Tóxico, eu?

Termos de psicoterapia saíram dos consultórios e ganharam as ruas e as redes sociais. Mas até que ponto a popularização desses conceitos contribui para o entendimento entre as pessoas?

Ooelle.cassia

Ilustração: @cassiaroriz

Autocuidado, relacionamento abusivo, pessoas tóxicas, conhecer limites, respeitar processos. Numa sessão de terapia, esses são termos bem familiares. Mas não só lá: nessa segunda década do século 21, o vocabulário dos consultórios passou a ser frequentemente lido e ouvido nas redes sociais, na boca de youtubers, na mesa do bar e nas mensagens por WhatsApp. O mundo, enfim, está mais esclarecido e descobriu a importância da saúde mental? Spoiler desta reportagem: provavelmente não.

A disseminação do linguajar terapêutico passa, sem dúvida, pela popularização da própria psicoterapia – e democratizar ao máximo o acesso a esse tipo de tratamento é o melhor dos mundos. A questão é o quanto conceitos e estudos são distorcidos ao serem embalados para o consumo amplo e imediato.

“Estamos vendo uma massificação de conceitos psicanalíticos e psicológicos em prol de uma ideia de saúde que, na verdade, é alheia à psicanálise, que não pauta ‘como alcançar a saúde mental’, e sim como você se vira, sofrendo menos diante daquilo que é inevitável”, diz a psicanalista Vera Iaconelli, diretora do Instituto Gerar e membro da Escola do Fórum do Campo Lacaniano. “As pessoas procuram diminuir o adoecimento, ao mesmo tempo que banalizam as ferramentas, como se pudéssemos pensar a psicanálise em termos de protocolo.” De fato, não faltam gurus no Twitter e psicólogos no TikTok com fórmulas para terminar um relacionamento amoroso ou dar um basta nas trocas com o amigo tóxico.

“Tudo isso já estava sendo pressentido pelo fenômeno dos coaches, um sintoma do sofrimento que toma o universo corporativo. Algo que começou como uma orientação de carreira e se aproximou do discurso terapêutico”, explica o psicanalista Christian Dunker, professor em psicanálise e psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

Propagada pelos meios digitais, a cultura terapeutizada avançou ainda mais com o surgimento da Covid-19. “Na pandemia, houve um incremento da individualização e generalização de experiências de sofrimento”, explica Dunker. O psicanalista, no entanto, vê movimentos contraditórios nessas mudanças. “Por um lado, há um pedido por experiências com o outro, com mais tempo, mais capacidade de meditação. Por outro, há o desejo de que seja rápido, indolor, fácil e padronizado. Mas pera aí: a matéria-prima da qual você está se queixando é a falta de experiências de tempo, que passa pelo enfrentamento da angústia. E a resposta ideológica é de que isso se dê sem angústia?”, questiona.

“Uma indiferença generalizada em relação ao outro, em nome do autocuidado, é atroz e elimina a possibilidade de laço social.” Vera Iaconelli, psicanalista

Nessa busca por “facilidade”, há a tentativa de substituir conflitos por modulação, e o parecido é procurado como a única possibilidade de interação. “Isso gera ambientes absolutamente tóxicos, onde você desaprende a lidar com o atrito. No geral, a teoria do autocuidado cobiça a noção de equilíbrio e harmonia e dá pouco espaço à de que cuidar é lidar com seu conflito e com o do outro”, diz Dunker. 

Na esteira do autocuidado, fala-se da importância de barreiras em relações – de trabalho, amizade, família ou amorosas. Contudo, o foco na autoproteção pode desconsiderar que existe outra pessoa no ponto no qual o limite é estabelecido. 

“Esses termos são usados para a gente nem precisar entrar na conversa. Eles taxam, estigmatizam. Há muita reatividade no ar, e as palavras servem para as pessoas se protegerem de coisas sobre as quais não querem conversar, pesquisar e se perguntar”, afirma Vera Iaconelli. “Uma indiferença generalizada em relação ao outro, em nome do autocuidado, é atroz e elimina a possibilidade de laço social.”

Usadas em conversas que mais impõem e confundem do que dialogam, essas palavras terapeutizadas taxativas podem mascarar opiniões e sensações, estabelecer dinâmicas de dominação e colocar como tóxico o que é, na verdade, contraditório.

Altas DRs

Carla e João (nomes fictícios) namoraram por cinco anos. Ele fazia terapia (iniciada após o término de outro relacionamento) e achava que era parte do romance  partilhar com ela o seu autoatendimento e outras percepções. Mas a dosagem era pesada. “A maneira como ele comunicava sentimentos era muito teorizada e difícil de entender. Parecia em alguns momentos que eu era a terapeuta dele. Em outros, entrávamos em uma troca intensa para entender o porquê das coisas e achar um milhão de soluções”, conta.

As conversas eram longas, “longuíssimas”, chegando a seis horas de discussão. As voltas e ramificações desses papos eram tantas que, frequentemente, Carla se perdia no caminho. E nem conseguia falar muito. “Eu achava que era limitada, que desconhecia aquela forma de processar as coisas. Ainda assim, havia aspectos positivos. Acredito que melhorei minha habilidade de entender o outro”, pontua.

Para ela, João teorizava o que sentia muitas vezes para confundi-la, em vez de revelar o que de fato sentia. “Provavelmente era um lugar mais seguro para ele.” Na época do namoro, Carla não conseguia fazer terapia. “Ele até falava que eu deveria, mas a forma dele se comunicar me afastou, começou a me dar uma preguiça grande”, conta. Terminado o relacionamento, ela, por fim, aderiu à terapia – e identificou um comportamento manipulativo no ex. “Fiquei ainda achando que tinha sido exagero por um tempo, mas, de fato, era uma dinâmica controladora.” 

Experts e juízes

Nesse novo arcabouço linguístico, os termos de terapia muitas vezes vêm acompanhados de diagnósticos dados na velocidade de um tuíte por quem nunca passou perto de uma faculdade de psicologia – assim, qualquer variação de humor vira bipolaridade e o sujeito distraído logo ganha o carimbo de TDAH. 

A necessidade da categorização de pessoas, por sinal, cresce com o vocabulário para definir cada grupo. Hoje há mais palavras para se referir ao que seja: de comportamentos a demarcadores de identidade. Por um lado, essa estrutura traz mais pluralidade e contribui para reconhecer a variedade da experiência humana. Por outro, a categorização de si e do mundo, juntamente com termos taxativos, alimenta outra palavra que também se tornou muito popular nos últimos anos: o cancelamento. “Ele possui características técnicas, que envolvem um movimento de massa e aceleração. Não há espaço de defesa, a voz é suprimida”, explica Christian Dunker. “É uma tática para ‘resolver’ um conflito que incita o elemento da aceleração do juízo.” 

E não estamos falando só de personalidades canceladas no tribunal da internet. Isso também acaba ocorrendo na esfera íntima. “De certa forma, hoje você cancela a pessoa, o que é uma tentativa de não sofrer”, analisa Vera Iaconelli. “Mas o sofrimento volta porque você terá cada vez mais relações fracas, o que aumenta a solidão. Uma grande queixa da atualidade.”