Novos ares no centro de São Paulo

Uma onda criativa vem tomando conta do coração da metrópole paulistana. Restaurantes, bares, lojas, galerias de arte, moradias e hotéis invadem a região e trazem de volta o prazer de frequentar um bairro que respira história, registrado aqui pelas lentes de Mauro Restiffe.


salão de bar em pb com luzes saindo das mesas e se cruzando em direção ao teto
Foto: Mauro Restiffe



“Quem tem medo do centro tem medo da liberdade”, dizia Paulo Mendes da Rocha. Ele falava sobre um jeito de viver que o paulistano parece ter esquecido. Sobre viver em prédios abertos para a rua, sem grades, e não ficar preso em sua própria casa. Sobre andar de ônibus e metrô e não ficar detido dentro dos carros por horas. Sobre conviver com a diversidade, a maior riqueza de nosso país. Arte, gastronomia, música, boemia. O centro é sobre tudo isso. A liberdade também.

Paulo conjecturava que o paulistano tem uma fixação por segurança e acaba se aprisionando. Esse movimento de “se fechar” veio acompanhado de uma migração para novas áreas da cidade: a Avenida Paulista, a Faria Lima e a Berrini. Com isso, depois de muitas décadas de ouro, o centro entrou em decadência. Mas está sendo reativado. De um lado, arquitetos, artistas, chefs, galeristas e cineastas apostam novamente na região. Do outro, construtoras e empresários investem no retrofit.

Janaina Rueda foi uma das responsáveis por atrair um público que, inicialmente, não teria outro motivo para ir ao centro, a não ser uma boa gastronomia. Foi visionária quando abriu o Dona Onça no Edifício Copan, em 2010. E, nos anos seguintes, insistiu na região: junto com o marido, Jefferson, abriu a Casa do Porco, o Hot Pork e o Porco Real, um frigorífico familiar que vende alimentos de pequenos produtores. Não podia ser diferente. Ela nasceu, cresceu e se estabeleceu profissionalmente ali. Chegou a ter uma barraca de tapioca na Praça da República e a trabalhar no mundo underground. “Uma classe artística e intelectual já frequentava o centro nos anos 1920 e 30, no entanto tudo era muito elitizado. A diversidade que vemos hoje começou nos anos 1980. É interessante notar que foi pelo Vale do Anhangabaú que a periferia começou a tomar essa região: a turma do skate, do grafite, os skinheads, os punks, os roqueiros e depois os sambistas”, lembra.

Outro nome da gastronomia que apostou na região é Olivier Anquier, que mora na Praça da República há 15 anos. Foi no topo do Edifício Esther, um marco da arquitetura moderna no Brasil, que ele abriu o Esther Rooftop, com o sócio e chef, Benoit Mathurin. Rueda e Anquier foram os pioneiros, e o movimento se intensificou. Ano passado, o chef Raphael Vieira abriu o restaurante 31, na Rua Rego Freitas, com o intuito de explorar os processos de transformação do alimento e provar que os vegetais podem ser os protagonistas de um jantar memorável.

Também em 2021, Pablo Inca e Rafael Capobianco inauguraram o Cora, que oferece uma releitura urbana da gastronomia caipira com uma vista para o Minhocão. No mesmo edifício, outros estabelecimentos têm agitado a região: a livraria Gato sem Rabo, especializada em títulos escritos por ou sobre mulheres, e a HOA, galeria de arte de Igi Lola Ayedun, que só representa artistas negrxs.

 

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Escadaria do Edifício Esther, que abriga o Esther Rooftop.Foto: Mauro Restiffe

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Salão do restaurante 31, do chef Raphael Vieira.Foto: Mauro Restiffe

 

 

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Vista do Cora, restaurante comandado por Pablo Inca e Rafael Capobianco.Foto: Mauro Restiffe

Se a Pivô, associação cultural de pesquisa e exibição de artes plásticas, encabeçou a vinda da comunidade artsy para o Copan, Bel Coelho trouxe mais foodies ao abrir o Cuia Café e Restaurante no mesmo salão da livraria Megafauna – que reúne títulos de autores negros, mulheres e indígenas. “O fato de estar no centro e na livraria faz com que o Cuia tenha um público mais plural. Pesquiso os biomas brasileiros há muito tempo e estava na hora de a frequência no salão dialogar com a mensagem do Brasil que quero passar”, reflete a chef, que deve abrir uma versão do restaurante Clandestino na área. Ainda no Copan, vale comer no Paloma ou tomar um drinque no Fel.

 

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Espaço cultural Pivô, no Copan.Foto: Mauro Restiffe

Se a região nunca deixou de ser movimentada, por que tantos espaços abandonados? A fuga de empresas e moradores pode ser explicada, de forma simplificada, por dois marcos, um estrutural e outro regulatório. Primeiro é importante lembrar que a cidade viveu um dos maiores booms populacionais do mundo. Em 1870, São Paulo era um vilarejo de 30 mil habitantes e o salto para 1 milhão demorou menos de 40 anos. “Para atender essa população, a cidade, que era estruturada sobre trilhos, passou a adotar o sistema modal sobre rodas porque as linhas de ônibus eram mais baratas e rápidas de implementar. Ela acabou crescendo para a Zona Leste e o centro”, explica o ativista urbano Philip Yang. Outro ponto importante é uma mudança de regulamentação no plano diretor: a partir dos anos 1970, passou a ser mais barato deslocar as empresas para a Avenida Paulista.

No entanto, a qualidade de vida e a mobilidade se tornaram prioridade e muitos empresários estão ajudando a transformar os bairros centrais não apenas em um lugar cool para passear, mas na região ideal para viver e trabalhar. O principal nome à frente desse movimento é Guil Blanche, fundador da Planta.Inc, incorporadora que conta com seis empreendimentos na região. A ideia é aproveitar a qualidade arquitetônica que o bairro oferece, transformando espaços de origem comercial que estavam vazios em residências assinadas por escritórios de peso, como MMBB, André Vainer e Metro Arquitetos. Entre os projetos, está o Edifício Renata Sampaio Ferreira, projetado por Oswaldo Bratke e inaugurado em 1956, que deve abrigar um hotel.

 

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Fachada do Edifício Renata Sampaio Ferreira, projetado por OswaldoBratke e inaugurado em 1956.Foto: Mauro Restiffe

Guil faz parte de um grupo que compreendeu o valor da qualidade urbanística e arquitetônica da região e, por isso, investe no retrofit. A Metro é responsável também pela renovação do edifício que liga as ruas Sete de Abril e Basílio da Gama, onde se estabeleceram os escritórios da Companhia Telefônica Brasileira (CTB), sucedida pela Telecomunicações de São Paulo (Telesp) e, recentemente, pelo grupo Telefônica Brasil. Bruno Scacchetti, sócio fundador da Scacchetti Consultoria e Desenvolvimento Imobiliário, está à frente do projeto e pretende unir o prédio da década de 1930 a dois outros, que contarão com apartamentos, áreas de lazer, um shopping no térreo e uma praça aberta, que permitirá o acesso entre as ruas e as edificações.

 

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Edifício dos anos1930, que foi sede daTelesp e passará por retrofit assinado pela Metro Arquitetos.Foto: Mauro Restiffe

Last but not least, a McBasile é outra incorporadora com o pé na área. Um dos projetos fica ao lado da Escola da Cidade, uma faculdade de arquitetura e urbanismo, e terá a assinatura do Andrade Morettin Arquitetos Associados. Trata-se de um edifício comercial que, como todos os outros, terá um comércio no térreo. E quem vai ocupar o espaço será a Central Galeria, comandada por Fernanda Resstom. Arquiteta de formação, a galerista está hoje no subsolo do Instituto de Arquitetos do Brasil, a menos de um quarteirão dali.

Um dos principais responsáveis pela ebulição cultural na região, o prédio do IAB vai ganhar um novo bar no segundo semestre. Foi, em parte, por causa desse passado carregado de memórias que a galerista Jaqueline Martins migrou, em 2015, para um prédio industrial de 1945, a poucos quarteirões de distância. “Esse lugar dialoga com os artistas representados pela galeria. Eles têm uma relação íntima com as histórias do centro e do Clubinho (um grupo de artistas que se reunia no IAB, entre os anos 1940 e 70, para organizar exposições, debates e bebedeiras)”, revela a galerista.

Se o centro combina com arte, combina mais ainda com boemia. São muitas as histórias em que negócios, drinques e transgressão dançaram juntos. O Bar Infini abriu no meio da pandemia nos fundos do tradicional restaurante La Casserole, que disputa com o Almanara um espaço importante no coração dos amantes do centro. Desde julho, os paulistanos fazem fila na porta do Cineclube Cortina, um espaço idealizado por Marcelo Sarti, Paulo e André Vidiz e Rapha Barreto, que reune cinema, bebidas, shows e gastronomia em um antigo estacionamento.

 

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Bar Infini, nos fundos do La Casserole.Foto: Mauro Restiffe

 

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Almanara da Basílio da Gama.Foto: Mauro Restiffe

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Obras no Cineclube Cortina, inaugurado em julho.Foto: Mauro Restiffe

Impossível falar de centro sem Facundo Guerra, empresário que busca espaços abandonados para criar novos negócios. No segundo semestre deste ano, ele abrirá o Love Cabaret, no lugar do antigo Love Story. Com projeto de Maurício Arruda, o espaço promete oferecer apresentações de striptease, pole dance e shows de drag. “O brasileiro, por causa da educação católica, é muito reprimido, mas nos últimos anos percebi que sexo e prazer ganharam outros contornos, mais dilatados. Por isso, pensei em criar um lugar dedicado ao corpo, às artes performáticas”, explica. Porém o empresário é categórico: “Apesar de democrático, o centro é também onde a desigualdade social fica mais latente. Não dá para falar dele sem falar de política pública, saúde e educação. Aqui é alta a sensação de insegurança. É preciso criar razões fortes para as pessoas voltarem a frequentá-lo”, pondera. Motivo, agora, é que não falta. O primeiro passo é vencer o medo… e ser livre.

Esta reportagem foi publicada originalmente no volume 1 da ELLE Decoration Brasil. Para comprar seu exemplar, clique aqui.

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