Dona Suzana, cozinha e axé

Em entrevista à ELLE, a cozinheira que estrela o documentário Street Food, da Netflix, conta sua história e fala sobre a força identitária da culinária e da sua paixão pela Bahia.


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Foto: Reprodução Netflix



Protegida pela pulsação do axé e movida à base do dendê, a Bahia é um forte elo de espiritualidade, cultura, arte e história. Quando todos os elementos se juntam em uma unidade, a potência se torna tão grandiosa que ganha nome: baianidade. É algo que está nas ruas, nos sons, no imaginário do povo e em pessoas como Suzana de Almeida Sapucaia, nascida e criada em Salvador, que desde 2013 recebe moradores locais e turistas de todo o mundo no quintal de sua casa, onde serve moqueca, farofa de dendê, peixe frito e outras delícias da terra. Nas últimas semanas, Dona Suzana, como é conhecida, virou um dos tópicos mais comentados nas redes sociais, depois de estrelar um dos episódios da série Street Food, na Netflix.

Nessa segunda temporada, o documentário se debruça sobre a culinária de países da América Latina, mais especificamente, Argentina, México, Peru, Colômbia, Bolívia e Brasil. “Quando a Netflix me convidou, eu não queria fazer. Sou muito envergonhada e também tinha um pouco de medo. Imagina ser uma pessoa conhecida pelo mundo inteiro? Nunca tinha pensado nisso para mim. Só depois que eles conversaram bastante, eu resolvi aceitar. E aí foi maravilhoso”, conta a fundadora do RéRestaurante, assim batizado por uma referência brincalhona à leve gagueira de proprietária.

Como autêntica representante da cozinha da Bahia, Dona Suzana mostra que o significado da comida local vai muito além de um simples nome no cardápio.

Pensada através de um contexto sócio-cultural aliado às expressões populares, ela se torna também um símbolo identitário de pertencimento e integração de um povo. A comida baiana, em especial, carrega um legado histórico grandioso com inúmeras influências sincretizadas da cultura afro-brasileira. O dendê, azeite ancestral trazido ao Brasil por africanos, assume um papel sagrado na Bahia. Para o candomblé, o acarajé representa uma forma de comunicação com os Orixás. Já o caruru é uma maneira de agradecimento aos santos católicos Cosme e Damião. “A força de Salvador passa muito pela comida. É sobre o nosso axé, a nossa cultura e o nosso hábito de toda sexta-feira comer algo de dendê”, comenta Dona Suzana.

Dona Suzana aponta a placa com o nome de seu restaurante

Dona Suzana, em frente ao seu restaurante: refeições no quintal ganharam o mundo.Foto Divulgação Netflix

A culinária assumiu papel importante na vida dessa cozinheira ainda na adolescência, quando ela tinha entre os seus 15 e 16 anos. “Minha família sempre foi pobre. Eu fazia a comida em casa para tentar ajudar minha mãe. Depois, me casei e fui fazer outras coisas, precisei trabalhar como lavadeira por muito tempo para sobreviver.” Foi só nos últimos anos, a pedido de seus vizinhos e dos visitantes do Solar do Unhão, comunidade onde mora, que a baiana começou a vender seus pratos. “Estava endividada e precisava trabalhar mais. Então, coloquei umas mesas na porta de casa e comecei”, conta ela. “Não é um restaurante chique, é uma frente de porta. Mas faço com todo meu carinho e amor.”

O negócio que começou despretensioso, atendendo apenas a conhecidos, foi aos poucos se tornando um ponto essencial da cena gastronômica baiana. “Quando eu saí no jornal pela primeira vez, no dia seguinte, tinha mais de 40 pessoas na frente da minha casa. Eu pedia para que elas voltassem outro dia, porque não teria espaço para todo mundo, mas elas falavam ‘não, a gente senta no chão’, e teve que ser assim mesmo. Foi um dia muito especial”, relembra Dona Suzana. Com a estreia do documentário da Netflix, onde a baiana mostra um pouco do preparo de sua especialidade – a moqueca de peixe –, a fama da cozinheira voou ainda mais longe. Ela conta que está recebendo mensagens de inúmeras pessoas que dizem esperar o dia em que o isolamento social não seja mais necessário, para que possam conhecer o seu tempero. “Ansiosa para que todos venham me conhecer quando já for possível. Estes meses têm sido muito difíceis. Eu tive que parar de trabalhar e tudo acabou atrasando. Mas vai melhorar.”

Enquanto isso, Dona Suzana aguarda dias melhores em seu RéRestaurante. Apesar de já ter recebido convites para cozinhar em outros lugares, não arreda pé da cidade onde nasceu. “Já fui chamada por gente desde São Paulo até a França. Mas não aceito sair de Salvador, não deixo a minha Bahia por nada.”

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