Na moda, assim como na vida, quem ri por último ri melhor

Uma breve história de como o humor e a ironia são essenciais para evolução do que e como nos vestimos.

Atualmente, quando se fala em moda e humor, a primeira coisa que vem à mente são os memes. É por meio deles que o assunto ganhou fama e engajamento nas redes sociais. E não é de hoje. Em março de 2017, Alessandro Michele convidou uma série de artistas para interpretar um relógio da Gucci, numa campanha de posts engraçadinhos com piadas comumente vistas no Instagram. Naquele mesmo ano, Marc Jacobs lançou uma linha de camisetas em parceria com Ava Nirui (@AvaNope), fotógrafa conhecida por reinterpretar logos de grifes em peças, digamos, um tanto comuns demais.

A memetização da moda chegou a tal ponto que os próprios processos criativos passaram a ser influenciados pela lógica de repetição e compartilhamento “viral”. Quem entendeu isso antes de todo mundo foi Demna Gvasalia, então na Vetements. A reapropriação do logo da DHL, a bolsa da Ikea, a paródia com o slogan de Bernie Sanders e a collab com a Crocs são ótimos exemplos. O sucesso de tais peças está na simplicidade: são roupas fáceis, decoradas com signos e símbolos de rápido reconhecimento, geralmente muito incorporados no dia a dia das pessoas, só que ressignificados. O humor aparece exatamente aí: na ressignificação. E, sob essa perspectiva, é possível entender o quão essencial ele é para evolução da moda e seus desdobramentos sociais.

Uma das primeiras estilistas a acionar o humor foi Elsa Schiaparelli, lá nos anos 1930. Suas roupas eram o completo oposto do que pregava a etiqueta vigente: do uso de cores às formas e até os materiais empregados na confecção. Nos anos 1970, foi a fez de Vivienne Westwood tirar sarro das tradições do bem-vestir com toda a desconstrução e irreverência do movimento punk. Na década seguinte, a Moschino levou os excessos da cultura pop e do entretenimento ao limite do absurdo com alta dose de ironia. Nos anos 1990, Jean Paul Gaultier, Walter Van Beirendonck e, mais tarde, John Galliano e Alexander McQueen também inverteram noções e convenções sobre gênero e sexualidade por meio da vestimenta.

No entanto, não foram poucas as vezes que esses estilistas foram vistos como piadas fashion – sejam elas uma forma de repulsa ou reconhecimento velado. O reconhecimento das rupturas e inovações de tais criadores veio a custo de muita risada e deboche.

4i6uwn6c image 186 scaled

As antiga é babado!

Para entender melhor o que estamos falando, vamos voltar um pouco no tempo. Tipo para a Grécia antiga. Foi lá que surgiram os primeiros conceitos sobre humor. Um deles divide o termo em três teorias: a da superioridade, na qual o riso tem origem numa posição de desacordo e até violência de um grupo superior em detrimento de outro; a de incongruidade, que depende da relação entre fatores desconexos, improváveis ou irracionais; e a de alívio, basicamente sobre aquela risada de êxtase ou liberação de pressão.

Foi também nos primórdios da civilização grega que a ironia se tornou uma potente ferramenta de pensamento, questionamento e crítica às normas – quase sempre por intermédio do humor. Segundo o filósofo Søren Aabye Kierkegaard (1813 – 1855), o conceito de ironia teve início com Sócrates. Em seu método, ele se colocava na posição de discípulo e, a partir de constantes questionamentos, levava seu adversário a assumir a própria ignorância.

De acordo com a filosofia socrática, nada é 100% certo. O humor irônico com que o filósofo trata as aparentes certezas mundanas é a forma mais poderosa para lidar com as questões cruciais do ser humano – questionando tudo a ponto da completa desconstrução das convenções, ideias e dos valores concebidos pela ordem vigente.

Para ilustrar tal pensamento vale olhar para a arte dadaísta do começo do século 20, em especial para o trabalho de Marcel Duchamp. Ao deslocar e ressignificar o banal para o sublime, o franco-estadunidense aplicou o poder transformador e revolucionário do humor para implodir valores e estéticas artísticas tidos como padrão na época. Esses mesmos mecanismos de desconstrução só se intensificaram ao longo do tempo. Andy Warhol que o diga.

Na moda, a abertura de caminhos do humor e ironia de Duchamp se materializaram nas roupas de Elsa Schiaparelli. Não por acaso, a estilista era bastante próxima do dadaísta e seus discípulos de vanguarda, como Salvador Dalí, Man Ray e Alberto Giacometti. O vestido-esqueleto, o chapéu de lagosta, o rosa-choque e boa parte dos materiais utilizados por ela partiam da mesma vontade de contestar as normas de etiqueta social, representação feminina, beleza e bom gosto. Não à toa, ela é tida até hoje como uma das criadoras mais revolucionárias de todos os tempos.

Schiaparelli queria ir além da consciência, romper com a lógica e a razão. Assim como os dadaístas e os surrealistas, também rejeitava valores tradicionais burgueses, como pátria, família, religião, trabalho e honra. Para ela e seus amigos-colaboradores, interessava mais o representativo, o abstrato, o irreal e o inconsciente.

E isso Freud explica

Para o pai da psicanálise, Sigmund Freud, as piadas são como sonhos, uma manifestação de pensamentos proibidos e sentimentos suprimidos pelas sociedade. Para ele, esses significados escondidos se revelam por meio do uso verbal de palavras e expressões ambíguas, com duplo sentido, deslocamentos e representações a partir de opostos.

Na moda, a parte verbal pode ser substituída por estética ou visual. Um exemplo bem clichê e muito emblemático de tal pensamento são os vestidos de noiva – por todos os significados e valores que a instituição matrimonial ainda carrega.

Rei Kawakubo, uma das criadoras mais contestadoras da atualidade, já dedicou coleções inteiras sobre tais peças – subvertidas de mil e uma formas, das cores aos tecidos, e até suas proporções e comprimentos. No verão 2013 de alta-costura da Chanel, Karl Lagerfeld os representou com um suposto casal lésbico. Em 2007, a noiva de Jean-Charles de Castelbajac nem chegou a casar. Seu vestido, feito de luvas quase transparentes, quase como camisinhas, vinha acompanhado de um leque com a estampa “almost married” (quase casada) e da alusão a uma mulher sexualmente livre.

A noção do belo e de um tal bom gosto também ilustra bem a importância do humor na superação e evolução do comportamento estético e do vestir. Em 1996, Miuccia Prada deu origem ao termo ugly chic (feio chique), depois de apresentar uma coleção de roupas em tons retrô, com estampas 70’s, silhuetas e proporções quase banais para a época. John Galliano, na sua marca homônima e na Dior, foi outro que questionou o que era aceitável e digno da alta moda, sempre com muito drama e teatralidade.

Não faltam exemplos de momentos em que a moda se valeu do humor para introduzir temas espinhosos para a sociedade. Sexualidade e identidade de gênero, aliás, eram assuntos frequentemente retratados de forma quase caricata, ainda que bastante pertinente. Jean Paul Gaultier foi um dos precursores nesse sentido – e com muito deboche. Alexander McQueen, ainda que menos alegre, mas igualmente irônico, é outro nome importante. Em solo nacional, vale mencionar as primeiras coleções de Alexandre Herchcovitch, fortemente influenciado pela cena clubber paulistana. Walério Araújo, Marcelo Sommer, Escola de Divinos e Caio Gobbi idem.

Não perde a piada

Como o humor acompanha a evolução da sociedade, sua representação escrita e visual também se modifica com o tempo. Nos anos 2000, com a popularização da internet, a piada já era outra. Estava mais atrelada ao deslocamento ou duplo sentido de toda uma sorte de elementos. Foi o primeiro boom das paródias com logos e nomes de grifes de luxo. Por aqui, marcas como Cavalera, A Mulher do Padre e Slam ganharam fama com a tendência. Estampas de recortes de jornais ou frases ambíguas apareceram do underground ao mainstream, de Dior a Zapping.

Hoje, para além do meme, a ironia e o humor vêm carregados de sentido social e pertencimento. Podemos ver isso com a mais recente coleção de Ronaldo Fraga em homenagem às mestras e aos mestres do Cariri cearense. Ou na apresentação da Kengá Bitchwear, na Casa de Criadores de 2020, olhando para a moda do Brás como uma das principais referências fashion do Brasil. Quando Felipe Fanaia estampou a praia de Peruíbe (SP) numa camiseta de seu verão 2018, toda sobre surfe e veraneio, foi a mesma coisa. Em 2019, com a homenagem de Rober Dognani à performer Elloanígena Onassis e à boate A Lôca também. E mais ainda no desfile em que a Estileras convidou membros de diversas comunidades periféricas para coassinar as peças da coleção apresentada naquele mesmo ano.

Há poucas semanas, vimos a estreia da Pyer Moss no calendário oficial de alta-costura. Foi o primeiro desfile couture de um estilista negro estadunidesne, no caso, Kerby Jean-Raymond, fundador e diretor criativo da marca. A coleção, mais do que uma homenagem a invenções de pessoas negras nos EUA, é um tapa na cara (com luva de pelica) de quem ainda insiste no apagamento negro e numa divisão racista e antiquada de quem pode e sabe fazer moda de qualidade.

Muita gente olhou feio para o casaco de couro marrom com volumes circulares, como se fosse uma mão segurando um esfregão. Acharam lúdico demais o vestido preto com um telefone celular gigante acoplado numa das laterais. Ou taxaram de extremamente caricata a geladeira sobre o vestido azul-claro, cheio de babados nas costas. Foi assim também com muitos dos criadores citados nesta matéria. E, como já dito, Freud explica. Os gregos também. Rir como forma de menosprezo é também uma maneira de negar a diferença, rejeitar a novidade e atrasar a renovação.

A sorte é que, como diz o ditado, quem ri por último ri melhor.