Exercite a paciência com um pote de conserva

Veja como as conservas caseiras podem ajudar você a comer melhor, evitar o desperdício e a cultivar a paciência em tempos incertos.


lUVKIyll origin 934 scaled
Foto: Brett Stevens / Getty Images



Não adianta espernear, aumentar o fogo nem apelar para aparatos culinários hi-tech. Aquele pote de conserva caseira não vai ficar pronto antes da hora. Ele pede tempo, e não abre mão disso.

Convenhamos, é uma condição muito justa para um preparo que exige pouco e oferece tanto em troca. Os ingredientes são em conta: é o legume da estação, a fruta que está na safra, o vegetal que está fazendo aniversário na geladeira. Mais sal ou açúcar. Água. Vinagre, em alguns casos. Os vegetais podem ser picados em pedações ou até ir inteiros para o pote. O esforço é mínimo. Custa esperar um pouco?

“Acaba sendo uma terapia”, diz o chef Lucas Dante. “Basicamente, um teste de paciência, pois uma conserva não é consumida no mesmo dia [do preparo]”. No
Cepa, restaurante que comanda no Tatuapé, em São Paulo, Lucas faz conserva de escarola e berinjela, picles de quiabo tostado, de nabo e de rabanete. Receitas que demandam dias para chegar no ponto certo fazem parte da proposta da casa, que também fabrica os próprios curados, como pancetta e copa lombo.

Para quem está acostumado a hambúrguer pedido via telefone e macarrão instantâneo que fica pronto em três minutos, a ideia de esperar uma semana para comer um rabanete pode soar meio estapafúrdia. Mas é pura sabedoria culinária. Experimente perfumar um cuscuz marroquino com tirinhas de limão-siciliano bem curtido. Ou incrementar um sanduíche simplesinho de frios com fatias de picles caseiro de pepino (no dry martini também cai bem). O sal, a acidez e a textura desses ingredientes mudam tudo.

Picles, compotas e outros tipos de conservas alimentam a humanidade há milênios. Arqueólogos acreditam que já se fazia picles na Mesopotâmia em 2.400 a.C. Quem guarda tem, pregam os cozinheiros conscientes desde sempre, e as conservas foram o método encontrado para garantir comida na mesa quando a oferta de alimentos escasseava – por condições climáticas, pragas ou guerras. Até na descoberta de continentes elas tiveram papel fundamental: Cristóvão Colombo era muito zeloso com o estoque de picles de suas embarcações e, ainda que sem saber, pode ter livrado muito marujo do escorbuto, doença provocada por deficiência de vitamina C.

TIPOS DE CONSERVA

image 13

Kimchi, a conserva coreana. Foto: 4kodiak / Getty Images

Conservas não têm fronteiras, estão em cardápios do mundo todo. “Elas são uma das bases da refeição japonesa”, diz a chef Telma Shiraishi, do Aizomê. “Se você tem arroz, uma sopa e uma conserva, você tem uma refeição completa.” Os métodos para preservar vegetais variam, explica Telma. Você pode utilizar só sal ou, então, recorrer a bases fermentadas, como shoyu, missô (pasta de soja), borra de saquê ou farelo de arroz.

O vinagre é outra presença recorrente, principalmente no Ocidente, mas os preparos mais tradicionais dispensam o ingrediente. O físico Fernando Goldenstein Carvalhaes, sócio da Companhia dos Fermentados, é um defensor e difusor do método da fermentação: em um ambiente anaeróbico, na salmoura, os micro-organismos presentes nos próprios vegetais produzem ácido lático, que atua como um conservante natural. “Quando você fermenta, está mantendo a cultura viva. Se você perde repertório, perde essas técnicas ancestrais, acaba virando refém da grande indústria. E vai acreditar que aquele produto na prateleira do supermercado é realmente chucrute”, diz Fernando. Um chucrute feito como se deve, garante ele, tem outro sabor, sem aquela acidez cortante do ácido acético. “O ácido lático é um ácido ‘redondo’, faz um carinho na boca”, descreve. E ainda há um ganho filosófico nisso tudo. “A conserva de vegetais nos liga às estações do ano, é uma forma de fazer as pazes com a mãe natureza. É algo que a gente está precisando nesse momento: entender os tempos, os ciclos de produção da comida desde a terra até chegar ao nosso prato”, prega Fernando.

Quer desbravar o maravilhoso mundo das conservas caseiras? A seguir, você vai encontrar três métodos diferentes de preparo: uma compota doce, do restaurante Cepa; um picles à moda japonesa (tsukemono) feito com um ingrediente bem brasileiro, criado por Telma Shiraishi, do Aizomê; e um passo a passo do método mais “raiz” de conservação, por fermentação lática, explicado pela Companhia dos Fermentados – este último só precisa de vegetais, água e sal. E tempo, claro.

Receita de compota de tangerina de Lucas Dante, do Cepa

image 14

No restaurante Cepa, a tangerina em compota é servida com ricota caseira e pistache triturado. Foto: Willian Ribeiro

Rendimento: 10 porções
Tempo de preparo: 1 hora + 3 dias

Ingredientes
1 kg de tangerinas
1,3 kg de açúcar
1 litro de água, mais o quanto baste para cozinhar as tangerinas

Modo de preparo
1. Lave bem as tangerinas e faça furos na casca com uma faquinha bem afiada.
2. Coloque as tangerinas numa panela grande, cubra com água e leve ao fogo até levantar fervura. Deixe ferver por 10 minutos.
3. Escorra a água e repita o processo.
4. Escorra novamente, encha a panela com água limpa e leve ao fogo até ferver. Acrescente as tangerinas e deixe ferver por mais 30 minutos.
5. Escorra as tangerinas e coloque em um pote de vidro esterilizado.
6. Prepare a calda: misture numa panela 1 kg de açúcar com 1 litro de água. Leve ao fogo até que os grãos dissolvam completamente e o líquido comece a borbulhar.
7. Despeje a calda sobre as tangerinas, tampe o pote e deixe descansar até o dia seguinte.
8. Passado o tempo de descanso, transfira a calda para uma panela, adicione 100 g de açúcar e leve ao fogo até ferver e os grãos de açúcar se dissolverem. Despeje a calda novamente nas tangerinas e feche o pote. Repita esse processo por mais 2 dias.
9. Para servir, corte as tangerinas em quatro e sirva com ricota caseira e pistache picado.

Receita de tsukemono de maxixe, de Telma Shiraishi, do Aizomê

image 15

O maxixe, tipicamente nordestino, ganha sotaque japonês na receita da chef Telma Shiraishi, do Aizomê. Foto: Telma Shiraishi

Rendimento: 1 pote de 700 ml
Tempo de preparo: 30 minutos + 2 dias

Ingredientes
10 maxixes bem novinhos
1 colher (sobremesa) de sal
1 xícara de pinga
1/2 xícara de vinagre de arroz
1/2 xícara de água
2 colheres (sopa) de shoyu
1 colher (sopa) de açúcar
1 pedaço de 5 cm de alga kombu (opcional)

Modo de fazer
1. Lave e corte os maxixes em quatro. Salpique o sal e deixe descansar por uns 20 minutos, mexendo de vez em quando.
2. Esprema delicadamente os pedaços de maxixe para retirar o excesso de líquido e transfira para um recipiente limpo, com tampa. Adicione o pedaço de kombu ao recipiente.
3. Coloque a pinga em uma panelinha e leve ao fogo para flambar: incline levemente a panela em direção à chama do fogão para que o álcool pegue fogo e evapore — muito cuidado com as chamas! Espere o fogo apagar sozinho e deixe o líquido ferver até reduzir à metade. Adicione a água, o shoyu, o vinagre e o açúcar e misture bem até dissolver todos os grãos de açúcar.
4. Tire o líquido do fogo e despeje no recipiente com o maxixe. Deixe marinar pelo menos por uns dois dias na geladeira antes de servir. Pode ser conservado refrigerado por até um mês.

Conserva de legumes com fermentação lática da Companhia dos Fermentados

image 16

Cenoura, cebola, rabanete... Escolha seus ingredientes e bote para fermentar! Foto: Companhia dos Fermentados

Rendimento: depende do tamanho do seu pote!

Tempo de preparo: 15 minutos + 5 dias, no mínimo

Ingredientes
Vegetais e especiarias de sua preferência
Sal
Água

Modo de fazer
1. Higienize as mãos com água e sabão e, em seguida, com álcool 70%. Lave e ferva os utensílios que serão utilizados.
2. Descasque os vegetais, se necessário, e lave-os apenas com água. Não use bactericidas, como hipoclorito de sódio, porque eles podem prejudicar a fermentação. Se desejar, deixe os vegetais de molho em água com vinagre por 10 minutos.
3. Corte os vegetais como preferir: você pode ralar os ingredientes, cortar em pedaços ou até usar vegetais inteiros. Lembre-se de que pedaços menores soltam mais água e agregam mais sabor à salmoura, mas ficam menos crocantes.
4. Acomode os vegetais no pote e, se desejar, adicione especiarias como grãos de pimenta-do-reino, sementes de mostarda, de cominho, dill… O ideal é que os vegetais ocupem 80% do espaço do pote.
5. Adicione sal ao pote, numa quantidade correspondente a 2% do peso dos vegetais. Ou seja, se você utilizou 500 g de pepino, acrescente 10 g de sal sobre eles.
6. Prepare uma salmoura com 2% de sal (para 100 ml de água, você vai precisar de 2 g de sal).
7. Despeje a salmoura no pote até cobrir os ingredientes. Os vegetais devem ficar completamente submersos na salmoura. Se não tiver um pote próprio para fermentação, utilize um peso (como uma pedra esterilizada) para evitar que os vegetais subam à superfície.
8. Feche o pote e deixe descansar em temperatura ambiente por pelo menos 5 dias. No segundo dia, você já deve notar o borbulhamento provocado pela fermentação: é o gás carbônico que é produzido pelos microrganismos. Se o pote não for próprio para fermentação, você deve abrir a tampa regularmente para liberar o gás e evitar o vidro estoure. Ou feche o pote sem rosquear a tampa. Mas lembre-se de que os vegetais devem permanecer sempre totalmente submersos na salmoura para que não mofem.
9. Em cinco dias, a conserva já deve estar bem frisante, ácida e muito saborosa. Abra e prove. Se já estiver a seu gosto, mantenha o pote na geladeira, para diminuir a fermentação. Caso contrário, deixe fermentando por mais tempo, até atingir o ponto desejado.

Para conserva de folhas
O método acima é indicado para vegetais mais duros, como cenoura, pepino, cebola e alho. Para conservas de folhas, que soltam mais água, a salmoura às vezes nem é necessária. Você pode espalhar o sal uniformemente nas folhas (calcule de 1% a 3% do peso dos ingredientes), amassá-las para que liberem água e depois colocá-las em um pote, com um peso por cima. Se achar necessário acrescentar mais líquido, prepare uma salmoura com a mesma porcentagem de sal utilizada para salgar os ingredientes. Se usou 2% de sal na salga, por exemplo, a salmoura também deve seguir essa porcentagem. Feche o pote e siga os procedimentos dos passos 8 e 9.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes