E se… a moda perdesse a graça?

De tragédias ambientais a discursos capengas da indústria sobre inclusão e diversidade, o atual cenário é de matar qualquer desejo fashionista.


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Sou capaz de passar bons minutos fazendo a rolagem do celular em lojas virtuais de marcas de moda variadas. Seja de uma varejista de fast-fashion, um brechó ou uma marca que eu gosto muito, mesmo que esteja muito distante do orçamento. Como alguém que está na moda há mais de dez anos, a prática de ver imagens de moda no geral, e roupas em particular, é um hábito construído pelos antigos ossos do ofício do qual não me livrei totalmente.

O desejo pelo que vejo, no entanto, morreu – ou, para ser mais exata, vive por aparelhos (de publicidade do capitalismo-patriarcal). Isso não aconteceu da noite para o dia, é claro. É um processo em fluxo que recebe inputs diários a partir do meu trabalho por justiça socioambiental e climática, inclusive com o setor da moda. Não só sabemos que as promessas de sustentabilidade das marcas de moda para o futuro já tardaram a chegar como também é consenso entre pesquisadores de diversas áreas que a produção de coisas precisa reduzir drasticamente se quisermos parar de destruir o planeta.

Só no Brasil, conforme mostramos no relatório Fios da Moda, a indústria têxtil e de confecção produz em média 9 bilhões de itens por ano. Divididos pela população, são mais de 40 itens por habitante. Sabemos que essa produção e consumo acontecem de formas desiguais. Nesse sentido, comprar menos é imperativo, e para isso será preciso resgatar formas “desprodutificadas” e descentralizadas de geração de renda e garantia de bem-estar social, priorizando a remuneração dos trabalhos de reprodução social – historicamente não remunerados, precarizados e feminilizados.

Responsável por matar o desejo é também ver a forma como as marcas de moda e a publicidade – inclusive com um discurso capenga sobre inclusão e diversidade – reproduzem estereótipos de gênero que se sustentam sobre a lógica da objetificação feminina e sobre o chamado male gaze. Por mais lindas que sejam as roupas, quando vejo mulheres em poses erotizadas (lembrando que esse erótico foi construído sob objetividades e subjetividades capitalistas-patriarcais), ocupando com maestria os espaços de atenção (e não respeito) que os homens nos concederam, qualquer resquício de beleza vira repulsa.

Vou parafrasear Renata Dias em seu texto-relato. Enquanto o corpo for moeda de troca para aceitação, nós não avançamos com os objetivos reais do feminismo: a destruição dos sistemas de opressão e seus símbolos, metáforas e crenças. Embora respiros existam – como a Michi sob rodas na ELLE VIEW, e o conceito de man repeller – , por enquanto, a moda, inclusive aquela que se diz de alguma forma subversiva, não tem conseguido superar o feminismo liberal, felizmente porta de entrada para muitas mulheres na luta por direitos e superação do patriarcado, mas infelizmente espaço de pacificação com a objetificação capitalista-patriarcal para a maioria.

A gota d’água

Seria um erro não considerar os impactos da pandemia de Covid-19 na nossa percepção de mundo, nosso sentimento de esperança (ou desesperança) e nossa saúde mental frente a um vírus que está nos forçando a distanciarmos dos outros pelo terceiro ano consecutivo (ou ao menos, forçou alguns de nós). Isso bem no meio de uma gestão política, sobretudo no âmbito federal, desastrosa e com uma agenda necropolítica nunca vista antes.

Os efeitos se materializam na nossa frente. Destaco um impacto que tem sido pouco debatido frente à sua complexidade de resolução a curto e médio prazo (caso não atinjamos a favelização irreversível): entre 2009 e 2021, a população em situação de rua na cidade de São Paulo aumentou 54% (70,8% são pretos e pardos, 14,9% são mulheres, 39,8% são naturais de São Paulo). Pela primeira vez, o motivo de novas pessoas em situação de rua por questões financeiras, superou o de pessoas que vão para as ruas por problemas familiares.

Fica difícil atravessar a cidade para comprar um look – ou ainda atravessar a cidade com um look comprado pela internet – sem refletir sobre qual o sentido desses objetos todos dentro de um contexto – social e ambiental – em acelerado processo de degradação, inclusive por conta da superprodução e consumo destes objetos. Soma-se a isso o alto custo de vida atual para chegar a conclusão que a maior parte das roupas não vale o tempo de vida que eu tenho que dispor na venda da minha força de trabalho para conseguir pagar por elas.

Essas reflexões são como um exercício de alçar a moda contra a luz, como um prisma, para que possamos enxergar ângulos os quais sequer sabíamos que existiam. É para ser desconfortável porque não avançamos no conforto (pois é, discordo profundamente de Krenak aqui). E sim, se as condições de vida das pessoas do nosso lado estão insustentáveis, e tantas outras cujas formas de existências estão sob ameaça, continuar enxergando brilho no glitter me soa como uma forma de negacionismo tão nociva quanto a que muitos de nós somos tão rápidos em criticar. A alegria individual, afinal, deve encontrar limites na – e, portanto, se solidarizar com – a tristeza coletiva.

Marina Colerato é jornalista, está como diretora-presidente do Instituto Modefica, faz mestrado em Ciências Sociais na PUC/SP e reflete sobre política, feminismos e o fim do mundo na sua newsletter Lado B. Você pode acompanhá-la no Instagram @marinacolerato.

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