Com quantas janelas se faz uma manifestação? Para quem acompanhou movimentos criados no início da pandemia, como o Projetemos, a pergunta pode se referir às ações colaborativas com frases de protesto projetadas das janelas dos apartamentos nas laterais dos prédios vizinhos. Mas só isso não seria suficiente para ser um ato político relevante: por mais projeções que houvesse, elas ficariam restritas a ser vistas pela vizinhança de cada região. Nesse caso, a manifestação só ganha alcance quando essas imagens caem nas redes. São elas as outras janelas onde passamos cada vez mais tempo a ver o mundo, mediado por filtros sobre os quais muitas vezes não temos nenhum controle.
A ideia de que as janelas virtuais substituíram as reais, arquitetônicas, foi bastante evocada no início da internet, quando a mesma palavra passa a ser usada para nomear recursos como o sistema operacional da Microsoft. No livro The Virtual Window: From Alberti to Microsoft (MIT Press, 2006), Anne Friedberg, professora de estudos críticos e de mídia da University of Southern California, resgata essas associações, fazendo uma analogia entre a criação da perspectiva na pintura às janelas virtuais que surgem com as telas do cinema, da televisão e do computador. Um de seus argumentos é de que as metáforas das janelas como representação passaram a ser usadas também para as telas – uma substituição das anteriores e outra forma de moldura de como o mundo chega até nós.
O contexto da pandemia trouxe mais uma camada para essas relações, quando as janelas das casas voltam a ganhar uma função importante. Por outro lado, só ficamos sabendo dessas organizações coletivas quando elas alcançam outros espaços por meio das imagens que vão circular em redes sociais. As duas janelas, arquitetônicas e digitais, parecem finalmente ter encontrado uma função complementar ao mediar o que vemos.
O primeiro post no perfil Projetemos, no Instagram, é do dia 19 de março – uma foto com a frase “Lave as mãos. Pense coletivo. Defenda o SUS” projetada na empena cega de um prédio, sem localização definida. Assim começou um movimento coletivo que substituiu os antigos panelaços por “janelaços” – manifestações feitas das janelas de casa e reunidas na hashtag #projetemos. Não que as panelas tenham deixado de ser usadas nos protestos caseiros de março e abril, mas diferenciar os dois termos é uma forma de demarcar um território político no uso das palavras. Para Giselle Beiguelman, artista e professora da FAU-USP, que adota essa expressão no livro recém-lançado Coronavida: Pandemia, Cidade e Cultura Urbana (coleção Outras Palavras, vol. 8, 2020), os janelaços são o contrário do tipo de protesto muito associado ao impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, quando “protestar pela janelas era uma opção de quem decidiu não ir às ruas”, escreve. Nos primeiros meses da pandemia, ao contrário, essa era a opção mais sensata, ou talvez a única possível.
O Projetemos é um bom exemplo recente para pensar como o Instagram passou a ser usado para manifestações de arte e ativismo, com todas as limitações e potencialidades dessa rede. Há uma série de iniciativas semelhantes que encontraram nesse contexto novas condições de visibilidade e disseminação para ampliar a função da arte à esfera social, mesmo tendo que lidar com formas de controle desses meios, centralizados em grandes monopólios da tecnologia. Atualmente com cerca de 2,7 mil publicações, a hashtag #projetemos, por exemplo, ganhou um alcance significativo para uma iniciativa que surge de maneira informal e passa a articular pessoas em todo o país, muitas que nunca tinham usado antes um projetor.
Já entre as limitações está a dificuldade de organizar e encontrar esse material um tempo depois. Afinal, além da função imediata de atingir um número maior de pessoas, as redes se transformam também em um grande arquivo de imagens relevantes para entender acontecimentos contemporâneos. O grande problema é que essas não são as funções principais definidas pelas empresas que as controlam, por isso os mecanismos de busca e visualização nem sempre são priorizados. Tente, por exemplo, localizar no Instagram a imagem com a frase “ele não” com um arco-íris projetado nas letras da segunda palavra, que viralizou como um símbolo do movimento contra o então candidato Jair Bolsonaro, em setembro de 2018. Encontrar a peça gráfica criada pelo estudante Militão Queiroz, entre mais de 1 milhão de postagens com a hashtag #elenão, vai exigir vários minutos e muita paciência.
Pensar em uma solução de como mapear e visualizar essas imagens para que não se percam é uma das propostas do Calendário Dissidente, projeto voltado para a catalogação da memória gráfica sociopolítica do país desde a posse de Bolsonaro, em janeiro de 2019. Idealizada pela designer Didiana Prata e desenvolvido no Centro de Inteligência Artificial do Inova USP, como parte de uma pesquisa de doutorado na FAU-USP, a plataforma captura e publica diariamente seis imagens mapeadas de seis hashtags (entre elas, a #projetemos) com maior número de curtidas no Instagram. A grande vantagem é poder acompanhar a evolução delas buscando pelos meses ou dias – sem precisar passar tanto tempo carregando postagens mais antigas, como acontece quando procuramos algo nessa rede.
Embora seja possível visualizar hashtags pela ordem cronológica – algo bem mais democrático do que a organização do feed por algoritmos, adotada pelo Instagram em 2016 – essa é uma busca pouco eficiente. No caso de hashtags como #mariellepresente, com quase 300 mil publicações, é uma missão inglória encontrar posts mais antigos.
Redes e espaços públicos
Outra hashtag que integra o Calendário Dissidente é o #CóleraAlegria, um dos projetos mais interessantes por disseminar um vocabulário estético-ativista contrariando os discursos moralizantes que passaram a dominar as redes. A ação colaborativa, idealizada por artistas e outros profissionais da cultura, começou a se articular nos protestos de 2016, mantendo a função igualmente importante de ter uma presença nos espaços públicos. Cartazes, bandeiras e estandartes que incorporam imagens e textos com mensagens como “Democracia, que horas ela volta?” são produzidos coletivamente para ocupar tanto as ruas quanto as redes, ramificando-se entre a hashtag principal e outras. Mesmo com a restrição dos espaços públicos como possibilidade de atuação, é possível ver essa relação em um projeto recente ocupando a fachada de um prédio em Belo Horizonte com bandeiras gigantes.
O diálogo com a cidade sempre foi um aspecto importante para o coletivo Bijari. Conhecido por intervenções urbanas em São Paulo, como as Praças (Im)possíveis – bicicletas de carga adaptadas com bancos de madeira, guarda-sóis e plantas, criando espaços de convívio em lugares inóspitos –, eles também passaram a se envolver em projetos para as redes no contexto de 2016, como a série de vídeos de até um minuto “Navalha Estética e Política”. Nos últimos meses, criaram peças gráficas, junto a outras redes colaborativas como Design Ativista e Desenhos Pela Democracia – ambos com hashtags mapeadas pelo Calendário Dissidente –, além do Projetemos. “Curiosamente, durante o isolamento, essa rede de contatos virtuais nos devolveu a possibilidade de atuação no espaço urbano. Com o Projetemos, as intervenções são feitas nas ruas de várias cidades brasileiras, incluindo esferas fora dos grandes centros”, comenta um dos integrantes do Bijari, Geandre Tomazoni.
O Tupinamba Lambido, do Rio de Janeiro, é outro coletivo de artistas que dialoga com a cidade com trabalhos espalhados na forma de lambe-lambe, com imagens que se estendem para o perfil do Instagram e hashtag homônimos. Assim como no caso do #CóleraAlegria, a prática remete à ideia de mídia tática que marcou os primórdios da cultura digital, usando artifícios do próprio meio pela lógica do desvio. Esta, por sua vez, tem uma origem anterior, como nas Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles, iniciado em 1970 e realizado até hoje em séries como o Projeto Cédula, com mensagens de protesto carimbadas em notas de dinheiro em circulação.
As Inserções são ainda uma referência da série Corpo Político (2019), do artista Ismael Monticelli, que nasce de um mapeamento nas redes de camisetas com mensagens de protesto. Além de catalogar em seu Instagram o resultado de uma pesquisa de 646 imagens – muitas encontradas em hashtags de manifestações, enviadas por conhecidos ou até sugeridas pelo algoritmo –, ele criou novas camisetas usando frases de dez artistas brasileiros cuja obra atravessou períodos de censura da ditadura e se insere no rótulo de arte política – uma delas é de Cildo Meireles, retirada de uma entrevista em que comentava sobre o compromisso moral do artista em não produzir obras puramente panfletárias.
Esse, talvez, seja um risco maior para os trabalhos artísticos que nascem nas redes, onde há pouco espaço para sutilezas, leituras ambivalentes ou imagens pouco “instagramáveis”, condições necessárias para uma boa arte. O que é ao mesmo tempo o grande potencial desses ambientes é também a maior armadilha: são eles que permitem maior visibilidade, requisito essencial para um trabalho acontecer, ao mesmo tempo que, para entrar nessa lógica, criam-se imagens mais ostensivas do que metafóricas – ressalva feita por Jacques Rancière no livro O Destino das Imagens (Contraponto, 2012). As imagens artísticas se inserem na segunda categoria – aquelas que nos farão refletir alguns segundos antes de correr o feed.
Um dos melhores perfis do Instagram a combinar imagem e palavra com mensagens políticas é de alguém que já fazia isso muito antes de essa rede sonhar em existir. Augusto de Campos, criador do movimento de arte concreta no Brasil, junto com o irmão, Haroldo de Campos, e Décio Pignatari, criou a conta Poetamenos em março de 2018. Passou a postar não só alguns de seus poemas visuais mais clássicos como a criar outros novos para a rede. Um dos melhores é O Mito (2019), em que dissolve a palavra no formato de um funil, deixando as letras ilegíveis ao final.
Seu envolvimento com o ambiente digital não é novidade: muitos de seus poemas antecipavam recursos hoje usados nos GIFs, por exemplo. Mas chamou a atenção sua habilidade em incorporar referências como a linguagem dos memes, que aparece em Contrapoema ABAPORAMA Ai que Saudade Eu Tenho de Brasília (Democrática) – uma foto com Dilma Rousseff e o casal Obama junto ao Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral, fazendo uma junção entre os nomes dos ex-presidentes.
Atualmente, o poeta tem postado mais poemas antigos e outras fotos de arquivo. Talvez porque a realidade política esteja literal demais para render imagens metafóricas.