O futuro segundo Le Corbusier

Polêmico, inquieto, provocador, o franco-suíço nascido no século 19 definiu como poderiam ser as cidades e as moradias da era contemporânea. Mais que um arquiteto, ele foi um pensador da arquitetura moderna.


o arquiteto Le Corbusier
O arquiteto Charles-Edouard Jeanneret-Gris, conhecido como Le Corbusier. Foto: Hulton Archive/Getty Images



São apenas cinco princípios, mas eles mudaram os rumos da arquitetura e a colocaram no trilho da modernidade. Tão simples quanto geniais, eles foram reunidos pelo arquiteto de origem suíça naturalizado francês Le Corbusier em uma espécie de manual que garantiria aos projetos o espírito futurista digno do novo século. 

São eles: pilotis, os famosos pilares que sustentam a edificação e deixam o térreo aberto e acessível; interior com o mínimo de paredes divisórias; cobertura sem telhado, com jardim, solário ou piscina; janelas em fita, que se estendem como fendas horizontais rasgadas no concreto; e fachada livre. 

Juntos, esses fatores se tornaram a espinha dorsal de sua obra. Embora o arquiteto tenha organizado essa proposta em 1923, só em 1929 ela foi aplicada na prática, na construção da Villa Savoye, no vilarejo de Poissy, nos arredores de Paris. Somam-se a esses aspectos, a crueza dos materiais, como o concreto, e os processos construtivos à mostra – algo impensável até então. Qualquer semelhança com a arquitetura modernista brasileira não é coincidência.

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Foi também em 1929 que Corbu, como ficou conhecido, esteve no Brasil pela primeira vez, para dar uma série de palestras no Rio de Janeiro e em São Paulo, a convite de Paulo Prado, cafeicultor, mecenas e um dos incentivadores do movimento modernista, que havia desembocado na Semana de 1922.

Corbusier voltaria em 1936, quando prestou consultoria a Lúcio Costa e a Niemeyer no projeto do Ministério da Educação e Saúde, no Rio (então capital do país), e, mais tarde, em 1962, quando foi chamado para projetar a embaixada da França em Brasília (que nunca saiu do papel). 

Mas a primeira viagem foi de longe a mais agitada. Na plateia de suas conferências, estavam intelectuais e arquitetos do movimento moderno, como Gregori Warchavchik e Rino Levi. Lucio Costa bem que tentou ouvi-lo nas sessões cariocas, mas não conseguiu entrar no salão lotado. Mario de Andrade e Manuel Bandeira figuravam entre os maiores entusiastas de sua passagem pelo Brasil. 

Mas sua visita ainda é lembrada por outro encontro. Le Corbusier chegou no mesmo navio que a cantora e dançarina franco-estadunidense Josephine Baker, que vinha para uma série de apresentações. Foi encantamento à primeira vista. Entre uma palestra e um espetáculo, não se desgrudaram. Em São Paulo, foram convidados para uma festa na casa de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, o casal ícone do modernismo nacional. E os dois voltaram para a Europa juntos, três semanas depois, no navio Lutetia. Mas essa é outra história…

Le Corbusier: Globetrotter e autodidata

Nascido em 1887, em Chaux-de-Fonds, uma pequena cidade suíça movimentada pela indústria relojoeira, Charles-Édouard Jeanneret-Gris assinava pinturas como Le Corbusier, mas só oficializaria esse pseudônimo nos anos 1920, quando começou a escrever artigos para a revista L’Esprit Nouveau. Dizem que adaptou o apelido do sobrenome do bisavô materno, Lecorbésier, mas a palavra também remete a corvo, corbeau em francês. 

Corbusier sempre esteve envolvido com arte e literatura. Começou seus estudos com o objetivo de se tornar escultor e entalhador, mas seu talento chamou a atenção de um professor, que o encaminhou para a arquitetura. Durante um tempo, pintou com o artista plástico Amédée Ozenfant, com quem chegou a escrever um manifesto anti-cubista. Em parceria com Pierre Baoudoin, elaborou tapeçarias. E ainda desenhou os murais do seu escritório e do Pavilhão Suíço, que projetou. 

Autodidata, fez uma longa viagem de formação pela Europa Central e Oriental ainda jovem. Dos 20 aos 23 anos, passou por dezesseis cidades italianas, visitou Budapeste e Viena, foi até Paris e depois seguiu para a Alemanha, onde se aprofundou na ligação entre arte e produção industrial, um tema que sempre o atraiu, muito por influência da cidade em que cresceu (aos 15 anos, foi premiado pelo desenho de um relógio).

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Curioso e apaixonado pela industrialização, chegou a projetar um carro compacto, o Minimum, em 1928 – muito antes do primeiro Volkswagen e do Deux Chevaux francês, que ficaram célebres como modelos populares.

Durante a temporada na Alemanha, trabalhou no estúdio do arquiteto Peter Behrens, onde teve a oportunidade de acompanhar dois gigantes da arquitetura alemã: Walter Gropius e Mies van der Rohe. 

Na sequência, voltou à estrada. Incluiu a então Tchecoslováquia, a Sérvia, a Bulgária, a Romênia, a Turquia e a Grécia no roteiro. As aquarelas, desenhos e anotações que fez durante esse grand tour encheram cadernos e abasteceram sua criatividade ao longo de toda sua carreira. 

Muito do arquiteto que Le Corbusier se tornou tem suas raízes nessa fase de descobertas. Foi nessas viagens que começou a prestar atenção no contraste entre os grandes espaços coletivos e os reduzidos, individuais; a admirar a proporção clássica do Renascimento, a beleza da geometria e a distribuição de volumes e a cogitar o uso da paisagem como um elemento da arquitetura.

Tudo isso se materializou em textos, projetos, aulas, palestras. Em 1923, publicou o livro Vers une Architecture¸ reunindo suas propostas de construção com alma modernista. Defendia a ideia de que a casa era uma máquina de morar e chamou as ruas curvas de “trilhas de burro”, argumentando que as retas, sim, eram para os homens.

Seu jeito de pensar carregava um certo desprezo pela forma de construir de tempos passados. Não à toa seus artigos provocavam estranhamento. Certa vez, causou furor ao descrever Estocolmo como um lugar de “caos assustador e monotonia entristecedora”, afirmando que gostaria de “limpar” a capital sueca com concreto, vidro laminado e aço, para terror dos conservadores.

As cidades de Corbu

Pensar a urbanização era uma de suas obsessões. A partir de seu escritório instalado na rua de Sèvres, em Paris, Le Corbusier rodou o mundo fazendo conferências e estudando o funcionamento das cidades. Fez isso em Esmirna, na Turquia, e em Santiago, capital do Chile. 

Foi esse interesse pelo tema que o levou a criar o plano Cidade Contemporânea, para 3 milhões de pessoas, propondo aumento da densidade, da área arborizada e dos meios de circulação, e as casas Monol, Domino e Citrohan, protótipos de modelos que poderiam ser reproduzidos em série.

Em 1935, estruturou outra proposta de urbanização, a Cidade Radiante, em que organizou as moradias pelo tamanho das famílias, e não pelo seu poder aquisitivo, como na anterior. Criou ainda a escala Modulor, uma proporção matemática baseada na altura de um homem em pé com o braço estendido para cima, lembrando o Homem Vitruviano, de Da Vinci. Era sua forma de buscar a harmonia de medidas dentro dos projetos.

Ao longo de sua trajetória, propôs uma nova linguagem, sempre rompendo com dogmas do passado. Baseada em concreto armado, sua arquitetura é voltada para a industrialização, tem bases funcionalistas e se apoia em formas geométricas, com espaços amplos e claros. 

Ao todo, entre 1905 e 1965, construiu 79 edifícios distribuídos pelo mundo – sem contar outros tantos que ficaram na prancheta. Entre suas obras mais representativas, além das villas (uma delas, a de Shodhan, foi erguida em Ahmedabad, na Índia), estão a Capela Notre Dame du Haut, em Ronchamp, na França; o Palácio da Assembleia, em Chandigarh, na Índia; o Pavilhão Suíço e a Casa do Brasil, que são duas das 23 residências estudantis internacionais da cidade universitária de Paris; o convento de La Tourette e a Unidade de Habitação de Marselha, a mais famosa entre os inúmeros blocos residenciais que ergueu, uma solução criada para enfrentar a crise de moradia que assolou a Europa depois da Segunda Guerra Mundial. 

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Seriam necessárias linhas e mais linhas para incluir todos os seus trabalhos. Mesmo maduro, Corbusier mantinha seu espírito irrequieto, de aprendiz. Quatro anos antes de morrer, ao receber o prêmio do Instituto dos Arquitetos Americanos, em 1961, disse: “As grandes coisas são feitas de uma infinidade de pequenas coisas, e as pequenas coisas sucedem-se indefinidamente todos os dias, de manhã à noite… Diariamente, a vida é feita de perseverança, coragem, modéstia e dificuldades. Vou confessar uma coisa: eu vivo na pele de um estudante”. 

Segundo a Galeria Patrick Seguin, que tem algumas peças de Corbusier em seu catálogo (sim, ele também desenhou móveis e luminárias, sua chaise longue é inesquecível, assim como a poltrona Grand Confort, ambas desenhadas com seu primo Pierre e Charlotte Perriand), seus pontos de vista visionários e seus planos urbanos progressistas o colocaram à frente do movimento moderno na década de 1920, enquanto na década de 1930 ele se tornou um explorador mais complexo e cético. “Mudou frequentemente de posição, servindo como um velho mestre da arquitetura moderna e como líder imprevisível e carismático para os jovens”. A exata medida de um gênio.

Para saber mais e ver fotos das obras de Le Corbusier:

Fondation Le Corbusier

Galeria Patrick Seguin

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