Espartilhos: de símbolo de opressão à tendência do Tik Tok

Antes de queimarem sutiã, as feministas aboliram o corset. Porém, mais de 100 anos depois, a peça volta a bombar nas redes sociais e na moda. Mas afinal, ainda há espaço para eles?


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Foto: Getty Images



“Você traz os espartilhos / Nós traremos as cintas / Ninguém quer uma cintura de mais de [ouve-se o barulho de um espartilho sendo apertado] 23 centímetros”. A música Haus of Holbein, do musical Six, é a trilha sonora de um challenge que foi uma das maiores tendências do Tik Tok em 2020 e que ganhou novo fôlego no último mês: o desafio do corset. Nele, participantes cantam a letra enquanto apertam um espartilho, mostrando a diferença entre o antes e o depois.

A brincadeira no aplicativo, um dos mais baixados durante a pandemia, deixou bastante gente morrendo de vontade de experimentar um espartilho, segundo a designer de corsets Jerônima Baco, 32. “Principalmente adolescentes influenciados pela plataforma”, comenta. A estilista diz, no entanto, que o Tik Tok não foi o único influenciador: “A série Bridgerton [a produção mais vista da Netflix] também fez com que as pessoas quisessem comprar a peça”.

 

Em levantamento feito pelo Pinterest para a ELLE, as buscas relacionadas a “corset” cresceram mais de 600% no Brasil no último ano. No Google Trends, o termo “comfy corset” é um dos assuntos mais pesquisados. E o item não está bombando apenas na internet: na moda o espartilho também voltou a ser tendência.

Blusas que emulam a silhueta corsetada estão disponíveis nas fast fashions. Versões menores e mais flexíveis do acessório aparecem por cima de camisetas e camisas num dos recursos de styling mais influentes no momento. Até Beyoncé aderiu. Na festa pós-Grammy deste ano, ela usou um longo Burberry com um espartilho cheio de pedraria. As integrantes do Blackpink, banda de k-pop, gênero adorado pelos adolescentes, também aparecem vez ou outra com corsets combinados com shortinhos e saias.

Imagem de pessoa na rua com corset jeans.

Foto: Getty Images

Desfile Dior.

Dior, cruise 2021.Foto: Getty Images

 

Visto que a geração Z costuma consumir marcas alinhadas a seus princípios, o sucesso do espartilho pode ser visto como uma contradição. De um lado, o feminismo está na boca de jovens e adolescentes e movimentos sobre autoestima e aceitação do corpo bombam na timeline do Instagram. Do outro, muito antes de queimar sutiãs, feministas aboliram o corset na briga pelo direito ao voto – e de respirar livremente – há mais de 100 anos. Como fica a nova tendência nisso tudo?

Cintura e fôlego de passarinho

Segundo os historiadores, o espartilho existe desde o século 15, ainda que em formatos um tanto diferentes. “Após o período romano, no início do feudalismo, o vestuário começa a marcar bem o gênero das pessoas e a mulher começa a usar o corpete”, fala Anna Claudia Bueno Fernandes, mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora do trabalho “Corpo espartilhado e corpo libertado: os debates sobre a abolição do espartilho no ‘New York Times’ durante a década de 1890” (2010). “A peça sempre foi um símbolo de feminilidade, já que acentua a cintura e os seios”, diz.

Ilustra\u00e7\u00e3o de mulher vestindo corset.

Foto: Getty Images

Ao longo dos anos, o corset foi se modificando até chegar a sua versão mais famosa. Seu auge se deu na era vitoriana, período que foi de 1837 até 1901. À época, eles eram feitos com barbatanas de baleia e ilhoses de amarração. “O espartilho era usado bem apertado e visto como um símbolo da elite”, afirma Anna Claudia. É que as mulheres de classes mais baixas, que precisavam trabalhar, usavam corpetes mais flexíveis para se movimentarem melhor. As damas da sociedade, por sua vez, não saíam de casa, então podiam usar uma versão mais justa. Porém, além de marcar a classe social, eles eram também uma “proteção” da moralidade da mulher. “Haviam as saias armadas, as roupas de baixo, mas os corsets terminavam as camadas como se fosse uma armadura, uma fechadura”, diz a especialista.

Com as mudanças de hábitos, a sociedade e a moralidade acabam se adaptando. No fim do século 19 e no início do 20, as mulheres já não queriam mais perder o fôlego por conta da peça. Segundo pesquisadores, houve um conjunto de fatores que levaram ao descontentamento: o movimento sufragista, que lutava pelo direito ao voto feminino, contestava o uso do espartilho como uma forma de questionar o sistema patriarcal, a popularização da bicicleta e dos exercícios físicos criaram uma necessidade das mulheres se libertarem das roupas pesadas e, por fim, o avanço dos estudos de anatomia humana.

“Até o início do século 20, acreditava-se que a mulher tinha um pulmão menor, por isso teria a respiração curta e tendia aos desmaios. Descobriram, no entanto, que era o espartilho que mudava a anatomia do corpo feminino. Ele começou a ser visto como um risco à saúde”, diz Anna Claudia. Mesmo com as evidências científicas, houve resistência da sociedade em aceitar o fim do uso diário do corset. “Para ser mulher, era preciso usá-lo. Largá-lo era visto como chacota pelos veículos antissufragista, por exemplo. Para eles, as mulheres estavam se masculinizando”, fala a especialista.

Para atender às demandas femininas, os corsets se tornaram mais flexíveis, mas caíram em desuso mesmo na Primeira Guerra Mundial, quando as matérias-primas para fazer o acessório ficaram escassas. Enfim, as mulheres poderiam respirar e estavam livres. “O corpo feminino continuou a ser aprisionado. Os exercícios físicos e as dietas se tornaram o espartilho”, diz Anna Claudia.

O cinto continua apertado

Para Jerônima Baco, foi nos anos 1980 que o corset deixou de ser uma roupa de baixo. “Quando ele começou a aparecer por cima das peças, como parte do visual”, fala. Já Carla Lemos, criadora da consultoria Modices e autora do livro Use a Moda a Seu Favor, acredita que a popularização do espartilho como item de moda aconteceu um pouco mais tarde, nos anos 1990. “Madonna e Jean Paul Gaultier, na turnê Blond Ambition, deixaram a peça muito no nosso imaginário”, comenta.

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A designer Jerônima Baco.Foto: Fernando Diniz

O exato ponto de virada do corset no imaginário fashion não importa muito. Mais ou menos mainstream, ligado ao fetiche ou outros tipos de intimidade, a peça nunca deixou de estar presente. Era apenas escondida, velada ou camuflada. E ainda que seu propósito original tenha se transformado, a opressão sobre o corpo da mulher não desapareceu por completo. O padrão estético que existe até hoje do corpo sarado, musculoso exerce função semelhante à da peça no passado. “A ideia de que é preciso ter a cintura fina e a barriga chapada perdura. Mas, em vez do espartilho, ela coloca a saúde em risco com dietas e, em casos mais extremos, com intervenções como a lipoaspiração de alta definição, que constrói o abdômen trincado”, diz Anna Claudia.

Umberto Eco diz, por exemplo, que a calça jeans feminina foi a continuação do espartilho, porque ela deve delinear bem o corpo, muitas vezes, magro. Outra forma de controle do corpo seriam as grades de tamanho padrão. “Tradiconalmente, há apenas três, P, M e G, e você precisa caber neles se não não há roupas para ti”, fala Carla Lemos. “Continuamos aprisionadas, só não é mais metal ou barbatana de baleia, e sim Lycra.” Por isso, a criadora de conteúdo não acha que deveríamos “demonizar” o item. “Condenarmos uma peça como símbolo de opressão vira uma cortina de fumaça, já que as mulheres ainda são oprimidas.”

Segundo Jerônima Baco, o corset tem sido “ressignificado” nos últimos anos. “Ele está adaptado à vida da mulher dos dias de hoje, que trabalha, sai para a balada”, fala a designer. “Ele acompanhou os tempos, não é um instrumento de tortura. De acordo com os registros históricos, ele nunca foi usado para isso.”

Mesmo assim, o espartilho de treinamento continua sendo usado por quem pretende afinar a cintura. Como o nome deixa claro, trata-se de uma peça usada para fazer o tight lacing durante determinado período de tempo por dia para moldar o corpo. “Mas até aí, temos várias formas de modificar o nosso corpo, como piercing, tatuagem. O problema é quando isso é uma imposição social. Mesmo que haja um estímulo para isso, não é obrigatório fazê-lo”, diz Carla Lemos.

Feminista, Jerônima admite que a peça pode atrair quem tenha disformia corporal. “Por isso, trabalho com a conscientização. A mulher precisa conhecer seu próprio corpo, entendê-lo.” E, mesmo que o interesse de adolescentes pelo acessório tenha crescido, ela não vende os corsets de treinamento para pessoas nessa faixa de idade. Para a designer, o espartilho não é para ser usado como uma maneira de entrar em um padrão, mas como expressão pessoal e uma forma de se sentir dona de si.

No Tik Tok, o corset aparece, muitas vezes, desconstruído de várias formas. Em corpos magros, gordos, altos e baixos. “É isso o que a galera dessa plataforma faz com a moda. Eles se vestem como se sentem”, fala Carla Lemos. A diferença é essa: por mais que a cintura fina ainda seja um ideal de beleza, as mulheres não precisam mais usar espartilhos para ir à padaria comprar um pão. “É apenas uma peça de roupa. Por mais que a gente tenha toda essa discussão, a mulher pode escolher o que ela usa. Uma coisa que ela não poderia fazer há 100, 150 anos”, diz Jerônima.

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