Babado, confusão e gritaria!

Se antes o YouTube de beleza parecia inofensivo com seus infinitos tutoriais de maquiagem, os últimos anos provaram que a plataforma também pode ser cenário de brigas e escândalos. ELLE investiga a história do mercado de beauté para entender o que está por trás de todo esse drama.

Em inglês, a palavra “tea” quer dizer “chá”. No entanto, quando usada como gíria, ela significa, na verdade, “fofoca”. E, nos últimos anos, os grandes personagens do YouTube estadunidense de beleza estavam muito mais rendendo “tea” do que bons conselhos para escolher a base ideal para o seu tom de pele. Depois de angariarem milhões de inscritos na plataforma de vídeos do Google, os youtubers se tornaram celebridades gigantescas, e o mundo dos tabloides ganhou um novo e fértil terreno para explorar. O canal Tea Spill, dedicado exclusivamente a arquivar e recapitular todos os escândalos da comunidade de beauté, por exemplo, já tem quase 2 milhões de seguidores depois de ter coberto as novelas da vida real protagonizadas por criadores de conteúdo como Jeffree Star, Nikita Dragun, Tati Westbrook e James Charles.

Cada fala problemática, cada briga entre si, cada grande revelação desses youtubers ganha uma proporção tão grande que, por vezes, transcende a própria bolha dos aficionados por beleza. No passado, a confusão entre Charles e Westbrook, por exemplo, rendeu vídeos de mais de 40 minutos em ambos os canais e que, é claro, se tornaram os mais visualizados de toda a produção da dupla e repercutiram em dezenas de veículos consagrados do mercado jornalístico. Até o New York Times publicou uma reportagem sobre a briga. O que começou com uma propaganda feita por Charles para a empresa concorrente da marca de vitaminas de Westbrook desencadeou um arranca-rabo que quase culminou no cancelamento do primeiro. Só que, é claro, ele não ficou quieto frente às acusações da colega e virou o jogo voltando a opinião contra ela que, há três meses, não publica mais nada no YouTube.

De perto, ninguém é normal

Mas para entender o que está por trás dessa série de escândalos é preciso fazer alguns paralelos importantes. Antes da internet, os tabloides publicavam o que queriam e nem as celebridades nem os leitores tinham espaço na mídia para uma resposta. Em geral, matérias mentirosas e calúnias públicas causavam o estrago e, só depois de a bomba já ter explodido, é que a prestação de contas acontecia. E, provavelmente, entre as quatro paredes de um tribunal de justiça. Hoje, os tabloides têm redes sociais e, ao mesmo tempo em que isso gerou toda uma nova maneira mais rápida e voraz de veicular histórias privadas, aqueles que protagonizam essas notícias conseguem desmentir ou replicar o que está sendo dito. E, claro, quem lê também fala, opina, responde, republica, repercute… Ou seja, o cenário mudou e a sua nova versão parece ser o palco perfeito para confusões de tamanho giga e com vozes gritando de todos os lados.

De quebra, vale lembrar que quem se tornou famoso por causa da internet tem um elo diferente com seus fãs do que um grande ator de Hollywood ou uma estrela da música pop. “Eu tento separar a minha vida pessoal da minha vida pública, mas isso é muito difícil”, explica a youtuber brasileira Karen Bachini, que é especializada em tutoriais de beleza e resenhas de cosméticos e tem mais de 2 milhões de inscritos em seu canal. “Não gosto nem de chamar de fãs. Acho que, tanto para eles quanto para mim, a relação que a gente tem já é bastante pessoal. Então, quando acontece alguma coisa muito especial na minha vida, eu logo penso: ‘Quero contar para meus amigos’, como todo mundo. Só que, no caso, meus amigos estão na internet. Parece uma coisa louca, mas é assim.”

Mesmo que a maioria dos vídeos do canal de Karen seja dedicada ao tema da maquiagem e não a ela mesma, existe uma aliança não dita entre youtubers e seus seguidores. “No meio do tutorial, eu falo da minha vida. As pessoas me conhecem. É uma conversa, não tem jeito.” Ou seja, não é só pelo interesse no mercado de beleza que os espectadores da Karen clicaram no famigerado botão de “inscreva-se”. Eles gostam dela, do jeito dela, da história dela e, na medida do possível, querem estar o mais perto dela que puderem. Quem, para além de inscrito, também é membro do seu canal (com uma espécie de assinatura premium no valor de R$ 7,99 ao mês) tem acesso ao Discord, um software aos moldes do “bate-papo UOL”, como a própria Karen descreve, para que a audiência tenha uma via de contato mais direta com a youtuber. “Por lá, a gente tem até um programa que oferece consultas de acolhimento com terapeutas para os seguidores que estão precisando muito de ajuda nesse sentido”, conta. “Eu sou muito sincera quanto a minha saúde mental. Os meus inscritos sabem que eu trato com psicólogo, psiquiatra, com terapeuta holística… Até porque não é só youtuber que fica doente. Claro, quando as coisas acontecem na nossa vida, elas ganham uma proporção bizarra, mas qualquer pessoa que tenha um Instagram, participe de alguma rede social, está sujeita a passar por situações parecidas em menor escala. É a sina de viver no momento histórico que a gente vive”, opina.

Gladiadores da beleza

Para além da ideia de proximidade sob a qual as celebridades do YouTube de modo geral sustentam suas carreiras, o mercado da beleza tem o seu próprio histórico com a capitalização do drama. Em entrevista à britânica Dazed Beauty a diretora do The Makeup Museum, de Nova York, Doreen Bloch, explica que escândalos como os que estamos vendo hoje entre os grandes personagens da indústria de cosméticos não são novos. Segundo ela, o que mudou foi o tamanho da repercussão que essas brigas ganham nas redes sociais. “A beleza se vê facilmente no meio desses problemas porque ela, em si, está intrinsecamente ligada à performance. A autoexpressão é algo inerente à maquiagem. Por isso, faz sentido que o mercado voltado a esses produtos seja liderado por personagens fortes, audaciosos, ousados e que, não raro, arriscam tudo para se manter no topo.”

No século 20, período em que a indústria de cosméticos se consolidou, as norte-americanas Helena Rubinstein e Elizabeth Arden (ambas fundadoras de marcas de maquiagem homônimas) eram arqui-inimigas. As intrigas entre as duas gigantes empresárias da época renderam uma biografia (War Paint, escrita pela historiadora inglesa Lindy Woodhead, em 2003, e adaptada para um musical na Broadway com o mesmo nome, em 2017) e um documentário (The Powder and the Glory, de 2007). Outra briga histórica entre grandes players que roubaram a cena no decorrer da segunda metade do século passado foi a de Estée Lauder e Charles Revson, fundador da Revlon. Na sua autobiografia, Lauder diz que, “certa vez, Charles me disse que queria comprar o meu negócio e se tornar o Cadillac dos cosméticos. Eu respondi delicadamente que fiquei lisonjeada com a sua intenção, mas que, na verdade, eu é que queria comprar o negócio dele e, assim, tornar-me o Rolls Royce dos cosméticos. Ele simplesmente foi embora e não me respondeu. A guerra estava declarada. Me disseram depois que ele queria me destruir”, escreve. Andrew Tobias, o biógrafo de Revson, confirma a picuinha: “De todas as mulheres de sua vida, mesmo não tendo trocado duas palavras com ela, foi provavelmente Estée quem teve o maior impacto. Ela era a competidora que ele queria vencer e nunca conseguiu”, narra em Fire and Ice: The Story of Charles Revson (1976).

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Mas, para além de seus personagens “encrenqueiros”, a indústria da beleza é uma das mais competitivas do mundo. Nos anos 1920, com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e a ascensão do glamour de Hollywood, o uso da maquiagem se popularizou, tornando-se um símbolo de independência e autocuidado. Já na década de 1940, segundo o livro Enterprising Women: 250 Years of American Business (2005), mais de 40% das mulheres nos Estados Unidos já tinham o seu próprio batom e o usavam diariamente. E, segundo a pesquisadora Juliet Shor, existe um fenômeno chamado “o efeito batom”, sobre o qual ela disserta em seu livro The Over-Spent American, de 1999. Trata-se da ideia de que o mercado de maquiagem é um dos poucos capazes de continuar crescendo mesmo em períodos de graves crises econômicas. Ela sugere que, em tempos difíceis, as pessoas tendem a investir em pequenos mimos que levantam o astral, ainda que não resolvam problema nenhum na prática. Durante a pandemia do coronavírus, por exemplo, por mais que as lojas físicas tenham ficado fechadas por um bom tempo (o que ocasionou, sim, um impacto na saúde financeira de grandes empresas), marcas como Lancôme e Bobbi Brown já estão criando alternativas para “testar” os produtos online com a ajuda de filtros com inteligência artificial. Em contrapartida, marcas de beleza focadas em ingredientes artesanais e produção caseira seguem surgindo ao redor do globo. No Brasil, a Kurandé Cosméticos Naturais é um dos melhores exemplos.

“É responsabilidade do YouTube, mas é minha e dos youtubers também. Se a gente pode apaziguar, por que não fazer isso? Na medida do possível, eu tento ser o mais direta que posso nessas situações.” Karen Bachini

Agora, faça a soma: personagens que dividem boa parte de sua vida pessoal com uma audiência de milhões de pessoas + um histórico centenário de brigas públicas + um ambiente em que o capitalismo não tem vergonha de mostrar as garras… Inclusive, é importante ressaltar que a maioria desses escândalos começa com alguma questão comercial, visto que boa parte dos maiores youtubers de beleza do mundo tem acordos milionários com empresas já existentes ou é dona de suas próprias marcas. Os exemplos são vários: tem o caso do batom mofado da Jaclyn Hill, o James Charles fazendo propaganda da marca de vitaminas concorrente de sua amiga Tati Westbrook, Jeffree Star lançando uma paleta chamada “Cremated” (“Cremada”) enquanto centenas de milhares de pessoas estão morrendo infectadas pelo coronavírus, e por aí vai. E, quando todos esses elementos se misturam, a sensação é de que esse auê também pode servir para fazer dinheiro. “No escândalo da Tati Westbrook com o James Charles, as reviravoltas foram tantas que, no final, parecia uma grande jogada de marketing para fazer alguns ganharem e outros perderem seguidores. Ninguém sabe o quanto daquilo tudo é verdade e o quanto é mentira”, sugere Karen.

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Contenção de danos

Em 2019, em seu canal, no intuito de gerar debates a respeito da comunidade de beleza no YouTube, a própria Karen fazia a cobertura dos embates entre youtubers norte-americanos. “Eu queria que a gente aprendesse alguma coisa com aquilo. Acho que eu fui muito ingênua de imaginar que, explicando certas coisas, as pessoas iriam repensar a maneira como agem e o que consomem. Nunca aconteceu isso. Pelo contrário, parece que elas já vinham com sede de sangue”, relembra. “Decidi parar porque acho que o YouTube de maquiagem estava virando um lugar muito negativo. Ninguém critica para ensinar e ninguém está a fim de aprender. É só a briga pela briga. As pessoas que assistem são muito apaixonadas, então, vira e mexe, estão mandando mensagens de ódio para quem enfrenta seu ídolo no YouTube e não dá para ser assim”, explica, antes de revelar que já teve que conversar com seus próprios seguidores em determinadas ocasiões em que ela foi criticada por outra criadora de conteúdo. “Fizeram um vídeo detonando a minha rotina de skincare e imediatamente o pessoal já foi lá nos comentários da menina acabar com ela. Eu corri para pedir que eles parassem com isso. Até porque, no limite, ela estava certa. Minha rotina estava uó e eu aprendi muito com aquilo.”

Falando em aprendizado, vale lembrar que nem só de picuinhas se alimentam as polêmicas nas redes sociais. A atual preocupação das grandes marcas de cosméticos em demonstrar respeito à diversidade de seus consumidores surgiu, em grande parte, graças a muita gritaria digital – que ganhou mais força principalmente após o lançamento da Fenty Beauty e sua imensa paleta de tons de base, em 2017. Movimentos como skin positivity e diferentes maneiras de pensar a maquiagem também se originaram – ou, pelo menos, tiveram projeção – a partir de questionamentos na arena online. Nos últimos tempos, entretanto, o que vem fazendo barulho são discussões, digamos, menos construtivas, tanto na forma quanto no conteúdo.

Ordem no pedaço

Segundo o YouTube, existem medidas dentro da plataforma para o controle disso que eles chamam de conteúdo controverso. Sabendo que, atualmente, o YouTube conta com mais de 2 bilhões de usuários no mundo todo (mais de 105 milhões deles só no Brasil), dá para imaginar que a tarefa de fiscalizar cada vídeo que sobe por ali não deve ser tão simples. Mesmo assim, a empresa, que pertence ao Google, afirma que trabalha arduamente para tornar o seu espaço seguro tanto para quem produz quanto para quem assiste aos vídeos. A solução para dar conta desse volume enorme de conteúdo está em uma mistura entre a ação de algoritmos extremamente refinados e a ajuda dos internautas, que podem denunciar conteúdos que violem o código de ética do YouTube. Assim, o YT trabalha com o que eles chamam de “4Rs”: remoção (vídeos com discurso de ódio ou caracterizados como bullying virtual são derrubados sumariamente), redução (conteúdos que deem visibilidade a teorias da conspiração ou que ofereçam informações perigosas para quem assiste tem seu alcance reduzido), recomendação (a contrapartida de tudo isso: o esforço em privilegiar vídeos positivos e seguros) e recompensa (a monetização dos vídeos serve também como moeda de troca com criadores que, por ventura, venham a quebrar as regras – depois de alguns avisos, eles podem até perder seus canais). Em 2019 (coincidentemente, o mesmo ano dos maiores escândalos do YouTube de beleza), a plataforma reformou as suas políticas e, a partir disso, teve uma retirada maciça de vídeos de lá. Foram 180 mil deles só no primeiro semestre deste ano no Brasil. Globalmente, o número pula para 18 milhões.

Mas e aí? Como os personagens dessa engrenagem da beleza vão alcançar a maturidade necessária para vivermos um cenário diferente nas plataformas digitais? “Quando todo mundo fica brigando na mesa da ceia do Natal, não é legal. Ninguém gosta. O mesmo vale para o YouTube. Acho que a gente está lavando a roupa suja em frente a milhões de pessoas. Metade desses escândalos poderia ter sido evitada se as pessoas tivessem optado por falar diretamente entre si”, disse Karen, pouco depois de revelar que acredita que todos os envolvidos nesses processos precisam repensar como reagem a esse tipo de problema. “É responsabilidade do YouTube, mas é minha e dos youtubers também. Se a gente pode apaziguar, por que não fazer isso? Na medida do possível, eu tento ser o mais direta que posso nessas situações.”

A aposta é que a audiência, eventualmente, se canse do barraco. “Vocês sabem, pessoal, eu me orgulho de ter um canal livre de escândalos”, disse displicentemente a holandesa Nikkie de Jagger em um de seus vídeos, entre um passo e outro de sua maquiagem. Também conhecida como NikkieTutorials, a produtora de conteúdo tem 12 anos de YouTube e mais de 13 milhões de inscritos em seu canal. Talvez esse seja o diferencial dos youtubers do futuro… Ou não.