Quem resiste a um queijim?
Reconhecidos como patrimônio brasileiro, queijos mineiros ganham um imponente centro cultural em Belo Horizonte, que vai abrigar ainda uma escola de gastronomia.
Difícil a gente ouvir falar de queijos mineiros e não pensar logo no Canastra, nome da região produtora que se tornou uma verdadeira grife no mundo da gastronomia. Só que a riqueza queijeira das Minas Gerais é muito, muito maior – tão grande e vasta que, a partir de agora, terá um centro cultural para chamar de seu.
Nesta quarta-feira (15.3), será oficialmente inaugurado, em Belo Horizonte, o Centro de Referência do Queijo Artesanal (CRQA). Localizada no novo shopping center Espaço 356, cujas obras estão em fase final, a instituição sem fins lucrativos tem múltipla vocação. Além de exposição permanente sobre os modos de fazer do queijo, terá biblioteca especializada em gastronomia, loja de produtos artesanais mineiros e uma escola – o Instituto de Hospitalidade e Artes Culinárias (Inhac), dedicado a capacitar jovens em situação de vulnerabilidade social, que será dirigido por Leo Paixão, chef de alguns dos mais badalados restaurantes de Beagá, entre eles o premiado Glouton.
Diretora-executiva do CRQA, Sarah Rocha conta que o projeto começou a ser gestado duas décadas atrás. “Minha mãe, Carmen Rocha, implantava escolas profissionalizantes do Senai e já defendia a criação de uma escola de hospitalidade gratuita de nível internacional”, conta. Valeu a pena esperar tanto – o projeto saiu melhor do que a encomenda. “Quem conhece e compra os queijos ajuda a manter o produtor no campo. Por isso era fundamental que o CRQA ficasse em um lugar de muita visibilidade e fácil acesso.”
Maquete eletrônica do espaço do CRQA Imagem: Jose Lourenço Arquitetura
A ideia surgiu na mesma época em que um time de especialistas apaixonados assumiu a missão de salvar o modo tradicional de fazer queijo mineiro, então ameaçado de desaparecer. Quem conta é o veterinário Elmer de Almeida, que participou daquela primeira força-tarefa e, hoje, é consultor técnico do CRQA. “Em 2000, um promotor de justiça tentou proibir o comércio de queijos artesanais no Mercado Central de Belo Horizonte, alegando que não existia legislação para a produção a partir de leite cru, sem pasteurização. Através de vários órgãos do estado, como a Epamig e a Emater, nós conseguimos que a lei fosse promulgada, em 2002.”
De lá para cá, os queijos mineiros tiveram a produção regulamentada e acumularam uma série de conquistas – já foram reconhecidos como Patrimônio Cultural Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e, se depender de seu fã-clube, logo terão lugar na lista de alimentos considerados Patrimônios Culturais Imateriais da Humanidade pela Unesco, ao lado da cerveja belga, do cuscuz marroquino e da baguete francesa. A apresentação da candidatura já está em curso, o Iphan e o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) têm até o dia 31 de março para enviar a documentação.
Canastra é só o começo
A exposição permanente será o cartão de visitas no novo CRQA – no espaço projetado pelo arquiteto José Lourenço, o público vai entender por que é impossível dissociar o queijo da cultura mineira. Fabricado do mesmo jeitinho desde o século 18, é uma adaptação da receita que veio da Europa na memória dos imigrantes portugueses – por muito tempo, acreditou-se que a origem teria sido a Serra da Estrela, onde se produz queijo com leite de ovelha, mas uma nova corrente defende que a técnica veio mesmo dos Açores.
Polêmicas à parte, o fato é que esse saber se espalhou pelo estado. Atualmente, há dez microrregiões reconhecidas como produtoras do autêntico Queijo Minas Artesanal – Canastra, Araxá, Campo das Vertentes, Cerrado, Serra do Salitre, Serras da Ibitipoca, Serro, Triângulo Mineiro, Diamantina e Entre Serras da Piedade ao Caraça. Somando tudo, são mais de 30 mil famílias que vivem de fazer queijo, em 106 municípios. Segundo Elmer de Almeida, a Canastra só ficou mais famosa do que as outras regiões porque soube trabalhar melhor o marketing. “É uma área com apelo turístico muito forte, que tem maior poder de organização junto à mídia. Eles vivem aparecendo em reportagens”, explica.
Queijo da Serra da Canastra: fama mundial Foto: Divulgação
A maior beleza de explorar esse universo é justamente a diversidade. Um queijo do Salitre sempre será bem diferente de outro do Serro, e o responsável por essa identidade é o pingo, uma das etapas preciosas da produção. Recolhido do soro que drena os queijos após a salga, esse líquido esbranquiçado, que aglutina um conjunto de bactérias lácticas, é considerado o DNA do lugar. É ele que carrega, para a leva de queijos do dia seguinte, a essência do terroir, ou seja, as características do relevo, do pasto, da água e do clima.
Todas as nove etapas de produção, da ordenha à maturação, são seguidas à risca. As vacas devem ser alimentadas prioritariamente no pasto e o leite não pode ser pasteurizado, para que revele suas características plenamente – um único queijinho demanda 10 litros de leite, o que explica tanta gostosura. Alguns detalhes variam conforme a região. A prensagem, por exemplo, pode ser feita com ou sem pano, e o tempo de maturação também muda de um lugar para outro. Os ritos são seculares, o que não quer dizer que a produção não tenha se aprimorado ao longo do tempo – além de elaborar normas técnicas, as equipes que ajudaram a formalizar o setor deram um verdadeiro banho de loja nas propriedades, dos currais às caves de maturação.
Escola de embaixadores de Minas Gerais
O Instituto de Hospitalidade e Artes Culinárias (Inhac), que vai funcionar dentro do CRQA, pretende ser muito mais do que uma simples escola para ensinar técnicas de cozinha. Segundo Sarah Rocha, a proposta é oferecer aos adolescentes que vivem em abrigos de Belo Horizonte uma oportunidade de carreira que pode transformar suas vidas. “Trabalharemos em parceria com restaurantes, hotéis e escolas internacionais e teremos equipamentos que são as ‘Ferraris das cozinhas’. Vamos acompanhar toda a trajetória desses meninos e meninas até a plena inserção no mercado de trabalho”, ela anuncia. “Para que o projeto gere impacto real, é fundamental que eles tenham uma formação de nível internacional. Queremos formar embaixadores culturais de Minas Gerais.”
Por ano, 180 alunos de 16 a 18 anos passarão pelas salas de aula. Eles devem obrigatoriamente estar matriculados na escola pública e receberão bolsa de estudos, além de auxílio para alimentação e transporte. Para Leo Paixão, a chance de coordenar esse trabalho é a realização de um sonho antigo. “Há tempos queria criar um curso de capacitação para jovens em situação de vulnerabilidade e o projeto da Sarah veio pronto, muito maior e melhor do que eu imaginava. Foi um grande presente. Meu objetivo é devolver ao universo o tanto de coisa boa que já recebi. A cozinha é muito generosa quando a gente se dedica, tem seriedade e persistência.”
Lugar de aprender sobre queijo mineiro e mais
Assim que estiver em pleno funcionamento, o CRQA terá uma extensa programação educativa também para o público em geral. Além das visitas guiadas pela exposição permanente, serão organizados experiências, cursos e workshops. A biblioteca especializada em gastronomia promete ser uma tentação para quem ama o assunto: estarão lá reunidos livros nacionais e estrangeiros sobre culinária e cultura alimentar, pesquisas e teses científicas. Um auditório para 200 pessoas complementa a estrutura, onde serão realizados concursos, seminários e festivais. A curadoria dos eventos fica a cargo de um time de bambas – o comitê científico é formado por Elmer de Almeida, a museóloga Célia Corsino e o antropólogo da alimentação Ernesto di Renzo.
Como vai funcionar como uma verdadeira Disney World do queijo, o CRQA também vai atrair os visitantes para a lojinha ao final do passeio. Será um espaço colaborativo, onde os queijeiros não serão os únicos – outros produtos de origem que compõem a cesta de tradições mineiras, como azeites, cafés e quitandas, vão se alternar nas prateleiras. Quem já está com água na boca vai ter que esperar um tantinho. Segundo Sarah, as atividades serão lançadas aos poucos, para evitar atropelos. No dia 30 de março, começam as visitas guiadas para grupos escolares, mas o público em geral só vai poder conhecer o novo CRQA a partir da segunda quinzena de abril. A programação será divulgada através do perfil do Instagram @queijoecultura.
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