a Louis Vuitton.Foto: Thomas Tebet

Foi um ano difícil, mas também o ano da grande virada, de Santa Cecília para o mundo! Quais peças foram para o MoMA nesse début?

Fernando – A Cadeira Jardim, o Biombo Escultura, a mesa e o sofá Papelão, uma estante de aço que hoje faz parte da exposição permanente do Museu da Casa Brasileira e uma cadeira de cordas, que, depois dessa expo, passou a ser produzida pela Edra e virou nossa icônica Cadeira Vermelha.

Quanto o lócus influencia o processo criativo de vocês?

Humberto – Eu sou um eterno nômade. Não paro. Minha cabeça é muito ansiosa, e eu preciso me mover. Para fugir da monotonia, eu crio, invento coisas, preciso ocupar minha cabeça para me manter relativamente são. Não importa muito onde estou. Eu sempre gostei de viajar, conhecer o novo. Acho que aprendi com nossos pais, que rodaram o Brasil com a gente em um fusca.

Fernando – Eu já tenho mais resistência a viagens, a mudanças. Eu sou como um gato. Até eu dominar um novo espaço, leva tempo. É minha característica. Sou do signo de Touro, muito ligado às minhas origens. Tanto que tenho passado muito tempo em nossa casa de Brotas (SP), onde nascemos. Isso me faz um bem danado.

 

Cadeira de madeira esculpida

Cadeira Quebra-Cabeça, edição limitada para as galerias Friedman Benda e Carpenters Workshop.Foto: Thomas Tebet

Alguma ideia surgiu do processo de ocupar o novo estúdio?

Humberto – Desde o início do ano, eu preenchi três cadernos com desenhos, ideias. Já imaginando a mudança, a alegria, o otimismo de ir para um lugar novo, uma nova fase. Isso causou uma erupção dentro de mim, e precisei registrar esse momento de forma inconsciente. Sua pergunta me faz pensar nisso, na alegria de viver, de criar contaminado pela mudança. Muitas ideias estão por nascer.

Suas peças sempre foram pautadas pelo aspecto artesanal, tanto as produzidas no estúdio como as desenvolvidas para grandes marcas, como Edra, Alessi, Louis Vuitton e Firma Casa. Este ano vocês apresentarão no Salão do Móvel em Milão a primeira coleção Campana para Paola Lenti, uma marca que trabalha com materiais high-tech. Como aliaram o processo criativo ao utilizar alta tecnologia e produção industrial sem perder o DNA Campana.

Humberto – Foi um presente que a vida nos ofereceu. No início de 2021, a Paola nos contatou, propondo trabalhar com os descartes do processo produtivo da marca. Aí ela nos mandou três caixas de restos variados de materiais incríveis e o processo começou assim, sabe? Nossa estagiária Juliana começou a desfiar as cordas. Desfiamos tudo, criamos retalhos e, com eles, novos padrões, misturando muitas cores, que viraram um novo material.

Fernando – Nós costumamos trabalhar com materiais mais simples, menos nobres, tentando adaptá-los, ressignificá-los. Agora tivemos a chance de dar uma nova pele, uma nova vida a um material tecnológico, mas de forma artesanal.

Então esse novo material vem da costura dos retalhos e das cordas desfiadas, e tudo feito à mão? Quem faz isso na Itália?

Humberto – Algumas das nossas peças são de fato feitas à mão por uma ONG de imigrantes, artesãos vindos da Síria, da Bolívia, contratados pela empresa de Paola Lenti. Um trabalho social muito bacana. E, com base em nossos estudos para um novo tecido, a Paola desenvolveu a tecelagem das cordas desfiadas em forma de tubo, como largas meias que revestem os braços e encostos da coleção, que nomeamos de Metamorfosi. O artesanato e a alta tecnologia juntos e misturados.

Essa coleção promete fazer muito barulho em Milão!

Humberto – Pois é. Eu sempre quis trabalhar com uma marca que se comunicasse globalmente para contaminar outras empresas, mostrar que nosso trabalho de ressignificação dos materiais pode ser feito em grande escala. Isso é bacana. Fazer a economia circular numa empresa de repercussão global, como a Paola Lenti.

Hoje a palavra ressignificar tem sido tão usada, e muitas vezes de forma leviana. Mas vocês dão novos significados a materiais há 37 anos, criando não só design, mas verdadeiras obras de arte. Vocês se sentem mais designers ou mais artistas?

Fernando – Para além de mobiliário, a gente faz cenografia, figurinos para balé, joias, esculturas, telas, colagens. É muito bom poder caminhar em várias estradas sem culpa e sem ser tachado disso ou daquilo. Claro, desde que a gente sinta o desafio, uma possibilidade, veja um crescimento nosso, e social também. É o que vale.

Humberto – Até hoje não sei o que eu sou. Acho boa a liberdade de poder transitar. Esse é o prazer de ser um criativo. Eu deixei a advocacia em busca dessa liberdade.

Se pudessem voltar na história, mudariam alguma coisa?

Humberto – Eu acho que estudaria arquitetura. Eu amo arquitetura. Acho que conseguiria ver um espaço com mais rigor. A arquitetura é testemunha da sua mediocridade ou da sua genialidade. Eu não fiz por causa da matemática, pois na época não existia computador. E tínhamos a ditadura militar também, que dificultava muito as artes.

Fernando – Eu teria sido ator, além de arquiteto. Acho que conseguiria exprimir melhor as histórias que se passam na minha cabeça. É incrível como eu atraio as pessoas. Todos vêm falar comigo. Tenho a habilidade da palavra. Cada vez que saio de casa, para mim é um filme. O problema é que, à noite, muitas vezes eu não consigo desligar o projetor. (risos)

 

Fernando e Humberto (com a cabe\u00e7a coberta por retalho recebido de Paola Lenti para o desenvolvimento de nova cole\u00e7\u00e3o).

Fernando e Humberto (com a cabeça coberta por retalho recebido de Paola Lenti para o desenvolvimento de nova coleção).Foto: Thomas Tebet

Um sonho ainda não realizado?

Fernando e Humberto – O Parque Campana, em Brotas!

Fernando – Muito significativa essa nossa volta a Brotas com o parque, vendo a cidade mais preparada para receber nossa contribuição, com mais consciência das tradições, da vegetação, da conservação dos rios. Porque se virar tudo soja ou canavial, a região vai virar um deserto.

Humberto – Nosso sonho é colocar esse parque de pé, com atividades que envolvam escolas, a comunidade local e também a comunidade artística. Ser um lugar de referência para a residência de artistas. Queremos também criar lá uma escola de nossas culturas vernaculares. Essa escola para mim é vital.

Será um Domaine de Boisbuchet (centro internacional de pesquisa e educação em design e arquitetura que funciona em uma fazenda no sul da Franca) brasileiro?

Fernando – Não temos essa pretensão, porque é difícil captar recursos, ter toda a infraestrutura necessária. Estamos trabalhando com um biólogo para reconstituir a vegetação original. Os animais estão voltando para lá: macaco, cachorro-do-mato, lontra, tucano, tamanduá. A gente já viu pegadas de onça-parda e até uma jiboia. Prova de que a natureza está se regenerando.

Humberto – As pessoas falam que estamos construindo um novo Inhotim. Não tem nada a ver. É uma coisa mais modesta, outra pegada. Não queremos turismo, um lugar cheio de gente, porque tem animais vivendo no parque. É um lugar de silêncio. Queremos unir botânica, arte, educação, design e cura. Imagino um lugar holístico. Eu adoraria que fosse um espaço que a pessoa entrasse muda e saísse calada, sabe. Para se encontrar consigo mesma.

Esta reportagem foi publicada originalmente no volume 1 da ELLE Decoration Brasil. Para comprar seu exemplar, clique aqui.

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